CULTURA

O maestro que deu samba

Repleta de êxitos, tragédias e contradições, a história de superação do maestro João Carlos Martins, 70 anos, será agora retratada no cinema – depois de virar samba-enredo do carnaval paulista
Por Gilson Camargo / Publicado em 22 de abril de 2011
Martins toca Cinema Paradiso, que marcou sua virada

Foto: Andressa Bianchi / divulgação

Martins toca Cinema Paradiso, que marcou sua virada

Foto: Andressa Bianchi / divulgação

No samba-enredo A música venceu, da escola de samba Vai-Vai, proclamada campeã do carnaval paulista em 8 de março, a exaltação à comovente história de superação do pianista e maestro João Carlos Martins deixou de lado o escândalo Pau Brasil e as incursões mal-sucedidas do personagem na política, perdendo com isso a oportunidade de mostrar na avenida um pouco mais da dimensão humana do homenageado.

Em 2009, Martins fora condenado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, a dois anos e nove meses de prisão e pagamento de multa por crimes contra a ordem tributária. A sentença foi convertida em prestação de serviços e o caso saiu da pauta, ficando cada vez mais ofuscado pela, de fato, exitosa trajetória de vida e musical do personagem. O processo refere-se ao escândalo político Pau Brasil, batizado com o nome da construtora ligada a Martins e, entre outras empresas dele, envolvida na arrecadação irregular de recursos que financiaram as campanhas políticas de Paulo Maluf nos anos 1990. “Foi a maior desgraça da minha vida. Fui o único brasileiro que assinou notas fiscais por doações quando as campanhas políticas eram feitas com título ao portador. Por isso eu fui o cara que pegaram”, defendeu-se à época.

Fora dos negócios com empreiteiras, Martins é considerado um dos mais talentosos pianistas do mundo, senão o mais virtuoso dos intérpretes da obra do compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750). A partir dos 26 anos de idade, quando já desfrutava de prestígio mundo afora, sofreu sucessivos acidentes e complicações, como uma LER crônica, que lhe tiraram os movimentos das mãos e o impediram de continuar tocando piano. Por seus próprios méritos, se reinventou como maestro, voltando aos palcos com prestígio redobrado. Sua saga, já retratada em 2004 no documentário francoalemão A Paixão Segundo Martins (Die Martins-Passion), da siberiana Irene Langemann, será tema de um longa de Bruno Barreto, com início das filmagens previsto para este ano. João Carlos será representado por Rodrigo Santoro. “Enfim, vou ficar bonito”, brinca o maestro.

No concerto em Taquari, no RS, o maestro rege a Filarmônica Bachiana Sesi-SP

Foto: Fernando Mucci / Fundação Bachiana / Divulgação

No concerto em Taquari, no RS, o maestro rege a Filarmônica Bachiana Sesi-SP

Foto: Fernando Mucci / Fundação Bachiana / Divulgação

A começar pela história do pai, o gráfico português José Martins, que abandonou a música na infância por causa de um acidente, a história está repleta de êxitos e tragédias que o próprio maestro se encarrega de transformar em riso nos intervalos dos concertos. “Quando sofri o primeiro acidente e perdi o movimento da mão esquerda, médico nenhum sabia o que fazer, pois não havia músculo para recuperar. Minha mulher indicou um pai-de-santo que me disse: ‘não te preocupa, em um mês tua mão vai estar igual à outra’. Um mês depois, eu sofri um derrame e a minha outra mão fechou”, relata entre gargalhadas.

Iniciado no piano aos seis anos, em um instrumento que ganhou do pai, aos oito venceu um concurso nacional executando Bach e, aos 26, já reconhecido como grande intérprete da obra do compositor alemão, sofreu uma queda durante uma partida de futebol e perdeu o movimento de uma das mãos. Seguiram-se um assalto na Bulgária, no qual levou uma coronhada, sofreu um derrame e diversas complicações, como uma crise de LER, que provocavam movimentos involuntários das mãos. “Com tudo isso, mesmo com as interrupções e tocando com uma mão só, consegui deixar a obra inteira de Bach para teclado gravada e fazer mais de 1,5 mil concertos por este país e no exterior. Depois, com as duas mãos paralisadas, iniciei na regência”. À frente da Filarmônica Bachiana Sesi-SP desde 2010, João Carlos já atuou com músicos da Ospa, esteve em Porto Alegre, São Leopoldo e Taquari, em março, para os concertos de 60 anos da Duratex, empresa que o patrocina. E falou ao Extra Classe.

