CULTURA

Mamãe, eu quero!

Publicidade direcionada a crianças traz erotismo precoce, obesidade e estresse familiar
Por Clarinha Glock / Publicado em 22 de junho de 2013
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Cena do documentário Muito Além do Peso, patrocinado pelo Instituto Alana. O filme discute por que 33% das crianças brasileiras pesam mais do que deveriam. A publicidade está entre as principais causas

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Consumir, consumir, consumir. A publicidade não poupa nem as crianças que ainda não têm desenvolvimento cognitivo e físico para discernir entre o que é entretenimento e o que não é. Meninas e meninos até 12 anos de idade, sem condições de fazer uma análise crítica das mensagens recebidas através dos meios de comunicação, têm apresentado um aumento de obesidade e suas complicações, como diabetes e altas taxas de colesterol, erotização precoce, sem falar no estresse familiar gerado pela persuasão de pais e mães para comprarem o produto anunciado nos anúncios comerciais.

Estão por trás disso, somente no Brasil, poderosos interesses econômicos que movimentam hoje algo entre R$ 400 milhões e R$ 1,2 bilhão, segundo estimativa da Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), que calcula que os investimentos de publicidade infantil variem entre 1% e 3% do total de investimentos. Não há dados precisos sobre o tamanho deste mercado no país e os números refletem apenas os anúncios direcionados para crianças, sem falar na publicidade e merchandising que chega a elas indiretamente. Isso talvez explique por que o Projeto de Lei (PL) nº 5.921/2001, que proíbe totalmente a publicidade direcionada às crianças, esteja completando 12 anos de tramitação na Câmara dos Deputados, sem data prevista para votação. Há suspeitas de um lobby forte de empresários para impedir o avanço do projeto.

Proposto pelo deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), o PL garantiria uma proteção adicional à já prevista pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor. O Código diz que é abusiva e, portanto, ilegal a publicidade que se aproveita da ingenuidade infantil.

JUSTIÇA – O Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, ONG que desde 2006 trabalha para a defesa das crianças e monitora os casos de abusos, tem conseguido algumas vitórias em ações contra empresas que promovem a venda casada de lanches com brinquedos, comerciais que incentivam a sexualidade de meninas e outros tipos de publicidade enganosa ou abusiva para crianças. O Instituto tem optado por fazer as denúncias na Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) de São Paulo, capital onde fica sua sede. As empresas infratoras recebem multas administrativas. Mas, a cada lançamento de novas promoções e produtos, é preciso entrar com uma nova ação.

“Na Justiça, temos sentenças de 1ª instância favoráveis, mas até agora não havia nenhuma decisão ainda em segundo grau”, informa Isabella Henriques, diretora do Instituto. “Os tribunais dizem que o problema é das famílias”, explica. Há uma grande expectativa de mudança a partir da condenação da empresa Pandurata Alimentos, que detém a marca Bauducco. Durante o fechamento desta edição, a Pandurata foi condenada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a pagar uma indenização de R$ 300 mil por danos causados à sociedade e a deixar de promover venda casada e de anunciar para crianças, com multa fixada em R$ 50 mil em caso de descumprimento.

O Tribunal considerou abusiva a promoção “É hora de Shrek!” em que era preciso comprar cinco produtos da linha “Gulosos” e juntar mais R$ 5 para adquirir relógios de pulso com os personagens do filme. O caso foi denunciado em 2007 pelo Instituto Alana ao Ministério Público (MP) do Estado de São Paulo, que propôs uma ação civil pública. A ação foi julgada improcedente pela 41ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital, mas o MP apelou ao Tribunal de Justiça. Em nota à imprensa, a Pandurata afirmou que vai recorrer da decisão no Superior Tribunal Federal (STF). Até agora, as decisões têm sido favoráveis às empresas. O grande avanço acontecerá se o STF mantiver a condenação a favor da sociedade.

Marketing sem justificativa moral, ética ou social

Foto: Igor Sperotto

Igor Sperotto

Noemi Friske Momberger coletou exemplos e reuniu farto material que comprovam a tese de seu livro

Igor Sperotto

Em 1999, a graduanda em Direito Noemi Friske Momberger notou que o filho, na época com quatro anos de idade, estava fascinado por brinquedos vendidos junto com uma marca de leite fermentado mais cara que as demais. Ela começou a estudar profundamente o assunto. Noemi pensou nas famílias menos favorecidas economicamente que não podiam comprar o produto e nas crianças que passavam horas na frente da televisão expostas àquela publicidade e ficou revoltada. “As crianças passam mais tempo na frente da tevê do que na escola”, lembrou. Seu trabalho pioneiro no Brasil, comparando as legislações restritivas nos outros países, foi tema da monografia para o curso de Direito em 2000 e gerou o livro A publicidade dirigida às crianças e adolescentes: regulamentações e restrições (Memória Jurídica Editora, 2002).

