CULTURA

O sargento, o marechal e o faquir

Por César Fraga / Publicado em 12 de agosto de 2016

O sargento, o marechal e o faquir

Imagens: Acervo de família e Memorial do Judiciário do RS/ Reprodução

Imagens: Acervo de família e Memorial do Judiciário do RS/ Reprodução

O novo livro-reportagem do jornalista e escritor Rafael Guimaraens, O sargento, o marechal e o faquir (editora Libretos, 272 p.), reconstitui um dos crimes mais notórios cometidos pelos agentes do regime militar no Brasil: o caso das mãos amarradas. Para escrever o livro, o próprio autor precisou reviver o golpe de 1964 e o contexto que resultou no cadáver de um ex-militar preso pelo DOPS que apareceu às margens do Guaíba. Por ironia, Guimaraens redigiu o livro no mesmo período em que se dava outro golpe, o golpe chamado constitucional ou brando, o qual afastou a presidente Dilma Rousseff do cargo. Fato que quase fez o autor desistir da obra, embora se tratasse de uma coincidência, apenas.

O livro narra a trajetória do sargento Manoel Raymundo Soares, um dos líderes do Comando dos Sargentos, expulso do Exército em 1964, que participava da resistência à ditadura militar. Após duas tentativas de insurreição armada em Porto Alegre, sua organização começava a articular a guerrilha de Caparaó, no Espírito Santo. Antes de viajar, Soares ainda tentou promover uma panfleteação contra a visita do presidente Castelo Branco, quando foi preso no dia 11 de março de 1966, denunciado por um informante do SNI, o cenógrafo e ex-faquir Edu Rodrigues.

Ferozmente torturado enquanto estava sob tutela da Polícia do Exército e no DOPS gaúcho, o ex-sargento resistiu sem revelar o paradeiro de seus companheiros. Enviado ilegalmente à Ilha do Presídio, permaneceu cinco meses detido sem acusação formada. No dia 13 de agosto, foi buscado na ilha por agentes do DOPS. Após uma simulação de que seria libertado, o ex-sargento foi assassinado.

Resistência contra a ditadura
O autor dividiu o livro em duas partes. A primeira, se vale do ponto de vista dos três personagens, o sargento Raymundo, o marechal Castelo Branco e o ex-faquir Edu, para reviver a sexta-feira, 11 de março de 1966. Em digressão, traça a trajetória dos três personagens: o sargento, um homem simples, filho de mãe solteira, nascido em Belém do Pará, sua chegada ao Rio de Janeiro, o alistamento no Exército, o envolvimento nas lutas dos sargentos por dignidade, sua politização, sua refinada formação, a radicalização do movimento diante do autoritarismo das Forças Armadas, as duas tentativas de insurreição em Porto Alegre, sua prisão e a resistência à tortura. Trata também dos dilemas do marechal Castelo Branco, o primeiro ditador, que gostaria de abreviar a presença dos militares no Governo, mas rendeu-se à linha dura. E conta ainda a história do ex-faquir Edu Rodrigues, um medíocre personagem infiltrado pelo SNI no movimento de esquerda.

Resistência contra a ditadura

Foto: Igor Sperotto

Guimaraens: narrativa de romance policial e provas documentais expõem bastidores do Caso das Mãos Amarradas, crime que resultou de operação do DOPS com o SNI

