CULTURA

Cronista tem que ter lado

Por Vitor Necchi / Publicado em 13 de outubro de 2016

Cronista tem que ter lado

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Há dois tipos de humor. Um deles é o reacionário, que atinge a sogra, a bicha, o português, o negro, perpetuando preconceito, e se trata de uma característica da gozação no Brasil. O outro tipo de humor esclarece – e nesse o Luis Fernando é mestre. Quem faz a conceituação é o chargista e cartunista Edgar Vasques, 66 anos, para enaltecer o Verissimo que, por prerrogativa da amizade, chama simplesmente de Luis Fernando. Ao falar do parceiro que, há pouco, no dia 26 de setembro, completou 80 anos, Vasques não economiza: “Foi o farol da minha geração”.

A geração referida são os cartunistas e chargistas que começaram a trabalhar nos anos 1970, sob o jugo da ditadura militar. Vasques conta que era bastante difícil vislumbrar o que fazer, como tratar certos temas. “Havia censura, se corria perigo, com chances de ir para cadeia”, recorda. “Naquele momento, Luis Fernando indicava o caminho”. O posicionamento sempre caracterizou a escrita de Verissimo. “Ele nos situava por ter duas grandes marcas: lucidez e precisão”, resume.

Vasques é outro gigante do ofício. De sua pena, nasceu um dos mais famosos personagens das tiras brasileiras: o anti-herói Rango, que, em plena ditadura, discutia a fome. Sem grana, sem comida, sem trabalho, a figura vivia dentro de uma lata de lixo. O conjunto de histórias deste miserável originou o livro de estreia da L&PM Editores, em agosto de 1974. O pai de Luis Fernando assinou o prefácio. “Foi uma atitude política do Erico, manifestação de sua desconformidade com a censura, com o fato de a imprensa não falar de problemas como a fome”, avalia Vasques.

No início dos anos 1980, Vasques e Luis Fernando Verissimo se aproximaram quando a L&PM resolveu transformar em quadrinhos as histórias do Analista de Bagé, célebre personagem criado pelo agora octogenário escritor. Vasques ilustrou as bravatas do psicanalista bagual que usava o joelhaço como técnica para acabar com a frescura dos pacientes que se refestelavam no divã forrado com pelego. As façanhas terapêuticas também foram publicadas na revista Playboy.

Posicionado desde 1967
Verissimo é categórico: cronista tem que ter lado. Isso ele pratica desde 1967, quando ganhou espaço assinado em jornal. “Uma época braba da ditadura, governo Médici, então a gente meio que tinha de engolir”, recorda o escritor. “Às vezes escrevia alguma coisa sabendo que não seria publicado, só pra descarregar, pra ter a satisfação de ter escrito”.
Ele conta que, no Rio Grande do Sul, existia mais autocensura dos jornais do que propriamente censura. Para contornar os limites, recorria às entrelinhas. Depois da redemocratização, passou por um episódio em que sua opinião causou reação nos dirigentes do veículo. Foi durante a campanha que culminou com a vitória de Fernando Collor de Mello, em 1989. “Na Zero Hora, o Sérgio da Costa Franco tinha escrito uma crônica criticando o Collor, e eu também, então eles resolveram não publicar as duas ao mesmo tempo, acharam que seria demais”, recorda. A veiculação do texto de Verissimo acabou adiada dois dias. “Foi uma meia censura”.

Edgar Vaques garante que Verissimo dispõe de opinião serena e firme sobre tudo: “Luis Fernando, assim como o pai, teve a coragem de se posicionar em momentos críticos”. E claro que isso agita os leitores. “Atualmente, a gente está arriscado a receber carta desaforada, xingando a gente”, lamenta Verissimo. “Há cartas me atacando, me mandando viver em Cuba, perguntando por que eu não fui pra Coreia do Norte. Não me influenciam. Inclusive, quando começo a ler e vejo que vão me xingar, nem leio o resto”.

