Por que a cultura autoritária avança
Foto: Lucio Bernardo Jr./Agência Câmara
Xingamentos pesados nas redes sociais, agressões físicas nas ruas, incitação à violência, uso desrespeitoso da imagem de personalidades públicas, afirmações favoráveis a crimes como estupro e racismo, manifestações pedindo a volta da ditadura militar, disseminação do ódio. É longa a lista de fatos que traduzem a intolerância que tomou conta do Brasil. Um dos exemplos mais característicos envolve a autoridade política máxima do país: a presidente Dilma Rousseff (PT).
De forma recorrente, e sob o manto da liberdade de expressão, internautas e manifestantes ‘descontentes’ com o governo; eleitores que preferiam outro presidente ou partido; e adversários (conhecidos ou nem tanto) se referem a Dilma com termos como: poste, vaca, puta, burra, retardada, vagabunda, terrorista, anta, traficante, bandida, ladra, quadrilheira… No episódio mais recente, um adesivo comercializado na internet para ser fixado na lateral de veículos retratava a presidente de pernas abertas, de forma que, quando o carro fosse abastecido, a bomba de gasolina seria introduzida na parte do adesivo que representava a vagina.
“Existe uma brutalização da sociedade brasileira, na qual o pensamento é cada vez mais binário. Soma-se a isso uma história de formação tecnológica com um nível de anonimato maior, associado à não imputabilidade. Assim, se deu visibilidade àquilo que normalmente não tinha direito de circulação. E, claro, não tinha esse direito justamente por que se tratava de injúria, preconceito e crime”, considera o professor do Departamento de Filosofia da USP, Vladimir Safatle.
Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Na avaliação do filósofo, em outros momentos da história do país as agressões também ocorriam, mas não tinham a visibilidade que se tornou viável com a tecnologia que envolve aplicativos e redes sociais vinculados à internet. Além disso, os mecanismos de represamento estão ‘frouxos’ ou deixaram de existir. “É inconcebível que em uma democracia um sujeito vá para a rua para pedir golpe militar. Em qualquer democracia consolidada do mundo isso dá cadeia, porque é crime”, assegura ele.
Então a sociedade brasileira não tem uma democracia consolidada? “Claro que não. Entre uma democracia e uma ditadura existem muitas variações. O Brasil é uma neodemocracia. Existem democracias que possuem vários elementos de ditaduras. É o nosso caso”, responde Safatle. Entre eles, elenca o professor, está um aparato policial ‘descontrolado’, protagonista de maior número de casos de tortura do que na época dos ‘anos de chumbo’; a permeabilidade de interesses econômicos dentro do governo; e a forma como o Congresso Nacional tem funcionado, desrespeitando, em vários episódios, suas próprias normas e os preceitos constitucionais em favor do atendimento da vontade de seu dirigente.
Os que se dedicam a explicar o momento atual apontam para um ‘caldo’ que envolve muito mais do que o tão propalado ódio de classe: há um Estado com dificuldades históricas em cumprir suas funções; um sistema educacional falho; escassez de informação qualificada; excesso do chamado ‘lixo informativo’; cultura autoritária; violência; individualismo crescente; desorganização quase generalizada e uma frustração muito forte da sociedade, que não vê atendidas demandas básicas. A intolerância se mostra tão aguda que faz especialistas começarem a questionar mudanças nos fatores que envolvem a afetividade.
“O Brasil está passando por um processo de desumanização das relações sociais. É um movimento forte e rápido, e antagônico à pauta em vigor entre os anos 1970 e 1990, de conquistas dos movimentos como os feministas e negros, e de preocupação com causas envolvendo justiça”, destaca o coordenador do Núcleo de Estudo em Organizações, Segurança Pública e Cidadania do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da PUCRS, Emil Sobottka.
