Borges, por testemunha
Foto: Divulgação
Jorge Luis Borges sempre se atribuiu um outro que lhe habitava e com o qual convivia diante do espelho. E fez disso o ponto de partida para uma das mais impressionantes obras literárias de todos os tempos. Borges cultiva uma legião de leitores que muitas vezes mergulham em sua obra como num oráculo. Mas talvez, antes disso, seja preciso conhecer o homem para entender o mito. “A Fronteira onde Borges encontra o Brasil” (Editora Movimento), livro de Carmen Maria Serralta, faz esse caminho a partir de um fato corriqueiro: em 1934, numa viagem para visitar parentes no norte uruguaio, o escritor conhece a fronteira com o Brasil, mais especificamente a cidade de Livramento. E nessa cidade presencia um assassinato, um fato que vai lhe marcar pelo resto da vida. Talvez tenha nascido daí um outro Borges, polvilhado pela força dos instintos, pelo barbarismo e pela atmosfera rude da fronteira.
Carmen Serralta, uma fronteiriça de Livramento, é uma mulher de múltiplos instrumentos – formada em música, tradutora, escritora, e sobretudo também devota da obra de Borges, esse escritor argentino nascido em Buenos Aires no dia 24 de agosto de 1899. Foi essa ligação com a obra do escritor que a levou a reconstruir os caminhos por onde Borges passou e, finalmente, mergulhar na sua obra em busca de rastros que essa viagem deixou. “Eu não quis levantar teses”, adverte a escritora, mas também não se furtou de ir além dessa viagem em busca de referências biográficas, debruçada na extensa obra ficcional e biográfica de Borges. “O escritor não vai copiar a realidade, mas Borges fala da impressão dessa ‘travessia’pela fronteira, que lhe marcou muito”, afirma.
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O motivo da viagem é uma visita à prima Esther Haedo e seu marido Enrique Amorim, moradores de Salto, no Uruguai (a avó de Borges era uruguaia). E nessa estadia, vai acompanhar Amorim numa viagem de negócios à cidade uruguaia de Rivera, fronteira com Livramento. Na cidade, os dois estão num café quando presenciam um homem entrar e atirar em outro, consumando um assassinato. Borges relata assim a cena: “Encontrava-me em um café com Amorim e numa mesa próxima a nós estava sentado um guarda-costas de uma pessoa muito importante, um capanga. Um bêbado se aproximou dele demasiado, e aí então, o capanga lhe disparou dois balaços. (….) essa lembrança é para mim mais clara que a realidade. Só vi um homem em pé e só ouvi o ruído dos dois disparos”.
A partir daí, Carmen escreve: “ Borges, até janeiro de 1934, jamais tinha tido experiências de violências pessoais. A violência era ainda um componente narrativo como os da História Universal da Infâmia”. A isso vão se juntar impressões da “travessia” pelos campos. “O ato de violência que presenciou alimentou de tal forma a imaginação de Borges, que pelo menos cinco contos seus, escritos anos depois, tiveram relação com esse fato”, escreve Maria Esther Vázquez no livro “Borges, Esplendor y Derrota”, devidamente citado no livro de Carmen Serralta.
É uma obra cheia de cuidados estéticos e, sobretudo, éticos. Carmen não se permite fazer ilações sem comprová-las com a obra do escritor. Há fotos também dos lugares onde Borges passou e a localização do próprio café onde aconteceu o crime. Os contos vão se expressar especialmente em “O Aleph”, de 1949. São eles: O morto e A outra morte. Há ainda Tlön, Uqbar, Orbis Tertius e O Jardim dos senderos que se bifurcam, de Ficções (1949). Tudo devidamente documentado e descrito no livro de Carmen. Quanto a Borges, o escritor dos labirintos, dos relatos épicos bordados de imaginação, das mitologias, se revela também o quanto pode haver de riqueza literária numa viagem a princípio prosaica e despretensiosa. Bastou o acaso de presenciar um crime. E a obra de Borges com certeza ganhou um sedutor barbarismo nunca antes experimentado.
Da viagem à ficção
Os relatos descritos a seguir tentam revelar o quanto essas impressões de viagem se transformaram em ficção na obra de Borges. Vários outros casos além desse poderiam ser citados. Talvez o mais definitivo de todos repouse num verso de “Os gaúchos” onde escreve: “Morriam e matavam com inocência”.
O morto
O conto é ambientado na fronteira, e trata de um código de ética num bando de contrabandistas. Borges finaliza-o assim: “Otolara compreende, antes de morrer, que desde o princípio o traíram, que foi condenado à morte, que lhe permitiram o amor, o mando e o triunfo, porque já o davam por morto, porque para Bandeira já era um morto”.
Tlön, Uqbar, Orbis Tertius
Borges descreve um planeta ficcional, mas cita explicitamente uma pulperia na Coxilha Negra, região da fronteira. E o relato assume contornos pessoais:
“Ninguém sabia nada do homem, salvo que “vinha da fronteira”. Esses cones pequenos e muito pesados (feitos de um metal que não é deste mundo) são imagens da divindade, em certas religiões do Tlön. Aqui termino meu relato pessoal (….).”
A outra morte
Esse conto tem uma das marcas ficcionais de Borges, que é a volta ao passado buscando modificá-lo. Narra a agonia de um personagem que combateu na batalha de Masoller e a tentativa de reescrever seu próprio destino:
“(…) O homem, arrasado pela febre, revivera no seu delírio a sangrenta jornada de Masoller(….). Dom Pedro, aos dezenove ou vinte anos, tinha seguido a bandeira de Aparício Saravia”.