Foto: Igor Sperotto
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No limite da crise, empresas de comunicação abrem mão do ofício de informar para exercer o poder político e econômico e fazer a defesa de interesses empresariais e corporativos à base de notícias editorializadas, manipulação, parcialidade, omissão. Pesquisa da USP reforça que os meios de comunicação brasileiros conquistaram uma estranha unanimidade: por razões diferentes, despertam a desconfiança tanto dos movimentos democráticos quanto daqueles mais conservadores. Nesse vácuo, a imprensa internacional assumiu o papel de informar aos brasileiros o que acontece no país.
Três dias antes da votação da admissibilidade do impeachment da presidente Dilma Rousseff pela Câmara Federal, as redes sociais brasileiras amanheceram sacudidas por um título – “Dilma Rousseff é alvo de parlamentares protagonistas de escândalos” – e uma surpreendente síntese sobre a situação política no país. “Ela é acusada de usar dinheiro dos bancos públicos para cobrir furos no orçamento, prejudicando a imagem da economia brasileira. Mas é uma raridade entre os políticos nacionais: não é acusada de roubar para si mesma”. A reportagem do New York Times resumia em meia dúzia de linhas um complexo panorama que a imprensa nacional ainda não havia conseguido mostrar em meses de cobertura da crise política no Brasil: o bordão do “basta de corrupção” não era suficiente para derrubar Dilma.
Não só porque ela não era responsável por desvios de dinheiro em benefício próprio, mas porque quem articulava tal desfecho eram figuras que haviam sido citadas em delações premiadas e investigações da Justiça, algumas delas já oficialmente consideradas réus, como o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf (DEM-SP), que ilustra a abertura da matéria do NYT com a reprodução do slogan pelo qual ficou conhecido: “He steals, but gets it done (rouba, mas faz)”, ironizou. A análise do diário norte-americano antecedeu a cobertura de jornais da Inglaterra, França, Espanha, Canadá e outros dos Estados Unidos, que começaram a indagar outras razões para o impeachment, bem menos nobre que o combate à corrupção. Até o machismo foi mencionado por uma repórter canadense em uma coletiva de imprensa com Dilma Rousseff.
A cobertura internacional reforçou a ideia – já longamente debatida entre a esquerda – de que a cobertura nativa é parcial. “A mídia tem lado e ao invés de fazer jornalismo, está fazendo propaganda”, avaliou a doutora em Comunicação e professora da Unisinos, Christa Berger, em uma aula pública na Praça da Matriz em Porto Alegre, que durante a semana que antecedeu à votação na Câmara sediou o “Acampamento da Legalidade e da Democracia”.
A preocupação com a exclusão dos movimentos sociais do noticiário, ou sua exclusiva cobertura sob o aspecto policial, ganhou forma em 1990, com a criação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). A novidade agora é que, se para os militantes que defendem o mandato de Dilma Rousseff, Globo, RBS, Folha e Estadão são “golpistas”, entre a direita, a crítica tem sido tão ácida quanto, só que por motivos opostos. “A direita não tem voz no Brasil, a imprensa é chapa-branca do governo porque recebe verbas publicitárias”, criticaram os estudantes de Letras da Ufrgs Henrique Garcia e Juan Perera Camacho em uma manifestação verde-e-amarela em Porto Alegre.
Dados de uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) feita em manifestações da Avenida Paulista contra e a favor do afastamento da presidente da República confirmam esse cenário no mínimo delicado para o jornalismo brasileiro. A falta de confiança total ou parcial na imprensa era uma realidade para 99% dos entrevistados em um ato pró-Dilma e para 78,6% entre os contrários.
É interessante notar que o alvo, no caso dos manifestantes que defendem o impeachment, são os mesmos veículos da imprensa tradicional usualmente atacados por movimentos sociais: a avaliação negativa dos participantes sobre o Jornal Nacional, principal telejornal brasileiro, por exemplo, é maior que a média de desconfiança geral na imprensa, atingindo 82,8% dos entrevistados.
Foto: Igor Sperotto
Jornal: de direita ou centro-esquerda?
O fato de a direita reiterar críticas históricas da esquerda à mídia é desconcertante para quem acompanha as queixas dos movimentos sociais há décadas. “Desconheço essa situação, o que sei é que a Globo inclusive convocou as manifestações da direita, cobriu ao vivo o que estava acontecendo”, observou, surpreso, o jornalista Paulo Henrique Amorim quando esteve em Porto Alegre, no final de abril, para apresentar o painel Mídia e o Estado Democrático de Direito, promovido pelo Sinpro/RS.
