CULTURA

O triunfo das trevas

Por Flavia Bemfica / Publicado em 11 de outubro de 2017
Cristoshiva, do acervo da exposição Queermuseu censurada por pressão de grupos conservadores e do MBL em Porto Alegre

Foto: Fernando Baril/ Reprodução

Cristoshiva, do acervo da exposição Queermuseu censurada por pressão de grupos conservadores e do MBL em Porto Alegre

Foto: Fernando Baril/ Reprodução

No final dos anos 1970, com a obra O queijo e os vermes – o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, o historiador italiano Carlo Ginzburg se transformou em referência internacional em estudos de micro-história. O livro, que narra fatos do dia a dia e o julgamento do moleiro Domenico Scandella, mais conhecido como Menocchio, em um tribunal do Santo Ofício no século 16, é um marco nas discussões entre as escolas históricas e leitura obrigatória entre pesquisadores sociais. Não apenas pelos debates sem fim a respeito de como, e em que medida, o estudo de um caso específico pode, ou não, ser considerado para tirar conclusões sobre uma época. Mas porque, em O queijo…, Ginzburg avança sobre regras da linguística, da comunicação, das ciências sociais, da antropologia, evidenciando a forma como um ou mais conceitos e informações podem receber interpretações completamente diferentes, conforme a ‘bagagem’, de quem os acessa.

Nem camponês e nem nobre, Menocchio, que devido a sua atividade tinha um certo grau de respeitabilidade em sua aldeia, misturou, adaptou, por vezes ‘torceu’ o que leu, não raro chegando a conclusões tão equivocadas quanto surpreendentes. Ao mesclar suas convicções às diferentes linhas de pensamento disponíveis nas leituras às quais teve acesso, acabou concluindo por um confuso sistema teórico. Imperdoável em uma época marcada pela pretensão da uniformidade de pensamento, a perseguição implacável a tudo o que não se enquadrasse na cartilha da Inquisição, a necessidade de criar inimigos como modo de ganhar força, e o medo, para o bem ou para o mal, da reflexão em profundidade.

Cinco séculos depois, há quem se pergunte se existe algum comparativo possível entre os acontecimentos ocorridos na pequena aldeia de Menocchio, a Montereale, e os movimentos observados em grandes cidades brasileiras orgulhosas de sua contemporaneidade, como Porto Alegre. Onde novos tribunais de Inquisição se estabelecem e julgam com velocidade nas redes sociais, constrangendo e confrontando com violência os pensamentos divergentes. Onde fatos e informações são distorcidos de tal forma que, assim como às vezes acontecia com Menocchio e seus juízes, restam interpretados como o oposto do que são. E onde movimentos de origens pouco claras asseguram ter surgido dentro do mesmo arcabouço de suposições que permitiu a Menocchio crer na teoria da geração espontânea. Que, como se sabe, ao lançar luzes sobre o obscurantismo reinante na Idade Média, a ciência e o raciocínio lógico desmontaram.

Assim como em O queijo e os vermes, movimentos que ganharam visibilidade nas ruas nos últimos quatro anos em grandes cidades brasileiras e hoje acreditam ter força para determinar a uniformidade de pensamento pela via do constrangimento são mais do que o estudo de um caso específico. Mais do que pós-verdade, porque não se trata apenas de repetir uma mentira à exaustão, desclassificar opositores e insinuar dados falsos. Mais do que o reflexo de uma sociedade acostumada e que, não raro, admira o abuso. E mais do que, de forma equivocada, são tratados por setores ‘progressistas’ tradicionais, que insistem em caracterizá-los como “insignificantes”.