Desde então, Noemi vem coletando exemplos que evidenciam os números por detrás da publicidade. “Em 2002, a apresentadora Xuxa teve 300 itens licenciados, e a apresentadora Eliana anunciou o lançamento de outros 163 com sua marca. Em países como a Suécia, elas sequer poderiam associar seu nome a mercadorias para crianças”, exemplifica. Capas de caderno e material escolar com personagens infantis ou fotos de apresentadores de programas para crianças, então, nem pensar. Em sua pesquisa, encontrou comerciais que incitam o mau comportamento e a discriminação.

A Suécia é o país com leis mais restritivas em relação à publicidade e à propaganda destinadas ao público infantil. “Os dois canais de tevê pública não têm e nunca tiveram publicidade, nem para adultos, nem para crianças. A lei que baniu os anúncios para crianças na televisão foi introduzida em 1991, na mesma época em que os demais canais estavam começando suas transmissões”, explica Cecilia von Feilitzen, professora emérita em Estudos de Comunicação e Mídia da Universidade Södertörn. Na Suécia, há regras sobre anúncios em revistas, telefones celulares e na rede digital. “Não é permitido encorajar as crianças a comprarem qualquer coisa, ou fazer com que persuadam seus pais a comprar-lhes algo. Além disso, não é permitido publicidade dirigida a crianças e jovens com menos de 16 anos deidade em celulares e mídia impressa”, informa.

Foto: divulgação/arquivo pessoal

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Cecilia von Feilitzen, da Universidade Södertörn

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Nos Estados Unidos, onde as grandes empresas investem US$ 17 bilhões anualmente (cerca de R$ 8 bilhões) em Marketing para Crianças, a pressão sobre o Congresso faz com que não haja uma lei nacional sequer sendo discutida sobre o tema, diz a psicóloga Susan Linn, cofundadora da Coalizão pelo Fim da Exploração Comercial Infantil. Há leis em discussão apenas em nível local e regional. “Um problema é que o corte de financiamentos tem levado algumas escolas a aceitarem ajuda de corporações e material didático patrocinado por empresas”, alerta. “Não há justificativa moral, ética ou social para o marketing direcionado a crianças”, completa.

Socorro! O que fazer quando uma criança quer cada vez mais

Os pais têm de dar o limite e o exemplo, ensina a psicóloga Laís Fontenelle Pereira, do Instituto Alana. A psicoterapeuta infantil e de adolescentes Ana Cristina Olmos acrescenta: é importante que pais e mães digam: “Não precisa, já tem!”, ou “Não posso comprar”. Confira dicas sobre como agir em algumas situações.

– Um olhar, uma fala ou o choro da criança costumam comover e às vezes fazer com que os pais se deixem controlar pelos filhos e filhas, sentindo-se paralisados a ponto de não conseguirem dizer “não”, seja por pena, ou medo de que as crianças sejam discriminadas na escola. Quando meninas e meninos dizem: “Mas na minha aula todo mundo tem!”, é preciso explicar que o dinheiro é difícil de ganhar, e que naquele momento não há como a família disponibilizar o que está sendo pedido;

Foto: Igor Sperotto

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– Há crianças que afirmam: “Ah, mas na casa do fulano eu posso dormir mais tarde”, ou “Se não pode ter bebida alcoólica na festa, não quero”. Os pais e mães devem estar seguros para dizer: “Não pode, aqui é sem bebida alcoólica, esta é a festa que eu avalizo, na minha casa é assim”;

– É comum entre casais separados as crianças usarem o argumento: “Na casa da mãe eu posso”, e o pai pensar: “Se na casa da mãe pode, eu não vou frustrá-la”. Neste caso, os pais devem dialogar entre si para evitar o conflito;

– É frequente pais e mães que passaram necessidades econômicas tentarem evitar que aconteça o mesmo com seus filhos e filhas, e atenderem a todos os seus desejos. Mas, uma criança que tem todos os seus desejos atendidos não aprende a lutar e resolver seus problemas, fica vulnerável e costuma ter dificuldade de relacionamento na sala de aula e com os colegas. A criança precisa aprender a lidar com suas frustrações;

– Pais e mães devem ter uma atitude coerente com o discurso. Por exemplo: se combinam com a criança de passear no shopping e não comprar nada, não podem chegar lá e comprar tudo para o filho/a;

– É importante oferecer alternativas ao consumo: em vez de levar a shopping centers e restaurantes fast-food, fazer programas em espaços públicos;

– É papel dos pais e mães fazerem com que a criança brinque mais livremente, oferecerem alimentação saudável, limitarem o número de horas que as crianças se relacionam sozinhas com as mídias e conversarem sobre consumo.