Mas não chega a ser ilógico, já que a retórica utilizada pelos manifestantes anti-Dilma para criticar a imprensa se assemelha à que sustenta suas análises sobre o sistema partidário brasileiro: “O PSDB é um partido de esquerda aceitável, dá para ter um diálogo”, argumenta o gaúcho Sérgio Koloszwa, que se sente representado pelo Partido Novo, uma plataforma ultraliberal criada recentemente.
Essa pode ser a chave para compreender o enigma: a imprensa se parece mais com um partido político (de direita ou de centro-esquerda, dependendo de onde se olha) do que com um emissor de informação. Em 2010, a ex-presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) Maria Judith Brito já advertia que “obviamente, os meios de comunicação estão assumindo o papel de oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada”. Em março de 2014, o jornalista e blogueiro do UOL Mário Magalhães alertou, em Porto Alegre, para a radicalização dessa postura. “Estamos voltando à época em que os jornais pertenciam a facções políticas”, alertou.
Ocorre que os setores mais conservadores também criticam a postura da imprensa e há uma consolidação dessa desconfiança mesmo entre colaboradores da imprensa tradicional. Em recente artigo no Estado de São Paulo, Eugênio Bucci – que já foi secretário editorial da editora Abril e presidente da Radiobras, no governo Lula – adverte que “a imprensa escorrega para o partidarismo” ao dar um destaque muito maior às alegações pró-impeachment do que a “argumentos em prol da inocência da presidente”. O jornalista desmonta dois reiterados argumentos que a imprensa usa para justificar essa preferência. Um, o de que estaria cumprindo o papel de “fiscalizador” do poder. “Eles têm razão, mas se esquecem, contudo, que o Judiciário também é um Poder (também é Estado) e deve ser fiscalizado com o mesmo rigor”, contrapõe Bucci. A segunda justificativa é que a mídia estaria pautada pelas pesquisas de opinião que apontam a preferência do povo pelo impeachment. “Há uma incoerência indesculpável nessa justificativa. As mesmas pesquisas mostram também que as maiorias não querem o vice, Michel Temer. Quer dizer, ao combater Dilma e poupar Temer, as pautas predominantes são contrárias e não fiéis às tendências da opinião pública”, sentencia.
O jogo da desinformação nas redes sociais
Os pesquisadores da USP que estão estudando as relações entre manifestações e comunicação chegaram ainda a outra conclusão crucial: o nível de desinformação é altíssimo entre os militantes, tanto de um lado quanto de outro. Por exemplo, entre os manifestantes que pedem a saída de Dilma da presidência, 71,3% acreditam que Lulinha, filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seria o dono da Friboi e 42,6% dizem que é verdade que o PT trouxe 50 mil haitianos ao Brasil para votar em Dilma. Já o grupo que defende o mandato de Dilma acredita majoritariamente, 55,7%, que o juiz da Lava Jato, Sérgio Moro, é filiado ao PSDB. Em ambos os casos, ignoram que essas informações são falsas e foram desmentidas inúmeras vezes.
O grupo também fez um levantamento sobre as informações que circulavam nas redes sociais às vésperas do impeachment. Das cinco notícias com maior volume de compartilhamentos no Facebook, três eram falsas – uma delas, que teve 65.737 compartilhamentos, dava conta de que o presidente do PDT teria ordenado que a “militância pró-Dilma” fosse armada às manifestações no domingo. “As pessoas estão buscando informações que confirmem suas posições políticas apaixonadas e retirando o papel da imprensa de confirmar essas informações”, conclui um dos pesquisadores da USP, Pablo Ortellado.
Manipulação e perda de credibilidade
Para profissionais experientes, com passagens por grandes veículos, há uma perda de credibilidade por parte da mídia. “Na operação Lava Jato, se formos fazer um balanço do que há de investigação jornalística é muito pouco. Quase tudo vem pronto da Justiça e do Ministério Público. A pergunta é: por que os jornais não fazem reportagem?”, questiona o jornalista Moisés Mendes, que se demitiu do jornal Zero Hora no final de março.
Foto: Igor Sperotto
A substituição da reportagem pelo teor mais analítico da imprensa é um acontecimento mundial que vem a reboque da crise dos meios de comunicação e impôs a opção pela opinião em detrimento do levantamento de informações exclusivas por uma questão econômica: investigação jornalística demanda tempo e dinheiro que as empresas preferem investir no pagamento de colunistas que se apresentam como grifes. Resta à reportagem confirmar teses, como afirma Eugênio Bucci: “repórteres se lançam aos telefones e às vezes até as ruas, pois ainda há os que gastam sola de sapato, em busca das aspas que eles, ou seus chefes, querem ouvir”. Paulo Henrique Amorim relata em seu livro O quarto poder que Roberto Marinho, ao definir a Globo em uma frase disse certa vez ao diretor de telejornalismo da emissora, Armando Nogueira: “A Globo é o que é mais pelo que não deu do que pelo que deu”.