A droga mais nociva é a mais liberada
A droga mais consumida no ambiente escolar não está sujeita às penas da lei. Além de não ser ilícita, pode ser adquirida em qualquer boteco. Embora sua venda seja proibida para menores de 18 anos, a falta de fiscalização abre a porta do consumo de bebidas alcoólicas para jovens e adolescentes.
O álcool é a droga mais nociva em termos de impacto na saúde, economia e segurança, em função do preço acessível, da facilidade de compra e da distribuição em todo território nacional”, diz Sérgio Dualib, pesquisador da Unidade de Pesquisa de Álcool e outras Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Em todo o mundo, as drogas mais usadas pelos adultos, pelos pais, são também as mais usadas por adolescentes, como é o caso do álcool”, reforça Ken Winters, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, que realizou palestra no Colégio Anchieta, em Porto Alegre, em dezembro passado (leia entrevista abaixo). O crescimento do consumo de bebidas alcoólicas entre jovens e adolescentes preocupa educadores, psicólogos, médicos e autoridades de segurança pública. Em mensagem dirigida ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro deste ano, como justificativa para a Medida Provisória que proibiu a comercialização de bebidas alcoólicas nas rodovias federais, o ministro da Justiça, Tarso Genro, lembrou que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima em 2 bilhões o número de consumidores no mundo. E que o álcool causa anualmente 1,8 milhão de mortes no planeta. Estudos internacionais estimam em 6% do PIB os custos sociais, diretos e indiretos, do uso nocivo de bebidas.
Gatilho da violência
Em ranking sobre consumo de álcool divulgado pela Organização Mundial da Saúde, o Brasil aparece em segundo lugar, com 11,2% da população adulta sendo considerada dependente, atrás apenas da Polônia (12,2%). É, sem dúvida, um dado alarmante. Entretanto, pode não corresponder à realidade, uma vez que a própria OMS admite que o relatório é falho. Em outro ranking da instituição sobre consumo per capita, o Brasil aparece em 80º lugar. “Não há dados científicos confiáveis e, além disso, cada país tem sua própria metodologia para mensurar o consumo e a dependência. Alguns limitam a pesquisa a uma cidade, outros a uma região, poucos abrangem o território nacional”, ressalta Heloísa Dantas, coordenadora do Centro de Informações sobre Álcool e Saúde (CISA), ONG que desenvolve projetos de prevenção na rede escolar com a distribuição de cartilhas e DVDs.
Ainda que não saibamos a exata posição que o país ocupa no ranking global, dados do governo federal indicam que o consumo de bebidas alcoólicas no Brasil aumentou 70% entre as décadas de 70 e 90. Em 2007, 65 mil brasileiros foram internados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para tratamento de alcoolismo. Os gastos do SUS com tratamento de dependentes de álcool e outras drogas atingiram, entre 2002 e 2006, a cifra de R$ 41 milhões. Atualmente, mais de 70% das internações em instituições psiquiátricas do país estão relacionadas ao alcoolismo. Além de enfermidades que vão desde lesões de pele, gastrite, hepatite e cirrose até câncer de esôfago, laringe e língua, o abuso de bebida alcoólica transforma-se em gatilho para situações de risco, incluindo homicídios, estupros, suicídios, violência doméstica, sexo sem proteção e acidentes de trânsito, salienta Dualib, da Unifesp.
De fato, um levantamento da Secretaria de Segurança Pública do RS realizado em 2007, a partir de dados do Instituto Médico Legal, constatou que 25,8% das vítimas de acidentes de trânsito estavam embriagadas – não custa lembrar que, a cada ano, cerca de 35 mil brasileiros perdem a vida em desastres automobilísticos. No caso de afogamentos, o percentual sobe para 44,9%. No item homicídios, a porcentagem é de 19,65%. E 32,31% das pessoas assassinadas com armas brancas (faca, canivete, etc.) havia se excedido na bebida. Se estivessem sóbrias, teriam mais chances de sobreviver. “Oitenta por cento dos casos de violência contra a mulher estão relacionados ao abuso do álcool”, assegura Marco Antônio dos Santos, diretor do Departamento de Gestão e Estratégia Operacional da Secretaria de Segurança do RS.
Os princípios da prevenção na escola
1) Focar a diminuição dos fatores de risco e o aumento dos de proteção.
