Consumo não inclui hábitos culturais
Foto: Fê Pires/divulgação
Se o hábito da leitura fosse um livro, ele poderia ser comparado a uma obra de pouco sucesso e encalhada nas prateleiras das livrarias e bibliotecas do país. A simplória comparação surge a partir de dados divulgados em abril pela Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio RJ) que revela, entre outras constatações, que 70% dos brasileiros não leram sequer um livro durante todo o ano de 2014 e mais da metade da população (55%) não fez nenhum tipo de atividade cultural nos últimos 12 meses. Apesar da diversidade de oferta de programação no país, o desinteresse por esse tipo de atividade, para a maioria (78,7%), é simplesmente a falta de hábito.
O levantamento buscou entender os hábitos culturais da população nacional. Para isso foram ouvidos mil entrevistados em 70 cidades e nove regiões metropolitanas de todo país. Os resultados indicam que, ainda hoje, esses programas são para poucos interessados. A pesquisa listou uma série de opções de arte e entretenimento e concluiu que aproximadamente 89% não foram ao teatro no último ano e 73,1% não assistiram a nenhum filme nas salas de cinema brasileiras em 2014. Visitar exposições de arte ou frequentar espetáculos de dança não faz parte dos costumes de mais de 90% dos pesquisados. Os que deixam de ir a shows musicais têm aumentado desde 2011 e hoje somam 80,6%, um acréscimo de 2,2 pontos percentuais desde o último levantamento, em 2013.
Números que contrastam
Não é por falta de oferta e produção nacional que o brasileiro deixa de consumir cultura. Segundo o último levantamento da Câmara Brasileira do Livro (CBL), realizado em 2013, foram produzidos 62,23 mil títulos novos no país, entre lançamentos e reedições, representando um aumento de 8,29% em relação a 2012. No mesmo ano foram vendidos 279,66 milhões de obras que, se distribuídos a toda população, cada brasileiro receberia mais de um exemplar.
Foto: Luciano Lanes/PMPA
No setor audiovisual não é diferente. Apenas no primeiro semestre de 2014, o país inaugurou 194 novas salas de cinema e fechou o ano com 2.765. Apesar do aumento, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) considera insuficiente o número, que classifica o Brasil como o 60º país na relação de habitantes por sala. Segundo a Agência, são privilegiadas as áreas de maior poder aquisitivo das grandes cidades, excluindo populações inteiras como o Norte e o Nordeste, as periferias urbanas, as cidades pequenas e médias do interior.
Na busca por diminuir essa diferença, a Ancine lançou em 2012, em parceria com o BNDES, o Programa Cinema Perto de Você, criado para facilitar o acesso da população às obras audiovisuais através da abertura de salas em cidades de porte médio e bairros populares das grandes cidades. Apesar da centralização dos cinemas, de acordo com o Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA), órgão da Ancine, nas primeiras cinco semanas de 2015 foram vendidos 17,9 milhões de ingressos, o melhor resultado na série histórica desde a década de 1980.
Poucos teatros, muitas opções
Milton Nascimento, nos versos da canção Nos Bailes da Vida, diz que o artista deve ir onde o povo está. A sugestão cabe ao ator, diretor e produtor cultural, Alexandre Vargas. Para ele, existe um público interessado em teatro, o que falta são espaços para apresentações, o que explica porque apenas 11% dos brasileiros assistiram a uma única peça em 2014. “É absolutamente coerente. Se você analisar pelas pesquisas que apontam apenas 4% dos municípios brasileiros com salas de teatro, esse número é real”, dispara.
Foto: Douglas Trancoso
Vargas é o idealizador do Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre que, em 2015, realizou 76 apresentações de 22 grupos, em 17 regiões da cidade, abrangendo 27 bairros da capital. “Quando criei o Festival, em 2009, pensei em uma programação para a cidade, não em um público específico”, explica. O Festival está em sua 7ª edição e atrai cada vez mais espectadores. Para ele, o brasileiro considera a rua como um espaço cultural. “Nos últimos anos, as manifestações de rua cresceram muito no país”, conclui.
Dispostos a pagar
Diferente do que se poderia esperar, os preços não são o principal entrave para o consumo cultural no Brasil. O levantamento da Fecomércio RJ aponta um aumento no valor que os consumidores estariam dispostos a pagar por um produto ou serviço, na comparação com 2013. Por um e-book, por exemplo, os entrevistados afirmaram que R$ 35,42 é um valor justo. No ano passado, a quantia era de R$ 25,31. Para ir a um show musical, pagariam, em média, R$ 29,44 (em 2013 era R$ 27,88) e, para comprar um livro impresso, R$ 28,18 (R$ 27,46 no ano anterior). Todos os valores são superiores aos R$ 26,27 pagos atualmente por dia de trabalho a quem recebe um salário mínimo.
Tempo livre roubado pela TV
Quando questionados sobre o que faziam em seu tempo livre, 21,5% responderam que ocupam a maior parte do tempo com atividades religiosas, 15,7% têm encontros com amigos ou parentes. Mas, a grande maioria, 78,7%, afirmou que assiste televisão. “Não podemos, de sã consciência, dizer que a televisão brasileira aberta ou fechada ofereça produtos culturais em quantidade e qualidade expressiva e significativa”, avalia Paulo Gomes, professor doutor em Poéticas Visuais pela Ufrgs.
Gomes explica que o público que frequenta exposições, espetáculos e bibliotecas ainda é muito restrito e geralmente de uma camada com grau de instrução e informação elevados. A resposta, para o especialista, é simples: o fator cultura ainda não foi incorporado ao dia a dia dos brasileiros. “É um elemento secundário na vida nacional e que depende da ampla informação de que a cultura é parte integrante da identidade e do conceito de nação”, esclarece.
O hábito pode ser criado
O motivo apresentado pela maioria dos entrevistados (76%) para não participar de atividades culturais é a falta de hábito, o que para Gomes pode ser revertido, e a escola é um caminho. “Se as necessidades surgirem da massa da população desprovida de acesso à cultura, mas em vias de qualificação, as coisas podem mudar sim. Qualquer pai e mãe sabem disso. Bons e maus hábitos são criados, cultivados ou, se prejudiciais, extirpados”, aponta. O desenvolvimento e potencialização de políticas públicas também são vistas como solução. Para o professor, falta ao país, estados e municípios “assumirem premissas, eliminarem de suas pautas de governos a ideia do Estado promotor de eventos e aceitarem a evidência de que cultura e educação são indissolúveis” conclui Gomes.