Edgar Vasques: nem sectário, nem otário (2ª parte)
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Lá por 1972, época do lançamento do personagem Rango, na Folha da Manhã, jornal do Grupo Caldas Júnior, do Correio do Povo, em paralelo, Edgar Vasques tinha uma sociedade com Ivan Pinheiro Machado e Paulo Lima numa agência de propaganda.
Lima, que na época já intermediava anúncios mediante comissão, cuidava da parte comercial. Ivan era responsável pela redação e Vasques, pela parte visual e gráfica.
Chamava-se Ciclo 5 Propaganda, e tinha mais dois sócios investidores.
Com o tempo ficaram apenas os três ex-colegas dos tempos de Colégio Aplicação e Ufrgs.
Mas Edgar não queria seguir na publicidade, muito menos ser empresário. Quando surgiu a chance de seguir na Folha da Manhã, se afastou da empresa, mesmo continuando sócio.
“Mas, logo depois que o Rango engrenou eles me chamaram para conversar”, conta Vasques.
Nesse meio tempo, Lima e Pinheiro Machado transformaram a agência de propaganda em editora e queriam publicar o Rango em formato de álbum.
Vasques, então, desistiu da sociedade para ser o primeiro autor da então jovem editora, a L&PM Editores.
Em 1974 sai o primeiro álbum do Rango com a coletânea das tiras veiculadas até ali, tornando-se o livro mais vendido na Feira do Livro daquele ano. “Foi a primeira vez que o campeão da feira não era um livro exclusivamente de textos”, recorda.
Extra Classe – Teve uma treta com a censura?
Edgar Vasques – Na época havia uma censura seletiva: para livro, para revistas, para teatro. Havia graus de controle. Quando o Ivan passou o livro pela censura, eles queriam caracterizá-lo como revista, o que o tornava mais censurável. Mas aí ele mostrou o prefácio do Erico Verissimo que dizia “recomendo este livro…”. Aí ele disse para o censor, “se o Erico tá dizendo que é livro, como é que tu vais dizer que é revista?”
EC – O Rango foi prefaciado pelo Erico Verissimo? Como assim?
Vasques – O Paulo Lima e o Pinheiro Machado estiveram na casa do Erico Verissimo e mostraram as tiras do Rango para ele. Na época, o Erico estava indignado com a ditadura militar e fez um prefácio me comparando com o Josué de Castro, como sendo eu um autor que coloca a fome em foco.
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Vasques – Embora a censura tenha sido branda com o livro, que acabou indo para as livrarias e também para as bancas de revistas, no mesmo ano, teve o episódio do Pasquim. Por causa das tiras do Rango, o Pasquim foi apreendido em todo o país. Isso rendeu um processo contra mim, como autor, e contra o Jaguar, como editor. Acabou não dando em nada, mas foram dois anos para se desvencilhar, mesmo que as alegações fossem idiotas. Eles já queriam pegar no pé do Pasquim, que já acumulava alguns processos. Nisso, o Ziraldo me convidou para publicar o Rango no Pasquim e passei a enviar tiras semanalmente. Até que, na semana da pátria de 1974, cuja campanha publicitária do governo Geisel tinham três pombinhas: uma azul, uma amarela e uma verde. Daí eu desenhei o Rango churrasqueando as pombinhas, quando alguém pergunta: “E aí, Rango, como é que tu tá?”, e ele responde: “esverdeado de fome, amarelado da icterícia e azulado anemia” (risos). Daí recebi uma intimação para ir na Polícia Federal. Veio até um policial do Rio de Janeiro para me interrogar. Depois de dois anos encerraram o processo.
EC – E por falar em Jaguar. Como você vê essa guinada do Jaguar à direita?
Vasques – Eu acho que a coisa ficou muito confusa. Naquela época era fácil. Existia um inimigo bem claro, muito opressivo. Muito opressivo, fora da Lei, inclusive. Te torturavam, te matavam, te sumiam.
EC – Hoje são opressivos dentro da Lei?
Vasques – Os caras deram um golpe com pretexto legal. Aprenderam a sofisticar a coisa.
EC – Mas, voltando ao Jaguar…
Vasques – Nos tempos da ditadura tu escolhia o teu lado. Muita gente escolheu ficar em cima do muro. Até, porque havia censura na Imprensa e muita gente que não acreditava e não acredita até hoje nas barbaridades que fizeram. Mas hoje ninguém pode dizer que não sabe, embora tenhamos uma imprensa facciosa. Naquela época a imprensa ainda podia argumentar que havia censura e por isso não era noticiado. E justo daí é que surge a imprensa alternativa, no meio disso, o Pasquim. E o Jaguar fez parte desta luta. Hoje não é tão fácil identificar o inimigo. Muita gente se desiludiu com a esquerda no poder por causa do discurso da corrupção. Mas o Jaguar não é um idiota. Pode ser que ele tenha aquela posição antiga do humorista que diz, “ninguém tá livre”.
