Ilustração: Frame do filme Castillo y el Armado/ Divulgação
Ilustração: Frame do filme Castillo y el Armado/ Divulgação
Marco zero do cinema de animação, o desenho O Kaiser, do caricaturista fluminense Álvaro Marins, o Seth, está completando cem anos. Estreou nos cinemas em 1917, sintetizando o contexto geopolítico da época – a Primeira Guerra deflagrada em 1914 terminaria em novembro do ano seguinte. Um século depois, por falta de preservação, o que restou dessa charge animada foi um único fotograma. Em 2013, o documentário Luz Anima Ação, produzido pelo estúdio Ideograph, com direção de Eduardo Calvet, reuniu oito grandes nomes da animação brasileira para recriar a obra pioneira a partir desse fragmento, em um trabalho coletivo que alterna diferentes técnicas de animação e virou um ícone da diversidade da animação produzida no país. A celebração do centenário de O Kaiser coincide com um período de profissionalização, aprimoramento técnico, grandes produções e a projeção de profissionais brasileiros da animação na indústria do cinema, o que se traduz em indicações e prêmios em festivais internacionais de cinema.
O curta-metragem Castillo y el Armado, dirigido, roteirizado e editado por Pedro Harres, por exemplo, conquistou 55 prêmios e menções desde o seu lançamento em 2014 e foi selecionado em mais de 200 festivais – entre os quais o 71º Festival de Veneza. Entre as premiações, o de Melhor Curta no FICG30 Guadalajara, México e de Direção de Arte no Anima Mundi Brasil. A produção da Otto Desenhos Animados, de Porto Alegre, reconstitui fatos vivenciados pelo uruguaio Ruben Castillo, diretor de arte e protagonista do filme. Falado em um dialeto fronteiriço do Plata, conta a história de “um homem que encontra sua própria brutalidade na linha do anzol em uma noite de ventania”. Castillo explica que o êxito da produção se deve ao rompimento do desenho com a animação tradicional: “é todo feito à mão, com uma estética que abdica de técnicas rebuscadas”.
Não é por acaso que ele empresta o nome ao personagem central da trama: “passei boa parte da infância dentro da água, com muita liberdade, inclusive para conviver com o perigo”, relata o artista, que é natural de Colônia de Sacramento, às margens do Prata.
Muito do prestígio do cinema brasileiro de animação é atribuído a um feito inédito: a conquista de dois prêmios no Festival de Annecy, na França, considerado pelos profissionais da animação como o Cannes do desenho animado. Em 2014, Uma história de amor e fúria, de Luiz Bolognesi, conquistou o prêmio de melhor longa-metragem. No ano seguinte, O Menino e o Mundo, dirigido por Alê Abreu, foi premiado como melhor longa pelo público e pelo júri. Chancelado pelo prêmio no mais importante festival do gênero, o filme foi vendido para mais de 20 países, entre os quais Estados Unidos, França e Bélgica.
Mais recentemente, Leo Matsuda ficou entre os dez pré-classificados na categoria melhor curta-metragem de animação do Oscar 2017, com Trabalho interno, (Inner Workings), produzido pela Disney. No ano passado, O Menino e o Mundo foi um dos cinco selecionados para a categoria Melhor Animação do Oscar. Ainda que não tenham conquistado as estatuetas da Academia, as produções brasileiras ganharam o mundo. O filme de Abreu foi vendido para 80 países e, na França, levou 100 mil pessoas aos cinemas.
Arquivo Ancine
Ilustração: Ancine/ Divulgação
Transplantes, patrimônio público, piratas e bruxarias
Divulgação
“Eu que vivi os anos 1980 teria sido internado se dissesse naquela época que um curta gaúcho um dia chegaria entre os 20 indicados ao Oscar, que foi o caso do Castillo y El Armado. Nosso horizonte era, no máximo, o Festival de Gramado”, compara o ilustrador e quadrinista gaúcho Eloar Guazzelli Filho, o Alemão Guazzelli, que atualmente leciona composição de personagens no bacharelado em Animação da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo. “Se antes a saída para quem trabalhava com animação era migrar, hoje o momento não podia ser melhor. Os produtores vêm ao país em busca das nossas histórias e profissionais. Claro que há um falso humanismo dos países ricos, que não querem ver a gente competindo e a má vontade da mídia local. A imprensa trata o cinema de animação com um certo desprezo, como coisa menor e menos séria. Cultivam um preconceito fofo ao dizerem assim: tá, já falamos do desenho animado, agora vamos falar de coisa séria”, critica Guazzelli.
