O jornal underground que driblou a censura
Foto: Igor Sperotto
No período mais obscuro da ditadura militar, quando as redações eram censuradas pelo regime, um jornal alternativo de Porto Alegre aprofundou a cobertura de temas polêmicos, publicou reportagens e entrevistas de artistas e ativistas, exercitou a crítica e reinventou um jornalismo de contracultura que o tornou referência entre os nanicos – antes do surgimento de O Pasquim e do Coojornal. O Cepegê/Exemplar começou a circular em agosto de 1967 – quase três anos e meio depois do golpe militar que derrubou o então presidente João Goulart em março de 1964 – e durou até outubro de 1973, 12 anos antes da aprovação da Lei da Anistia.
Mantido pela incorporadora que construiu o Clube do Professor Gaúcho, empreendimento do Centro dos Professores Primários do Estado do RS, o jornal começou como Cepegê, com cara de house organ, ou seja, seu papel era divulgar para os professores o andamento das obras e as realizações da diretoria. A redação, instalada em uma sala da construtora e devidamente remunerada, era formada por quatro estudantes de jornalismo: o editor, Juarez Fonseca, idealizador da publicação, Adhemar Vargas de Freitas, Adélia Yates e Sérgio Becker.
“O jornal começou com uma cara estudantil, de quem estava aprendendo, mas em pouco tempo ganhou corpo, e ainda mais corpo, e logo passou a despertar a curiosidade e a admiração dos jovens jornalistas que assumiam espaços na imprensa de Porto Alegre. A grande maioria deles passou a colaborar, assinando textos e notas. A geração de jornalistas formada do fim dos anos 1960 ao início dos 1970 escapava da censura e dos parâmetros dos grandes jornais, escrevendo no Exemplar”, relata Juarez Fonseca (foto).
O projeto evoluiu, mudou o nome para Exemplar, e se converteu em um jornal de contracultura. Passou a publicar entrevistas polêmicas, reportagens aprofundadas sobre temas locais e internacionais que os jornalões não ousavam pautar. Com uma linha editorial influenciada por outros veículos alternativos, o jornal nunca sofreu interferência dos militares de plantão, pois apesar do ativismo político da cobertura, firmava-se como um veículo cultural. “Os militares não se interessavam por um jornal de cultura”. Para manter os censores à distância, a equipe cumpria a pauta institucional, que era do interesse da incorporadora, muitas vezes dando voz a autoridades oficiais, empresários. Mas também manifestava no restante do conteúdo a insatisfação com o regime militar e abria espaço para as pautas “malditas”.
Nas páginas das 59 edições, além das pautas de educação, notas e grandes reportagens incendeiam o debate e a imaginação na província, ao fazer circular notícias sobre os principais acontecimentos dos anos 1960, Beatles, Woodstock, o maio de 1960 na França, o projeto Rondon, a Suécia – país do amor livre, o tropicalismo, o homem na lua, os festivais, o pensamento de ícones da contracultura. Em busca de pautas de interesse dos professores, o jornal também incursionava pelo interior do estado e, no auge, chegou a ter 28 páginas e circulou com mais de 20 mil exemplares.
Trecho exclusivo on-line
Trecho exclusivo on-line
ENTREVISTA | JUAREZ FONSECA
O ambiente era de efervescência cultural
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Extra Classe – Como era o ambiente em que surgiu o jornal Cepegê/Exemplar?
Juarez Fonseca – O curso de Jornalismo da Ufrgs, que eu fazia desde 1967, era vinculado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e, em 1970, passou a ser faculdade (*). O Centro Acadêmico tinha um cursinho pré-vestibular no qual os alunos mais adiantados davam aula. E eu fiquei de diretor. Uma das alunas trabalhava na Incorporadora Raffo, que estava construindo o Clube do Professor Gaúcho e, nessa época, em 1967, apenas vendiam títulos. As obras começaram depois. Ela comentou que queriam fazer um jornal para divulgar mais o Clube, que era construído pela Incorporadora, mas o empreendimento era do Centro dos Professores Primários do Estado do Rio Grande do Sul – CPPERS. A incorporadora resolveu financiar o jornal para ajudar a vender títulos. Falei com o Walter Raffo, que era o diretor da incorporadora e comecei a fazer o primeiro número, que saiu em agosto de 1967.
[*A Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da Ufrgs foi criada em 1970 com a unificação dos cursos de Biblioteconomia e de Jornalismo. O curso de jornalismo, até então pertencente à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras passa a ter status de faculdade. A mudança foi uma decorrência das políticas instituídas pela Reforma Universitária de 1968].
EC – Quem iniciou no projeto?