Foto: Igor Sperotto

Já a segunda parte descreve a descoberta do corpo do sargento no Rio Jacuí, com as mãos amarradas às costas, a identificação do corpo, o enterro do ex-sargento, que paralisou Porto Alegre e se transformou em um ato contra a ditadura; a luta da viúva por Justiça, e a investigação simultânea realizada pela Delegacia de Homicídios e pela CPI da Assembleia. A narrativa de romance policial expõe os fatos de forma vertiginosa, e as provas, conforme aparecem, apontam para os órgãos de segurança, DOPS e SNI, como responsáveis pela execução de Manoel Raymundo Soares, revelando pela primeira vez um organismo clandestino chamado Dopinha, na Rua Santo Antônio, 600, em Porto Alegre, onde houve, comprovadamente, torturas e mortes. A obra mostra as pressões da cúpula policial sobre a investigação, a coragem do inspetor Carlos Leites, chefe da Divisão de Homicídios, a cobertura da imprensa e o papel desempenhado pelo promotor Paulo Claudio Tovo para que a verdade fosse esclarecida. O livro foi realizado a partir de entrevistas com vários personagens vivos, ex-combatentes, policiais e jornalistas, de pesquisas documentais sobre o período e os processos relativos à investigação do caso. Utiliza uma narrativa de livros político-policiais, reproduzindo as situações de drama, tensão e violência que marcam o episódio. A seguir, uma breve conversa do autor com o Extra Classe.

EC – Como nasceu a ideia do livro?
Rafael Guimaraens – Conheço essa história há muito tempo. No tempo do Coojornal, inclusive, fizemos uma matéria a respeito. Lá por 2006, eu fiz junto com o Claudinho Pereira um episódio para a RBS chamado Cartas da Ilha, que era a história baseada nas cartas que ele enviava para a esposa de forma clandestina enquanto esteve preso na Ilha do Presídio pelos militares. Foi quando tive acesso às cartas que comecei a reunir material que acabou resultando no livro. Mas a decisão de fazer o livro ocorreu de um ano e meio para cá.

Resistência contra a ditadura

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

EC – Quanto tempo de pesquisa?
Guimaraens – Fui atrás dos companheiros dele, que quase todos estão vivos. Na época do especial da TV, foi feita uma gravação com a viúva, lá no Rio de Janeiro.

EC – O livro conta quem são os agentes do DOPS responsáveis pela prisão e execução?
Guimaraens – Sim, porque tudo estava no processo. E o caso teve bastante repercussão justamente porque houve um vácuo entre versões. Na verdade, foi uma operação do DOPS com o SNI.

EC – Como foi a prisão?
Guimaraens – O sargento Manoel Raymundo Soares foi preso em uma armadilha. E é aí que entra o faquir na história. Mas antes é preciso entender por que esses sargentos rebeldes estavam aqui no Rio Grande do Sul. Eles tinham feito um acordo com o Brizola, que tinha uma obsessão por promover quarteladas aqui, porque ele achava que, em 1966, como ainda não tinha dois anos de golpe, ainda era possível revertê-lo. Então, ele precisava de gente que fizesse  isso aqui. Os sargentos estavam dispostos a fazer guerrilha, mas estilo cubana. Mas isso o Brizola não queria, por ser algo muito demorado, o que daria tempo da ditadura se legitimar. Então, fizeram um acordo: eles ajudariam na quartelada, que era uma tentativa de levante nos quartéis. Se não desse certo, o Brizola financiaria a guerrilha em Caparaó, com o dinheiro de Cuba. E o nosso personagem principal estava ligado ao grupo de sargentos rebeldes que fizeram todo um movimento reivindicatório de sargentos durante o governo Jango. Quando veio a ditadura, eles foram expulsos do Exército e criaram uma organização chamada Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), que, aliás, o Brizola queria que se chamasse Movimento Revolucionário Nacionalista (MoReNa). Fizeram duas tentativas de levante e as duas fracassaram. A prisão ocorreu quando o sargento já estava quase indo embora, mas resolveu fazer uma última ação, que foi a tal panfleteação contra o então presidente, o marechal Castelo Branco. A armadilha foi montada pelo dedo-duro do Exército, o faquir do título do livro, que era um montador de cenários do Theatro São Pedro, chamado Edu Rodrigues.

PRÉ-LANÇAMENTO – O sargento, o marechal e o faquir terá pré-lançamento no dia 11 de agosto, a partir das 19h, na Fundação Ecarta (Av. João Pessoa, 943). Antes da sessão de autógrafos, será promovido bate-papo acerca da obra com Carlos Frederico Guazzelli, advogado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade; Suzana Lisbôa, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; e o autor da obra, jornalista e escritor Rafael Guimaraens.

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