Ele revela que está produzindo dois curtas, um autoral, Esperanto, que aborda o tema da doação de órgãos “no qual gostaria de ter a colaboração de Os 3 Plantados” (banda formada pelos músicos Bebeto Alves, Jimi Joe e King Jim); e Sapucaia, que denuncia a destruição do patrimônio público e a extinção de fundações no Rio Grande do Sul.
“No audiovisual, em que a animação está inserida, o Brasil está numa situação que não pensei que fosse ver em vida. Basta com parar o número de produções em andamento. Até 1972, eram dois longas de animação em produção em todo o país. Nos anos 1980 tínhamos cinco e, atualmente, são 23. É a terceira maior indústria, com produções para cinema, tevê, web e jogos. Em 2016, movimentou R$ 24,5 bilhões”, avalia o cineasta e animador gaúcho Otto Guerra, da Otto Desenhos Animados, que está produzindo os longa-metragens Bruxarias, coprodução Brasil-Espanha, e A cidade dos piratas, da cartunista Laerte Coutinho, além da série Os Filosofinhos, com base no trabalho da Tomo Editorial, entre outras animações.
Foto: Igor Sperotto
Lançado em 2013, o terceiro longa da Otto, Até Que a Sbórnia nos Separe, é outro exemplo de produção bem-sucedida: foi convidado pela curadoria a participar da 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, uma das principais vitrines de tendências, temáticas, narrativas e estéticas produzidas em todo o mundo. A animação conquistou já no lançamento o prêmio de Melhor Filme (júri popular) na Mostra de São Paulo e em Gramado, onde também foi premiado com o kikito de Melhor Filme. Totalmente digital, custou cerca de US$ 1 milhão e foi produzido com patrocínio e financiamento de diversas instâncias governamentais. “O Brasil é um dos países onde as leis de incentivo à cultura estão muito avança das. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) tem sido até agora a fonte de recursos do nosso cinema”, destaca Guerra.
QUADRINHOS
“É preguiça mesmo!”
Foto: Igor Sperotto
Aos 41 anos, a partir desta edição, o quadrinista rosariense radicado em Porto Alegre, Rafael Corrêa, passa a publicar suas tiras mensalmente no Extra Classe. Segundo ele, um sonho antigo, pois admirava o EC há tempos e relembra que visitava a redação do jornal com seu portfólio já no início dos anos 2000, quando ainda era estudante de Comunicação Social na PUCRS. “É uma honra e uma responsabilidade estar ao lado de mestres como Santiago e Edgar Vasques, além de ocupar um espaço que já foi do grande Canini”, diz.
Rafael, aos poucos, obteve reconhecimento dentro e fora do Brasil e já foi premiado em salões internacionais de países como a Argentina, Alemanha, Turquia e Armênia. Conhecido por sua capacidade de síntese e leveza no humor, utiliza pouco ou nenhum diálogo, o que dispensa aos seus quadrinhos, muitas vezes, a necessidade de tradução para outros idiomas. Característica, aliás, das tiras exclusivas que passam a ser produzidas para o EC – a série Rato Falho, publicada a partir desta edição, na página 27. Mas quando se toca no assunto da economia de texto nas tiras, ele brinca: “Não é capacidade de síntese, é preguiça mesmo!” – um tema que por ironia já virou até mesmo uma tira autobiográfica de um só quadrinho.
Formado em Comunicação Social pela PUCRS, é um dos fundadores do Coletivo Catarse de Porto Alegre onde atua como ilustrador e designer. É autor do personagem de tirinhas Artur, o Arteiro com o qual tem dois livros publicados: Direto pro SOE! (2006) e Piolhos Invaders (2007), ambos pela Razão Bureau Editorial. Em 2014 escreveu, desenhou e editou Criatura, e em 2015 o livro Sapatiras, sua última publicação em quadrinhos. Em 2010 foi diagnosticado com esclerose múltipla e desde julho de 2015 mantém um site, Memórias de um esclerosado (memoriasdeumesclerosado.tumblr.com), no qual conta, em forma de quadrinhos autobiográficos, sua experiência com a doença. Rafael também participa de diversos concursos de cartuns pelo mundo, tendo sido premiado em 33 deles. (por César Fraga)