EC – O cínico total e sem lado?
Vasques – Não chega a ser cínico, mas pensa que o papel do humorista é botar o dedo na ferida, não interessando quem é o paciente. Eu concordo com isso. Só que eu penso que existem duas coisas que o humorista não pode ser neste contexto. Não pode ser sectário e fechar os olhos pra coisas erradas só porque gosta do fulano ou porque tem ideias parecidas com as tuas, e também não pode ser otário, num momento em que existe uma campanha safada apedrejando só um lado não dá pra entrar nessa. Daí o humorista vai ali atirar uma pedrinha também? Peraí, bicho! O Jaguar não tá mais em idade pra isso. Ele foi trabalhar no jornal A Tarde, na Bahia, que é conservador e não faz nada que desagrade o patrão. Digo isso sem saber detalhes, apenas vendo o resultado do que é publicado. Fiquei decepcionado. Então, no mínimo ele está sendo otário, coisa que não é característica dele. Mas até entendo, numas, porque foi um cara que nunca teve uma militância clara e que nunca teve uma ideia para o país e reage aos fatos. Antes ele estava num contexto cercado de pessoas progressistas e tinha toda a contracultura como parceiros e a verve dele era direcionada para algo mais produtivo. Hoje, essa verve está sendo usada de uma forma recessiva. Dá pra entender, mas não dá para admitir.
EC – E esses 50 anos de carreira estás comemorando com um livro do Rango, mas também tem mais coisa por aí.
Vasques – Antes de me dar conta dos 50 anos eu já tinha pensado no livro do Rango. Tem uma coincidência aí, mas eu sou meio antimarketing, um idiota para os negócios. Tem cara que bota ali na empresa “desde 2005”. Eu não. Tenho 50 anos de trabalho e agora que me dei conta. Até porque eu não consigo ter perspectivas no sentido profissional. Sigo com o nariz em cima da prancheta.
EC – São quantos livros do Rango?
Vasques – Com material inédito, este será o décimo quinto, mas tem reedições e algumas coletâneas também. O novo livro se chama Crocodilagem – O Brasil visto de baixo e reunirá tiras publicadas no Extra Classe e tiras totalmente inéditas produzidas especialmente para o livro.
Ilustração: Edgar Vasques/Reprodução
Ilustração: Edgar Vasques/Reprodução
EC – Em termos de periodicidade o Extra Classe é o veículo que publicou o Rango por mais tempo?
Vasques – Com certeza, mas é uma tira diária que é publicada uma vez por mês. Imagina se fossem dez anos de tiras diárias.
EC – E o que te motivou a lançar um novo livro?
Vasques – Em um evento recente, promovido pela Margarete Moraes, no café-butique-galeria Nossa Cara, houve muito interesse por um livro mais antigo, de 2013, que eu tinha vários exemplares, chamado Edgar Vasques – Desenhista crônico, organizado pela Susana Gastal, editado com financiamento público, e que conta minha trajetória. Foram vendidos pelo menos 50. Foi uma surpresa haver tanto interesse em algo que eu já considerava manjado. Mas aí eu me dei conta que nesse caos que o golpe instaurou, porque para derrubar as conquistas de anos de socialdemocracia os caras tiveram que quebrar tudo. Quebrar a legalidade, quebrar a coerência, quebrar a lógica. Então as pessoas não sabem o que pensar. O dois mais dois não fecha. Uma técnica de criar confusão e se dar bem. No meio dessa confusão muitas pessoas estão sequiosas por um caminho, de opiniões com a mínima coerência e eu tenho sempre tentado fazer isso. Ao longo da minha carreira eu tenho tentado fazer isso: esclarecer as pessoas do que está acontecendo ao invés de usar o humor para mera distração ou entretenimento ou para confirmar preconceitos. São as piadas de anão, de veado, de sogra, português, fanho. Mas também tem o humor que quebra o preconceito. Eu sempre tentei, com o Rango, fazer isso. E, como já vai para onze anos do Rango no Extra Classe resolvi juntar isso e fazer mais um livro, e que, mais uma vez sairá pela L&PM.
EC – Além das tiras publicadas no Extra Classe terá material inédito?
Vasques – Sim, além do material publicado no Extra Classe foram produzidas tiras inéditas. E, uma coisa que diferencia este dos demais álbuns do Rango é que será em cores, já que de 2010 para cá, no Extra Classe, passei a finalizar o Rango em aquarela. Desde que saiu o último livro do Rango, lá pelos anos 1990, os processos de impressão em cores melhoraram muito. Originalmente, o Rango era preto e preto e branco. Inclusive nas primeiras tiras publicadas no Extra Classe.
Ilustração: Edgar Vasques / reprodução) Ilustração: Edgar Vasques / reprodução)
Vasques – O Paulo Caruso, que é presidente do conselho do Salão de Humor de Piracicaba, me convidou para participar do evento no final de agosto, e como ele ainda não conhecia o meu livro O desenhista crônico, ele me pediu para levar o livro. Mas eu vou chegar lá também com o Rango recém-saído da gráfica. (Nota: O evento também contará com a exposição Edgar Vasques 1968 -2018 – 50 anos pendurado no pincel).