“É verdade que algumas das práticas de parte destes movimentos lembram a Idade Média. Só que, na Idade Média, existia uma ideia de ordem teocrática. Também é preciso ter cuidado com comparações a respeito da ideia da mentira repetida atribuída a Joseph Goebbels, porque não há, nesses casos, a atividade formal do Estado com todo o seu aparato. O que se destaca, na verdade, é o rancor desumanizante de determinados grupos, é a tentativa de destruição de uma ordem democrática que respeita os direitos humanos”, adverte o coordenador do Núcleo de Pesquisas em Organizações Civis, Segurança Pública e Cidadania da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), Emil Sobottka.

O alerta feito pelo professor norteia a discussão para a complexidade que envolve os movimentos ‘espontâneos’ que, quando surgiram, se autodenominavam apolíticos e focavam na bandeira do combate à corrupção. Mas que, mais recentemente, têm ressuscitado aspectos de ordem moral para justificar suas ações. Mesmo que a moral seja, grosso modo, definida como o conjunto de regras e normas adquiridas e aceitas em uma sociedade, e relacionado, justamente, à humanidade dos indivíduos.

Não só na época de Menocchio, o argumento da defesa de um determinado conceito, valor ou prática foi, de fato, usado para justificar ações que o corroem. Os tribunais da Inquisição se utilizaram do termo herege para abrigar tudo o que, de forma subjetiva, e indistintamente, reconhecessem como imoralidade, amoralidade, aberração, deturpação e questionamento. Mesmo que caracterizassem coisas completamente diferentes.

Retórica para destruir reputações

A Idade Média acabou, mas a técnica de usar um só termo para descrever um conjunto de atribuições negativas e com ele ‘liquidar’ um indivíduo ou grupo prosperou. No Brasil, em épocas recentes, para acabar com a reputação de alguém, bastava taxá-lo de ‘comunista’. Hoje, para parcelas significativas da população, duas expressões são associadas a um conjunto de valores negativos: ‘petista’, quando se quer tratar de imoralidades de ordem financeira e falta de caráter. E ‘direitos humanos’, como equivalente a um conjunto de ideias e ações propagadas por ‘defensores de tarados e bandidos’.

“Enfrentamos grandes dificuldades em relação a duas questões fundamentais em sociedades nas quais a democracia avançou. A primeira é a capacidade de empatia, o conseguir olhar o mundo como se eu fosse a pessoa de quem estou discordando. A segunda é o comprometimento com os nossos próprios valores, aqueles que cobramos dos outros mas que, não raro, tentamos subverter em nossas ações”, resume Sobottka.

Essas dificuldades, aponta o professor, não se resumem a movimentos descritos como ‘conservadores’ ou ‘de direita’ no espectro ideológico. Nos anos que antecederam o avanço da ‘nova direita’, parte dos movimentos sociais ‘à esquerda’, e com pautas progressistas como bandeiras, ‘esqueceu’ de que o debate deveria ser feito “dentro de um movimento público, aberto e democrático, sem imposições”, como diz Sobottka. São exemplos conhecidos a ridicularização constante a que parte dos movimentos ‘progressistas’ segue expondo posições como as contrárias ao aborto e à união civil homossexual, bem como alguns preceitos de determinadas crenças religiosas. “Deveria se ter mais coragem de defender que as pessoas tenham o direito de escolha e sejam respeitadas”, assinala o professor.

O coordenador do Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia da PUCRS, André Salata, concorda que muitas das características dos atuais movimentos ‘à direita’ não são novidade, e já foram usados à direita e à esquerda. “A manipulação de forma a fazer com que a emoção se sobreponha à razão, por exemplo, não é novidade. O discurso inflamado como modo de obter apoio também não. E nem as provocações como estratégia para desestabilizar adversários. Tudo isso faz parte do repertório de ação de movimentos sociais. Novidade é a guinada conservadora de partidos de centro-direita e até de centro-esquerda, é este tipo de discurso começar a fazer parte do mainstream político. Em 2010, o José Serra (PSDB) ensaiou fazer isso na corrida presidencial, e não funcionou. Mas, agora, parece haver outro movimento e isto sim merece atenção”, conclui ele.

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