A exposição, que será inaugurada no dia 2 de dezembro, na Galeria Ecarta, em Porto Alegre, nasceu da vontade de realizar uma mostra sobre contracultura. O projeto seria baseado em uma coleção de trabalhos dos anos 1970 e 1980 de artistas na maioria brasileiros e ligados à arte conceitual (que, lembremos, quando surge na América do Sul é marcada pelo comentário político). Publicações, arte postal, pôsteres, obras de natureza gráfica produzidas em papel, o mesmo material do jornal diário e do panfleto, itens cuja função é tanto circulação de informação quanto difusão de ideologia. Uma produção que visava extrapolar as paredes das galerias, escapar da censura e ativar redes internacionais, experimentando formas alternativas de circulação da obra de arte desmaterializada e misturada à vida. Com o passar do tempo, no entanto, essa produção, que estava comprometida com uma crítica de caráter institucional, foi (quase que completamente) assimilada pelo sistema das artes e hoje frequenta distintos museus, ainda que, não raro, esvaziada de sua força original.
Nos tortuosos processos que envolvem a curadoria, o diálogo estabelecido com Jorge Bucksdricker, dono da maravilhosa coleção e meu parceiro na aventura, acabou levando à outra recusa: a de restringir o olhar apenas para a produção do passado e criar uma mostra de caráter exclusivamente documental. Porque no conturbado momento presente, nos conflitos em avenidas de grandes cidades e nas matas dos rincões, nas ocupações e manifestações que explodem no território urbano à mercê da exploração do capitalismo mais selvagem, contra as remoções desumanas, assassinatos de jovens negros, espancamentos de mulheres e homossexuais, contra a repressão descabida da polícia militarizada, a fome do lucro, a caretice e o fascismo dos homens de bem, há novamente a necessidade do engajamento.
Fotos: (Esquerda) Cuquinha – Pulo para / (Direita, superior) Lanes e Nazari – Porque Choras / (Direita inferiior) Traplev – Recibo 70 pedra noventa
A mostra histórica então se abriu em um comentário sobre hoje e admitiu proposições contemporâneas que se apresentam primeiramente negativas em sua crítica ao estado das coisas, mas que se provam afirmativas nas estratégias de disseminação, na articulação para a luta, no respeito ao diferente, no delírio erótico, no humor que ri da estupidez do poder. Cabe um comentário sobre o título da exposição, referência que nos forneceu não uma metodologia, o que seria um erro, mas um salvo conduto para a liberdade.
Em Contra o Método (1975), Paul Feyerabend pergunta se é desejável apoiarmos uma tradição que se mantém una e intacta, através de regras estritas, e ainda concedê-la direitos exclusivos sobre a manipulação do conhecimento em detrimento das demais experiências. Em seu ataque à ciência, o filósofo responde à pergunta com um firme e vibrante NÃO. Em defesa do que chama de anarquismo (ou dadaísmo) epistemológico, Feyerabend propõe que a busca do conhecimento seja pautada não apenas pela observação da regra imposta pela metodologia, mas por sua ruptura, negação e até mesmo contradição. Não há regramento para o saber.
Uma epistemologia liberta da dominação da ciência é uma das visões possíveis da contracultura, filha da bomba atômica que também percebe a doutrina científica com desconfiança, abrindo o conhecimento e a consciência para o misticismo oriental, os estados alternados e outros recursos desviantes. A revolução tem objetivos dimensionados em escalas distintas e o questionamento nasce na consciência subjetiva, cresce para o núcleo familiar e dali parte em direção às instituições, pondo em cheque todo tipo de autoridade em uma transformação que é tanto da ordem social e ambiental quanto individual e psicológica. Por contracultura entendemos não apenas as movimentações de 68, mas também suas irradiações: as ideias dissidentes e o desejo de confrontar o sistema, através de recusa, fuga ou luta; as práticas boêmias de poetas, pintores e roqueiros malditos; os movimentos subculturais que, assim como ocorreu com a arte de vanguarda, também estão sujeitos aos processos de assimilação mercadológica e institucional.
O espírito transgressor da contracultura e as ideias anarquistas de Feyerabend contra a instituição da ciência contaminam nosso olhar sobre a arte. A antimetodologia sugere um modo de pensamento & ação que se materializa na exposição aberta à visitação na Galeria Ecarta, em Porto Alegre,de 2 de dezembro a 31 janeiro de 2015, reunindo trabalhos de artistas de distintas gerações e procedências: 3Nós3, Adriano Rojas, Antonio Dias, Alex Vieira, Alexandre Navarro Moreira, Artur Barrio, Caroline Barrueco, Cildo Meireles, Claudio Goulart, Clóvis Dariano, Daniel Eizirik, Edgardo Vigo, Edson Barrus, Fabiana Faleiros, Flávia Felipe, Horacio Zabala, Hudinilson Jr., Jesus Gadamez Escobar, João Kowacs, Joaquim Branco, Jorge Caraballo, Julio Plaza, Lenora de Barros, Leonhard Frank Duch, Lourival Cuquinha, Luiz Rettamozo, Luiz Roque, Luiza Só, Milton Kurtz, Moacy Cirne, Nelson Rosa, Nervo Óptico, Paulo Bruscky, Regina Silveira, Ricardo Aleixo, Roberto Traplev, Rogério Nazari, Telmo Lanes, Ulises Carrion. Artistas que disseram – e ainda dizem – um firme e vibrante NÃO, denunciando e combatendo a ditadura, o machismo, o imperialismo, a censura, o racismo, as desigualdades sociais e a caretice geral.
*Jornalista e mestre em Teoria, História e Crítica de Artes pela Ufrgs. Curador e coordenador artístico da Galeria Ecarta, projeto da Fundação Ecarta.