O conceito de terroir para uso e abuso da vinicultura globalizada
Na busca pelo sentimento absoluto de si, que só pode ser vivido como identidade plena com o objeto, o sujeito vivencia inicialmente o desfrute, resultado da posse do objeto pelo trabalho. “Mas o desfrute continua essencialmente prático, e se distingue do sentimento absoluto de si na medida em que provem da diferença, e, nesta medida, nele se encontra uma consciência da objetividade do objeto”, diz Hegel, n’O sistema da vida ética. Em outras palavras, o desfrute, do ponto de vista prático de simples satisfação de uma necessidade, não produz nada além da saciedade, sensação que recoloca o sujeito na sua incompletude – o que permite a Gide, n’Os moedeiros falsos, dizer que “da saciedade pode nascer uma espécie de desespero”.
Por que começar um artigo sobre terroir com a abordagem hegeliana do sentido da História? Em primeiro lugar, porque o vinho é um resultado da interação homem-natureza (sujeito objeto) vivida como trabalho. Seu desfrute, no entanto, fazendo tourner la tête, vai além da satisfação de uma necessidade prática. Poder-se-ia dizer – e muitos o dizem! – que tudo não passa do resultado do consumo de uma droga.
Foto: Free Images
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Há uma empatia entre o vinho e a humanização do ser humano, e essa empatia começa no terroir, unidade composta por uma paisagem física como substrato de um conjunto de atividades humanas. Como territorium, essa unidade foi instituída por Roma desde os tempos da República. Em cada um, o Estado reconhecia o território de direitos de uma coletividade. Lemos no Dictionnaire des antiquités grecques ET romaines (Daremberg e Saglio) que “Um territorium era uma certa extensão ou superfície de solo, claramente delimitada, ligada por laços estreitos a um estabelecimento humano − cidade, tribo, legião, colégio sacerdotal, mina ou jazida. A palavra não se aplicava aos espaços inabitados ou incultos, nem às propriedades imperiais ou privadas, mesmo às mais vastas”.
Findo o Império, são essas unidades que garantem a continuidade de uma civilização. Dispersos num mundo que perdeu a rede de comunicações que mantinha vivo o Império, esses territorium, convertidos em aldeias, cidadelas fortificadas, domínios de potentados locais etc., fecharam-se em economias autárquicas. Em comum, mantiveram o idioma e a religião do final do Império, de tal forma identificados que constituíram uma unidade, tornando possível a pergunta dirigida aos estrangeiros: Parlez-vous chrétien?
O idioma, a religião – e o vinho. O hábito de consumo e a cultura da vinha foram levados, para além da bacia do Mediterrâneo, pelos romanos. Findo o Império, idioma, religião e vinho perderam a aura de cosmopolitismo a ele associada e refluíram para os antigos territorium. Neles, incorporaram as peculiaridades de cada local: a Igreja não garantia a unicidade do culto exercido em seu nome, a língua modifica-se incorporando novos significados, e os territorium, designação quase burocrática que passa por alto o que cada um tem de específico, transformam-se, entre os francos, nos terroirs, que não se definem mais em oposição à entidade abstrata do Estado, mas afirmam suas identidades desde o seu interior. Se quisermos buscar uma ideia familiar que se assemelhe, falemos em pago, em querência.
É nesse interior que as diferenças dos diferentes vinhos transformam-se em expressões de identidades culturais, pois um terroir não é um simples meio físico, mas uma forma de viver a interação homem-natureza, seja como trabalho, seja como desfrute. Trabalho e desfrute dos quais o vinho é uma expressão perfeita Sua alma canta (Baudelaire, A alma do vinho):
Bem sei quanto custou, na colina incendida, / De causticante sol, de suor e de labor, / Para fazer minha alma e engendrar minha vida; / mas eu não hei de ser ingrato e corruptor. (…) Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida; / A teu filho farei voltar a força e a cor / E serei para tão tenro atleta da vida / Como o óleo que os tendões enrija ao lutador (Tradução de Guilherme de Almeida).
Ao reivindicar o terroir como selo de autenticidade de seus produtos, a vinicultura globalizada o esvazia do seu conteúdo humano, único capaz de lhe dar sentido. Reduzindo-o a variáveis quantificáveis de composição de solo, de temperatura e exposição solar, ela torna possível a intervenção de um saber baseado na manipulação química desses elementos que, aliado ao marketing, produz um gosto homogêneo em escala global, gosto que já foi previamente despido de qualquer sensibilidade estética pela Coca-Cola. Ao mesmo tempo, acena com a possibilidade, característica de uma enofilia de neófitos, de que cada gosto encontrará seu vinho – quem sabe um dia preparado à sua frente, em seu copo.
Assim, da promessa de transcendência do ser humano para além do simples desfrute – Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia, / Grão precioso que lança o eterno Semeador, / Para que enfim do nosso amor nasça a poesia / Que até Deus subirá como uma rara flor! (Baudelaire) – o vinho transforma-se em uma droga. Fabricado para produzir sensações pré-determinadas, tal como as cançonetas de 1984 de Orwell, em cada garrafa não é mais do que o design do seu rótulo, num vazio incapaz de ser preenchido pela sucessão obsedante de associações em degustações ritualísticas, a nos remeterem metaforicamente à saciedade desesperadora do mundo das mercadorias.
*Sociólogo, professor da Univates e assessor do Comung. Apresentou o conteúdo desse artigo em atividade do Núcleo Cultural do Vinho, da Fundação Ecarta.