Fonseca – Esse jornal teve 59 edições mensais. Era uma equipe de quatro pessoas, eu e o Ademar Vargas de Freitas, estudantes do primeiro ano de jornalismo, e Sérgio Becker e Adélia Yates, do segundo ano. No início, o jornal se espelhou no Jornal de Turismo do Rio Grande do Sul, que era editado pela colega do terceiro ano, Beatriz Malheiros Miranda. Ela pegava sempre o pessoal dos anos anteriores para ajudar a fazer. Eu fui um dos primeiros, fiz diagramação, fotografia, textos, o que serviu de modelo quando eu e esses três colegas criamos o jornal CePeGê. Começamos a imprimir nas oficinas do Jornal do Dia, da igreja católica, que ficavam ali na Duque de Caxias, perto do Palácio do Governo. Depois do terceiro ou quarto número, a gráfica fechou e a gente passou a rodar no também extinto Diário de Notícias. Eu desenhei o logotipo, o bonequinho que tem na capa se inspirou no turista do logo do Jornal de Turismo. Em certos aspectos, era uma coisa bem ginasiana mesmo.
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Fonseca – Estávamos no primeiro ano da faculdade. Naquela época estavam surgindo no Brasil O Pasquim, a Revista Realidade, a Veja, Jornal da Tarde. A editora Arte e Comunicação, de São Paulo, editou a revista Bondinho, que circulava na rede de supermercados Pão de Açúcar e era feita por um pessoal que já tinha trabalhado na Realidade, em edições da Editora Abril. Essas cinco publicações influenciaram diretamente o trabalho que a gente fazia. Eu acho que o mais notável disso, analisando o jornal agora, é que a gente crescia de uma maneira absurda. O número cinco já é completamente diferente do número 1, o número 10 já era outra coisa e assim por diante, até chegar nas bancas. Durou três números apenas nas bancas, depois a incorporadora parou de bancar a publicação. O jornal fazia a promoção do Clube, acompanhou toda a construção da sede campestre, o início do prédio onde hoje é a sede do Cpers-Sindicato, ao lado do Plaza São Rafael. Então, a gente dava saltos.
EC – Primeiro circulou como Cepegê, depois mudou de nome…
Fonseca – A última vez que aparece Cepegê, a sigla do Clube do Professor Gaúcho, é no número 44, de junho de 1971 e, a partir de julho passa a ser só Exemplar.
EC – Como um jornal corporativo se transformou em uma referência do jornalismo de contracultura?
Fonseca – Uma coisa que eu acho notável da história é que o Walter Raffo estava bancando tudo isso. Nós começamos a montar uma equipe, a pegar gente das outras redações para fazer colaboração, pagava um cachê, coisa pequena, mas pagava. E no fim das contas, o conteúdo sobre o Clube, que era uma coisa dominante nos primeiros números, foi ficando para as últimas páginas. Criamos um jornal independente, que abordava tudo, claro que tinha uma característica, personalidade, uma linha editorial inspirada por aqueles cinco veículos que eu citei. Tinha outro lado que era a coisa hippie, da contracultura, muito forte no jornal quando ele amadurece mesmo, essa coisa da contracultura. E dezenas de jornalistas passaram pelas páginas do jornal.
EC – Quem, por exemplo?
Fonseca – Teve casos assim, por exemplo, do jornalista Antônio Britto Filho, que depois viria a ser assessor de imprensa do Tancredo Neves e governador do estado. Ele publicou os primeiros textos no Cepegê/Exemplar. Waldir Zwetsch, diretor de jornalismo da Band em São Paulo; Danilo Ucha, que foi editor da Zero Hora e do Jornal do Comércio e tinha o Jornal da Noite era colaborador fixo; Keny Braga; o Fraga, esses são os nomes mais conhecidos. Era o jornal da imprensa, falava muito de imprensa, o tempo todo. Profissionais de todos os jornais de Porto Alegre colaboravam, publicavam no Exemplar, se ofereciam pra fazer matérias. A cada edição a gente levava um pacote para as redações, todo mundo lia. A seção de cartas, quando o jornal começou a se tornar mais conhecido, publicava a opinião dos leitores, que se diziam maravilhados. Havia algumas críticas, mas na verdade nunca com veemência, era um jornal do qual todo mundo gostava, era um jornal simpático.
EC – Era mais de contracultura do que político.