EC – Como é tua relação com os Verissimo?
Vasques – De amizade. Minha relação começou com o Erico, que prefaciou o primeiro Rango. E, teve a Folha da Manhã, quando comecei a ter uma relação mais próxima com o Luis Fernando, que sempre fez parte do movimento do humor gaúcho. Que tinha outros caras importantes, como José Guaraci Fraga, o Santiago. Quando a L&PM passou também a editar o Luis Fernando, o Analista de Bagé foi um sucesso. A editora também tinha um braço nos quadrinhos, com autores nacionais e internacionais em álbuns. Moebius, etc. Daí a editora quis fazer o Analista de Bagé e Ed Mort em formato HQ. O Ed Mort ficou com o Miguel Paiva e eu fiquei com o Analista. Em 1985 saiu o primeiro álbum do Analista e foi um sucesso de vendas, apesar das histórias não serem inéditas. A primeira parceria mesmo começou aí.
Imagem: Reprodução
Imagem: Reprodução
EC – E a Playboy?
Vasques – O Luis Fernando também colaborava com a Playboy. Lá pelas tantas, não sei se o Luis Fernando ou os editores, tiveram a ideia de ter uma página do Analista em HQ. Aí começou uma página mensal em cores. Como a Playboy era impressa em rotogravura, tinha uma perfeição na cor. Essa colaboração foi importante de várias maneiras. Foram sete anos na Playboy todo mês, com uma página de histórias inéditas roteirizadas pelo Verissimo e desenhadas por mim especialmente para a revista.
EC – Foi aí que entrou a aquarela?
Vasques – Nisso, eu me aprimorei na aquarela. Essa técnica, até então eu só havia praticado de forma incipiente na faculdade. E como a Playboy era em cores eu vi a chance de aplicar essa técnica, que eu sempre gostei, por ser transparente e luminosa. Ela permite que o artista represente a luz. Se eu utilizar uma tinta que dá cobertura, o que tem embaixo some. Se der uma pincelada de amarelo e outra de azul por cima, terei azul. Mas com a aquarela, se eu der uma pincelada de amarelo e outra de azul terei o verde. Então defini isso. Eu já tinha alguma experiência com ecoline, que é uma tinta que também tem transparência, mas é mais carregada e menos suave. No Analista de Bagé, que foi publicado de 1983 a 1990 comecei usando ecoline e nanquim e fui migrando para a aquarela. O pagamento era ridículo. A Editora Abril se acha o máximo e que o artista estar publicando na Playboy era um favor. Mas no final foram sete anos mal-pagos, mas que teve, além da parceria com o Verissimo, um ganho artístico em termos de técnica. E, sim, teve bastante visibilidade.
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Vasques – Tem pedras no caminho. Profissionalmente eu estou bem deprimido. Só em 2018 eu perdi dois terços da minha renda como freelancer. Na minha opinião, esses sindicatos patronais deram um tiro no pé quando apoiaram o golpe, porque eles também perderam receita. Mas a vítima dessa perda de receita fui eu, que também frilava para esses sindicatos, que encerraram publicações ou reduziram. Eu tava que nem time pequeno, jogando em casa pelo empate. Agora, nem isso. Jogo como nunca e perco como sempre (longo silêncio). Eu tô trabalhando sem nenhuma retaguarda. A coisa tá dificílima. Mas tô tentando me virar de tudo quanto é jeito, jogando anzóis pra todos os lados para tentar pescar alguma coisa. Mas não responsabilizo ninguém por essa situação, a verdade é que tenho vivido os últimos dez anos empatando. O grande problema é que não estou ficando mais jovem a cada ano que passa e a minha situação profissional hoje é muito parecida com a que a que eu tinha quando comecei. Mas boa parte disso é porque não tenho o perfil de me administrar como uma empresa. Sou essencialmente artista e hoje essas duas coisas andam cada vez mais juntas. Eu sou um desenhista. Eu não sou um comerciante, um divulgador, um marqueteiro. Eu tenho um problema com a pejotização da arte, com burocracias, e pago um preço alto por isso. Metade dos meus cabelos brancos se devem a essa obrigatoriedade do artista também ser empresário de si mesmo. Eu sou um artista, cara. Eu produzo um depoimento do mundo. Agora, além disso vou ter de ser um vendedor, um propagandista, um empreendedor? Sou uma pessoa tímida que gosta de desenhar, sem vocação para administrador de carreira. O problema da timidez, não é que tu não faça as coisas, mas a energia emocional que se gasta e que é esgotante. Tem aquela frase irônica do Kahnweiler, marchand do Picasso, “pintar, qualquer um pinta, quero ver vender” (risos). Ao longo do tempo comecei a achar que ele tem razão. Não que qualquer um pinte, mas vender é difícil.
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