2) Considerar a noção de “porta de entrada” e priorizar álcool e tabaco.
3) Ser multifacetada e desenvolvida em diferentes locais.
4) Considerar a linha de desenvolvimento de cada turma bem como a cultura reinante.
5) Esforçar-se por vincular os jovens e seus familiares no programa.
6) Preocupar-se em desenvolver as habilidades de convivência social.
7) Ajudar aos pais no monitoramento dos jovens.
8) Ser dirigida por um grupo misto de professores, pais e lideranças comunitárias.
9) Ser auto-sustentada.
Batismo de álcool
Em 2007, a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), em parceria com a Unifesp, divulgou o I Levantamento Nacional sobre Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira. Foram feitas 3.007 entrevistas com 2.346 adultos com mais de 18 anos e 661 adolescentes de 14 a 17 anos, em 143 municípios. Conforme os resultados, 52% dos brasileiros beberam pelo menos uma vez nos 12 meses anteriores à consulta. Vinte e oito por cento da população, equivalente a 33,6 milhões de pessoas, beberam no padrão binge (quatro doses ou mais para mulheres e cinco doses ou mais para homens) no mínimo uma vez no último ano. Entre os adolescentes, 35% consomem álcool pelo menos uma vez por ano e 24%, uma vez por mês. A cerveja é a bebida mais consumida pela garotada (52%), seguida de vinho (35%), destilados (7%) e as do tipo “ice” (6%). O estudo aponta a idade em que os adolescentes começam a ingerir álcool: 13,9 anos para rapazes e 14,6 para as jovens. É evidente a antecipação do primeiro gole, uma vez que homens e mulheres adultos declararam ter começado a beber, respectivamente, aos 17,3 e 15,3 anos.
O batismo de álcool cada vez mais precoce é facilitado pela falta de fiscalização junto ao comércio, como constataram os pesquisadores da Unifesp, em investigação realizada em dois municípios paulistas. Em Paulínia, na região abastada de Campinas, eles verificaram que a lei de proibição da venda para menores de 18 anos é descumprida em 92% dos estabelecimentos comerciais, incluindo postos de gasolina, bares, lanchonetes e restaurantes, onde o comerciante não pede carteira de identidade, nem faz menção à idade do comprador. Em Diadema, no ABC paulista, com PIB bem menor, o percentual de descumprimento da legislação é de 86%. O desacato à legislação é extremamente danoso: “Na adolescência, o sistema nervoso não está completamente formado, o que multiplica por cinco a chance de a pessoa virar dependente no futuro”, explica Sérgio Dualib, médico do Trabalho especializado em dependência química.
Bandeiras populistas
A questão é que a falta de embasamento científico que prejudica a definição de um ranking mundial do alcoolismo afeta também as propostas de combate ao consumo de álcool, que acabam contaminadas por arroubos moralistas, conforme a coordenadora do Cisa, Heloísa Dantas. “É uma discussão em que as pessoas ficam muito apaixonadas. Por essa razão, é fácil deixar a área científica e empunhar bandeiras populistas”. Segundo ela, alguns estudos indicam que a proibição da propaganda é benéfica, enquanto outros apontam que é inócua. “A publicidade do cigarro foi proibida na televisão, mas os jovens continuam fumando”. Ao mesmo tempo, o aumento do imposto pode resultar na migração do consumo para bebidas mais baratas, como a cachaça, além de ampliar o mercado ilegal de bebidas, que já existe. “Não temos na literatura um corpo sólido de evidências sobre a medida mais eficaz para reduzir o consumo. Quem descobrir, talvez ganhe o prêmio Nobel”, afirma Heloísa.
Uma coisa é certa: a ação educadora ainda é a principal arma contra o abuso do consumo. E ela passa por desenvolver entre os jovens e adolescentes a capacidade crítica de pensar por contra própria e dizer sim ou não, em suma, fazer escolhas. “É importante que o jovem se sinta em condições de promover mudanças em seu comportamento e, para isso, adquira autoconfiança suficiente para enfrentar pressões – desde a pressão dos amigos até a ausência de opções de lazer. Uma forma de ajudá-los é trabalhar em parceria com a escola e a família, com uma linguagem acessível”, afirma Paulina Duarte, secretáriaadjunta Antidrogas do governo federal.