Fonseca – Claro. Mas tinha a coisa política também. A gente não podia contrariar os interesses da incorporadora, embora às vezes até contrariasse. Estava lidando com os professores, com o estado, com as instituições públicas. Tem, por exemplo, a eleição do Médici, que a gente cobriu. Um jornal de esquerda não faria, mas a gente deu conta. Possivelmente devido a essa pluralidade, o jornal nunca sofreu qualquer tipo de censura. Três anos depois do encerramento do Exemplar, parte da equipe criou a revista Paralelo, que durou só quatro números e na qual foi instituída censura prévia. A gente continuou fazendo mais dois números com a censura e parou porque era muito desgastante levar para a Polícia Federal, para os censores lerem e vetarem. Tínhamos que produzir mais textos do que era necessário e era difícil, fazíamos shows pra manter a revista.
EC – Como avalia o jornalismo cultural hoje?
Fonseca – Eu acho que houve uma espécie de desmonte nos grandes jornais. Os segundos cadernos continuam, os grandes jornais brasileiros todos têm um caderno para divulgação de música, teatro, cinema, literatura, artes plásticas. Mas antes a gente fazia críticas de shows, comentários de exposições de artes, crítica de peças de teatro, havia um acompanhamento maior, dava matérias antes do show, entrevistava o artista e publicava grandes matérias depois. Com raríssimas exceções, hoje não se sabe o que os artistas brasileiros estão pensando. Fiz mais de 200 entrevistas para a Zero Hora, com todos os caras importantes da música brasileira, todos. E isso aí desapareceu porque não tem espaço mais. Claro que a ZH tem hoje o caderno DOC, que traz sempre uma entrevista. Mas te digo assim, de 30 entrevistas que eles fazem, uma envolve questões de artes, música ou literatura. Nem a Folha, nem o Estadão, nem O Globo. Claro que são jornais de cidades seis vezes maiores que Porto Alegre ou mais até, mas mesmo eles… As áreas da cultura perderam muito em termos de volume de cobertura e os espaços foram reduzidos. Isso faz parte de um processo de redução do espaço do jornal. O espaço do jornal na leitura da população foi reduzido.
EC – A imprensa independente, que mais dava conta do recado, também encolheu…
Fonseca – No fim dos anos 60 e nos 70, a imprensa independente brasileira era superativa, colocava muita coisa na roda, todos os segmentos eram de certa forma atendidos pela imprensa independente, alternativa. Eram muitos veículos. Hoje praticamente não há mais veículo alternativo, não há financiamento. Isso migrou muito para a internet. Estamos vivendo um princípio disso, acho, porque tem muita coisa para acontecer. Mesmo que a internet seja uma realidade desde 1993, 94, por aí – eu lembro que a primeira página que tinha no Brasil era do Gilberto Gil –, as pessoas estão ainda aprendendo a se locomover, a se orientar dentro da quantidade de informação que a internet oferece.
EC – O que pode acontecer?
Fonseca – Eu acho que quando as pessoas conseguirem se situar melhor, elas vão voltar a ler jornal em papel. É tudo muito novo, a gente não sabe o que pode acontecer. Mas, por exemplo, uma coisa que se nota é que o e-book não emplacou, as editoras continuam lançando livros e livros e mais livros, vendem 50 mil exemplares de um livro e do e-book vendem cem, 200 exemplares. As pessoas não gostam de ler livros na internet. Não se pode dizer que o jornal morreu, aliás tem jornais que estão revivendo. O que eu sinto falta é da imprensa alternativa no Brasil, de veículos em papel, independentes, mesmo de notícias, mas da área cultural. É que isso é muito caro, um jornal diário de papel, não é qualquer um que vai se aventurar a fazer.
Do Cepegê ao Exemplar: depoimento do Fraga
O jornalista, publicitário e colunista do Extra Classe, José Guaraci Fraga, o Fraga, atuou como colaborador do Cepegê/Exemplar, no qual publicou suas primeiras frases, como afirma no texto a seguir: “Na 1ª vez que vi um Cepegê deixei de ser tosco: o jornal foi luz no fim da minha mesmice. Nas vezes seguintes, saía da farmácia na Voluntários da Pátria pra buscar o mensário na rua Uruguai, onde vivia um clichê: um salto pessoal a cada visita à redação. Aos poucos me senti em casa. A partir da fruição de páginas memoráveis, evoluí anos de uma edição pra outra. Já era um criador de frases mas com esse jornal inspirador passei a jorrá-las. Quando o Cepegê virou Exemplar, numa surpreendente linha de contracultura, pirei e fui tomado por uma aspiração: fazer parte daquela turma pensante e criativa. E então fui publicado pela 1ª vez no RS: devo ao Juarez meu começo amador (e ao Aníbal Bendatti meu começo profissional). Quanto a Porto Alegre, nem notou que a vanguarda jornalística circulara pela cidade.” Foto: Divulgação |