“Estão roubando a infância das nossas crianças”

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Peça de conscientização divulgada pelo Movimento Infância Livre de Consumismo

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Julia tinha apenas três anos de idade e até então não havia assistido à televisão aberta. No máximo, via os desenhos em DVD junto com a mãe, a advogada Raquel Fuzaro. Na primeira vez em que assistiu a um desenho animado na tevê, Julia estranhou. Por que o desenho parava de repente para entrar uma outra imagem? “Mamãe, continua!”, dizia a pequena. Raquel explicou que aquilo era publicidade. Aos poucos, Julia não só foi se acostumando com as interrupções, como passou a querer o que era anunciado nos intervalos comerciais.

Luís Felipe começou a ver televisão mais cedo, aos dois anos e meio, junto com a irmãzinha Julia. Um dia, no supermercado, gritou: “Eu quero! Eu quero!”, e esperneou até que Raquel entendeu. Ele queria uma caixa de suco onde aparecia um personagem dos desenhos animados. “Pode ser este?”, perguntou ela, indicando outra marca. “Nãão”, bradou o menino. E fez um escândalo até que a mãe pegasse a caixa que pedia.

“Eu converso com meus filhos, explico, mas não quero criá-los numa bolha”, preocupa-se Raquel, que mora em São Paulo e em maio de 2012 tornou-se membro do Movimento Infância Livre de Consumismo fundado em março do mesmo ano. Na escola, Julia e Luís Felipe seriam discriminados caso passassem a ignorar os personagens em produtos anunciados nas propagandas. Mas, Raquel sabe que se hoje 33% das crianças brasileiras estão com sobrepeso é porque boa parte delas consome produtos industrializados, como o suco de caixinha, bolachas recheadas e outros alimentos com excesso de açúcar e sal. E muitas apresentam altas taxas de colesterol e diabetes.

A dificuldade enfrentada por Raquel é semelhante à de milhares de pais e mães no Brasil. Suas crianças são bombardeadas diariamente por propagandas na televisão em que o mote principal é COMPRE/TENHA. “É normal dar algo para eles e uma semana depois nem brincarem mais com aquilo, já quererem outra coisa. E sempre querem mais, é um vazio que se está criando”, reclama Raquel. “Estão roubando a infância das nossas crianças. Se não puderem ser crianças agora, vão ser quando?”

O Movimento Infância Livre de Consumismo começou a se articular nas redes sociais da Internet quando a Associação Brasileira de Agências de Propaganda (ABAP) lançou a campanha “Somos Todos Responsáveis”, em que acusa de radicais os que defendem o fim da publicidade para crianças abaixo dos 12 anos de idade. Para a ABAP, cabe aos adultos controlarem ao que seus filhos assistem ou como compram. Raquel e outros pais e mães não aceitam assumir a responsabilidade sozinhos. “A educação para a cidadania e a sustentabilidade depende também do apoio do Estado e da responsabilização efetiva das empresas privadas, dos veículos de comunicação e das agências de publicidade”, argumenta o grupo, que decidiu criar o próprio movimento quando percebeu que os comentários feitos na página da campanha da ABAP não estavam sendo publicados.

Se a sedução dos comerciais é grande para os adultos, o que dirá para as crianças. “Às vezes a gente não se dá conta. Vê um espumante com princesas no rótulo e pensa: que lindo! Mas o que a indústria está querendo é trazer uma bebida alcoólica para o mundo infantil!”, salienta. O Movimento Infância Livre do Consumismo lembra que é preciso repensar o consumo dos adultos em direção ao consumo consciente, para que deem exemplo. Propõe resgatar a brincadeira e o ser, mais do que o ter. Uma das atividades organizadas pelo Movimento são as feiras de trocas de brinquedos e livros em parques, em que as próprias crianças negociam, acompanhadas pelos pais. É uma forma também de lembrar das coisas simples da vida, como um domingo no parque – para que as memórias da infância não se restrinjam aos domingos nos shopping centers.

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