Verissimo se considera um homem de esquerda, mas ressalva: “Não sou um ativista político. Dou meu palpite, minha opinião, e me descreveria como um socialista democrático”. Ao se definir, logo se compara ao pai: “Ele se declarava socialista, contra qualquer tipo de totalitarismo, de esquerda ou de direita. Esta é minha posição”. O jornalista, chargista e humorista Fraga lembra algo que Verissimo escreveu: diante das injustiças e arbitrariedades no Brasil, quem for neutro ou imparcial é conivente.
Convivendo com Verissimo desde 1973, Fraga tem a sutileza que o afeto longevo concede para se delinear um amigo: “É uma rara pessoa, capaz de ser veemente da boca pra dentro. E com tamanha verve transbordando, precisou extravasar em canais de expressão além da escrita brilhante. Assim criou impagável galeria de tipos a partir das Cobras e outros bichos. Através desses personagens no traço e de outras criaturas descritas, LFV conseguiu potencializar a fina ironia e consubstanciar a acuidade crítica. Do autor, seus personagens dizem o essencial: que ele, além de bravo animal político, é também magistral comentarista social”.

Cronista tem que ter lado

Foto: Igor Sperotto

“O objetivismo pode ser o último refúgio do calhorda, como o falso objetivismo é o túmulo da ética jornalística”

Foto: Igor Sperotto

Carta ao editor
Houve uma vez em que a contestação a uma crônica de Verissimo surgiu dentro do próprio jornal, mesmo que aparentemente velada. Foi durante a disputa presidencial de 1994, vencida por Fernando Henrique Cardoso. O cronista abriu seu voto para Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), na edição dominical de 11 de setembro: “As pessoas confundem imparcialidade com justiça. Quem pensa não pode ser imparcial, nem deve. Quem ganha a vida escrevendo o que pensa tem a obrigação de ser parcial, mesmo que sua parcialidade seja pela indefinição. […] O ideal de uma imprensa ‘isenta’, além de ser irrealista e inalcançável, é duvidoso. Posto como compromisso, obriga a imprensa a ser parcial da pior forma, que é a parcialidade disfarçada. Jornais como The New York Times declaram formalmente quem é seu candidato nas eleições e depois estão liberados para fazer o que quiserem, até para serem justos”.

No mesmo texto, afirmou: “O objetivismo pode ser o último refúgio do calhorda, como o falso objetivismo é o túmulo da ética jornalística”. E após declarar que votaria no Lula, concluiu: “Eu só não quero é que no futuro me acusem de ter sido objetivo. Logo numa hora destas”.

O então todo poderoso diretor de redação de Zero Hora, Augusto Nunes, publicava aos sábados um texto sempre intitulado Carta ao Leitor. No dia 17 de setembro daquele ano, mandou um recado para Verissimo, sem se referir diretamente ao cronista. Discorreu sobre objetividade e imparcialidade jornalística, bom senso, honestidade intelectual e, ao final, baseando-se na performance de jornalistas da televisão CNN, dos Estados Unidos, que se encontravam no Iraque quando explodiu a Guerra do Golfo em 1990, escreveu: “Os repórteres deslocados para a frente de Bagdá deram uma aula notável, ao vivo e em cores, de como agir com isenção mesmo durante uma guerra. São lições perfeitamente aplicáveis à batalha eleitoral em curso no Brasil. […] Acreditar que é impossível ser imparcial equivale a decretar a morte da honestidade intelectual”.

E no dia 25 de setembro, Verissimo publica um texto chamado, ironicamente, de Carta ao Editor, se dirigindo nominalmente ao diretor: “Prezado Augusto: Obrigado pela sua carta de 17/9, que passo a responder. […] Você admira a objetividade dos jornalistas da CNN diante do bombardeio de Bagdá, eu acho que quem mantém a objetividade diante de uma cidade bombardeada pode ser um bom jornalista mas é um péssimo ser humano”.

Não era qualquer pessoa que teria estofo e segurança para enfrentar Augusto Nunes. Sobre o episódio, Verissimo comenta, acomodado na poltrona vermelha posicionada em um canto da sua biblioteca repleta de livros e obras de arte: “As pessoas acham que colunista abrir o voto é abusar do poder da imprensa. Nos Estados Unidos e na Europa, não só os colunistas abrem o voto, mas o próprio jornal diz qual candidato apoia. Então foi isso, foi só uma troca de cartas. Não foi além da publicação desses textos”.

A postura adotada reforça o depoimento de Fraga: “O extraordinário na postura dele é que, como balizador combativo em nossos péssimos tempos, sua linguagem permanece civilizada. Talvez seja a pessoa mais civilizada a falar da barbárie. Daí a admiração e a queridice que os brasileiros têm por ele”.

COLUNISTA – Verissimo é parceiro do jornal Extra Classe desde sua primeira edição em março de 1996. “Pela causa”, como ele mesmo diz.

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