“Prevenção é o que se pode fazer”
Professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Minnesota (EUA), Ken Winters, elaborou um programa de prevenção de álcool e drogas no ambiente escolar que é a síntese de cerca de cem projetos bem avaliados por uma comissão de pesquisadores internacionais. A seguir, trechos da entrevista que concedeu ao Extra Classe:
Extra Classe – O senhor afirma que o álcool é uma das portas de entrada para o consumo de drogas no ambiente escolar. O que fazer para bloquear essa passagem?
Ken Winters – Uma prevenção é o que se pode fazer, embora nem sempre funcione perfeitamente. A escola é um excelente local para uma prevenção que envolva alunos, pais e comunidade ao redor. Um ponto importante é que o programa tem que encantar e conquistar o adolescente. Estamos aprendendo com a ciência que o comportamento de adulto e adolescente difere porque o desenvolvimento do cérebro acompanha o desenvolvimento do corpo. Então, o programa de prevenção precisa ser divertido… Por exemplo, uma representação teatral em que o adolescente se coloca no lugar do adulto. Ele verá o que é ter um filho drogado, uma experiência dolorosa. Quem sabe a encenação de um júri com a ação de uma vítima de alcoolismo contra o fabricante de bebida.
EC – A realidade de quem vive na periferia de uma cidade brasileira é diferente, por exemplo, da realidade de uma família de classe média de Chicago. O programa de prevenção que o senhor propõe pode ser aplicado indistintamente em diferentes países?
Winters – Os princípios fundamentais funcionam em diferentes classes sociais. Mesmo sem muitos recursos, a família pode aprender a tomar providências e a estar preparada para trabalhar na prevenção de drogas. Por exemplo, para tirar a carteira de motorista, se você for rico ou pobre, não importa. Basta que aprenda a dirigir um automóvel. Quando falamos de um programa de prevenção, basta que os pais aprendam determinadas habilidades.
Lei Seca
No ano passado, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, defendeu a criação de uma taxa sobre cigarros e bebidas alcoólicas, cujos recursos seriam destinados a um fundo de combate às doenças causadas pelos produtos. A elevação de impostos é defendida por mais da metade da população brasileira (56%), conforme a pesquisa da Senad. A restrição à propaganda de bebidas também estaria nos planos do governo: “No Brasil, hoje há um código de autoregulamentação publicitária, mas no caso das bebidas alcoólicas, esse código não está cumprindo sua missão”, afirmou o ministro. “A propaganda é sempre dirigida ao público jovem. A indústria não está interessada em fazer a cabeça do sujeito com mais de 40 anos. Se ele não bebe, não vai começar agora. Se já bebe, não vai beber em maior quantidade”, diz Dualib, da Unifesp.
Ainda segundo o levantamento da Senad, 76% dos brasileiros são favoráveis à restrição ao horário de comercialização de bebidas, como quer o secretário da Segurança do RS, José Francisco Mallmann. “Ninguém bebe moderadamente depois da meia noite”, afirma ele. A proposta da Secretaria de Segurança é a proibição da venda de bebidas da meia noite às 6h da manhã, nas madrugadas de sábado e domingo. O foco são os dez municípios gaúchos que concentram cerca de 60% das ocorrências de homicídios, principalmente na Região Metropolitana de Porto Alegre, em Caxias do Sul e Passo Fundo. Na capital gaúcha, os alvos seriam os bairros mais violentos, como Sarandi, Rubem Berta e Restinga, assim como áreas de boemia, a exemplo de Cidade Baixa e Moinhos de Vento. Em Diadema (SP), com a adoção da lei seca após as 23h, o índice de homicídios baixou em 45%, enquanto o de violência contra a mulher diminuiu 26%.
Para se transformar em realidade, a sugestão da Secretaria de Segurança do RS precisa ganhar força de lei municipal em cada cidade. Encaminhada às prefeituras, não encontrou receptividade. “O poder Executivo não vislumbra a importância da medida. Quando vislumbra, não adota”, reclama o tenente-coronel da BM, Marco Antônio dos Santos. Como a idéia não avançou junto aos prefeitos, a intenção do secretário Mallmann é mobilizar as comunidades para a criação de uma lei estadual. A proposta inclui a proibição da venda de bebidas alcoólicas em um raio de 200 metros das escolas.