O professor vai além, estabelecendo uma relação entre o momento atual e as características da sociedade brasileira. “Nunca tivemos um tipo de democratização em que nos aceitamos como iguais. Isso perpassa todas as classes sociais. Existe, por exemplo, em nossa sociedade, a concepção de que você sempre pode ou precisa usar um pouco de violência contra o mais frágil. Isso fica muito evidente na incidência de casos de violência de homens contra mulheres ou de pais contra filhos nas famílias. Há problemas envolvendo a noção de ética e pessoas que consideram outras pessoas como seu instrumento ou sua propriedade”, explica Sobottka.
Foto: Igor Sperotto
A sombra do protofascismo e a esquerda imobilizada
Um segundo fenômeno acontece ao mesmo tempo em que ocorre a radicalização de posições no país: é o avanço das ideias de direita, dentro e fora do campo da política. Com uma celeridade que tem espantado pensadores e cientistas sociais, o ideário de direita impregnou partidos e parcelas significativas da sociedade. Sua pauta está na ‘ordem do dia’: inclui a defesa da redução da maioridade penal (e não raro da pena de morte); a diminuição da presença do Estado nas chamadas atividades não essenciais e na economia; o fim de auxílios financeiros para a população de baixa renda; a ridicularização de parte das reivindicações que tratam de direitos humanos; a rediscussão de parte de direitos de trabalhadores e a retirada da presidente da República do cargo.
“Abre-se a perspectiva para os próximos anos de uma hegemonia liberal-conservadora, em grande parte por responsabilidade de uma pretensa esquerda que ocupou espaços no aparelho do Estado. Nesse contexto, fortalecem-se também propostas mais à direita”, projeta o professor titular de Direito Constitucional da Ufrgs e da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), Eduardo Carrion. “Havia um equilíbrio na política, porque existia um contraponto. Só que a esquerda está completamente desarticulada. O que me causa estranheza não é a ala protofascista da sociedade. É a esquerda não conseguir mais colocar 300 mil ou 400 mil pessoas na rua. A esquerda paga o preço do lulismo e de uma situação mundial muito desfavorável. O que provavelmente ainda veremos é uma tradução partidária de todo esse movimento conservador”, completa o filósofo Vladimir Safatle.
Para o professor Emil Sobottka, o que ocorre no campo das instituições políticas é ilustrativo do momento atual. “Em qualquer democracia é inadmissível o que ocorreu no Brasil após as eleições, o fato de o derrotado negar-se a reconhecer a derrota, por exemplo.” O movimento também pode ser identificado, segundo o professor, pelas posições adotadas pelo PSDB, a sigla que, em tese, representaria a democracia social. Na prática, parte significativa do partido aderiu a bandeiras como a redução da maioridade penal e, diariamente, alimenta articulações que visam a queda do governo eleito pelo voto.
Foto: Igor Sperotto
No campo político-partidário, parte dos representantes da direita militante se coloca contra questões como a legalização da união civil homoafetiva e do aborto. Mas não há uma unanimidade, uma vez que outra parte dos chamados conservadores incorporou a defesa destas questões (historicamente vinculadas à esquerda) e, na sociedade de modo geral, as opiniões se apresentam difusas. Há defensores de um novo golpe militar que apoiam a união homoafetiva.
Militantes de esquerda que se posicionam contra o aborto. E praticantes silenciosos de violência contra crianças e mulheres à direita e à esquerda. No processo em curso, a sombra do extremismo vem ganhando vulto. Termos como ‘ratos’ e ‘piolhos’, utilizados na Alemanha nazista em alusão aos judeus, circulam em páginas de parte de militantes da ‘nova direita’ para definir adversários no campo das ideias. Discursos inflamados em defesa das ‘pessoas de bem’, violência política, culpabilização de vítimas, não reconhecimento do direito de manifestações contrárias de pensamento e criminalização de posições divergentes completam um repertório perigoso. “O que surpreende é que há muitas décadas não havia uma direita que, militantemente, se coloca contra a igualdade universal, com pautas muito claras, conservadoras, e que vão na contramão de uma maior democratização da sociedade”, destaca Sobottka.