O pai

– A música entrou na minha vida em 1898, quando meu pai nasceu. Ele queria ser pianista. Morava em Braga, Portugal, e trabalhava em uma gráfica de jornal. A caminho do trabalho, parava em frente à casa de uma professora de música para ver e ouvir as aulas de piano. Ela disse que daria aulas a ele de graça. Dias antes de começar, ele teve parte da mão direita decepada na prensa da gráfica. Por isso, acho que me tornei pianista para realizar o sonho dele, 40 anos depois.

Futebol

– Eu morava em Nova York. Estava olhando o Central Park pela janela do meu apartamento e vi um pessoal jogando bola. Eram os jogadores do Portuguesa de Desportos, meu time do coração, que estavam lá para um torneio. Pedi pra jogar e foi a maior euforia. Durante o jogo, caí e uma pedra bateu no meu braço, rompendo o nervo ulnar (na região do cotovelo). Ao chegar em casa, senti que os dedos da mão direita não mexiam. Um dos maiores neurocirurgiões da época fez uma transposição de nervos, adotei dedeiras de aço e continuei dando concertos. Dois anos depois, estava tocando no Lincoln Center, em Nova York.

Eleazar de Carvalho

– Após ter perdido a mão direita, decidi começar minha carreira tocando só com a esquerda. Fiz concertos na Europa, Ásia e, 18 meses depois, tive um tumor na mão esquerda. Após duas operações, perdi o movimento. Os médicos do Sírio Libanês desenganaram. Pedi pra ficar sozinho no quarto, liguei a tevê e estava passando o filme Cinema Paradiso, com sua trilha maravilhosa, do Ennio Morricone. Foi um momento inesquecível. Tinha 64 anos e revisei todo o meu passado e presente e adormeci. Sonhei com o maestro Eleazar de Carvalho: ele me aconselhava a estudar regência. No dia seguinte, às 7h, eu já estava tomando as primeiras aulas como regente.

Bach

– Bach foi a síntese de tudo e a profecia de tudo que aconteceu na música. Villa-Lobos jamais pensaria fazer mozartianas ou bethovenianas brasileiras, porque Mozart e Beethoven foram dois gênios quase da grandeza de Bach, mas este talvez tenha sido a grande catedral. Bach dá link com o jazz, com o Brasil, com a África, com todos os países. Porque sua música deu origem a tudo que aconteceu no Ocidente depois dele.

Projetos sociais

– No trabalho de musicalização que fazemos na periferia de São Paulo, encontramos crianças que farão parte de um público no futuro e outras que terão a música como hobby e, de vez em quando, surge um diamante que precisa ser lapidado. Não adianta formar músicos se não tem público. E vice-versa. Por isso, nossa função é criar um novo público, deixar a música como a segunda opção de vida de qualquer pessoa, fazer com que alguns possam ser profissionais da música. Temos 1,5 mil crianças da periferia e do interior estudando música nos nossos projetos e essas crianças crescem cada vez mais como cidadãos. Fui numa visita à Febem numa quinta-feira, e o pai veio com o filho e disse que o garoto estava livre desde a segunda-feira, mas pediu pra ficar preso até quinta pra poder me agradecer. Isso é uma compensação que você leva para a vida toda.

Mil orquestras

– Quando fiz o concerto do aniversário do presidente Lula, em 2009, falei que não votei nele, mas a partir daí virei ‘macaca de auditório’ dele porque foi o Lula quem assinou o decreto da volta da música para as escolas a partir de 2012. Estudar música virou a opção de milhões de brasileiros, e isso tem um impacto social muito grande. Hoje há 50 milhões de chineses estudando piano. Os EUA têm 12 mil orquestras, o Brasil não tem nem 400. Meu projeto é tentar formar mil orquestras, fazer com que a nossa Bachiana seja o cartão de visitas do Brasil no exterior. A ideia é que a gente procure uma excelência musical e seja exemplo de democratização da cultura.

Pau Brasil

"Meu sonho é formar mil orquestras no Brasil", diz o maestro

Foto: Igor Sperotto

“Meu sonho é formar mil orquestras no Brasil”, diz o maestro

Foto: Igor Sperotto

– Foi a maior desgraça da minha vida essa consultoria. Paulo Maluf me chamou para ser secretário de Cultura e também fazer a campanha política dele. Naquela época, era proibido receber contribuições de pessoas jurídicas e eu já estava querendo fechar a firma para tentar voltar para a música. Minha firma fez a campanha dele. Fui salvo porque a minha secretária guardou os 17 mil documentos. Por isso, as consequências não foram piores. Mas foi o fim da minha vida, me abandonaram totalmente. Ganhei na Justiça, mas nunca mais a minha vida foi a mesma. Os acidentes com a mão eu administrei, mas aqueles que atingiram a alma, a besteira política, desses nunca mais me recuperei.

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