Brasil queima sua história e sua cultura há anos
Foto: Acervo Museu Nacional
Após 26 anos da descoberta de seu esqueleto em Lagoa Santa (MG), em 2000 se revelava ao mundo a face de Luzia, como foi batizada pelos pesquisadores, a mulher que teria sido uma das primeiras habitantes do Brasil. Morta entre os 20 e 25 anos de idade há cerca de 12 mil anos, o rosto de Luzia reconstituído pela equipe do inglês Richard Neave, da Universidade de Manchester, trouxe à vida uma descoberta que mudou as teorias sobre o povoamento das Américas: revelava feições semelhantes aos aborígenes australianos e negros da África.
Dezoito anos após, com a segunda morte de Luzia no incêndio que varreu o Museu Nacional no último dia 3 de setembro, ela sussurra outra informação importante que pode passar despercebida para alguns brasileiros: de 2008 para cá, seis instituições de memória e cultura pereceram sob as chamas só no Estado de São Paulo: o Teatro Cultura Artística, o auditório Simón Bolivar do Memorial da América Latina, o Liceu de Artes e Ofícios, o Museu da Língua Portuguesa, a Cinemateca Brasileira e o Instituto Butantan.
A série de eventos trágicos, na verdade, começou no estado sede do Museu Nacional com o incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio. Em 8 de julho de 1978, todo o acervo da instituição, incluindo obras de Picasso, Dali, Mondrian e a biblioteca de artes visuais pereceram sob chamas.
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
“O descaso e a ignorância parece fazer parte de um projeto de dissolução da nossa história, que não só faz parte do passado, mas também do futuro”, declara o carioca, radicado em Brasília, Wagner Barja, chefe do Sistema de Museus do Distrito Federal e diretor do Museu Nacional do Conjunto Cultural da República. Para o gestor, o ocorrido no Museu Nacional no Rio de Janeiro serve como estopim para essa reflexão. “Verbas reduzidas reduziram a cinzas nossa história”, desabafa.
Em São Paulo, o estado mais rico do Brasil, a falta de investimento na preservação e cultura, além das seis instituições que sofreram incêndios, o Museu do Ipiranga, mantido pela Universidade de São Paulo (USP) foi interditado em 2013 às pressas por risco de desabamento do forro. O Museu, que compreende ainda o mausoléu onde estão sepultados os corpos do Dom Pedro I e as imperatrizes Leopoldina e Amélia Eugênia, está há cinco anos fechado, sem previsão para reabertura.
TEATRO – O recorde, no entanto, ainda está com o Teatro Cultura Artística, inaugurado em 1950. Sete anos após o incêndio que durou mais de quatro horas e destruiu em agosto de 2008 grande parte de um dos mais tradicionais teatros de São Paulo, houve a liberação do alvará para as obras de seu restauro. O orçamento inicial para o retorno de suas operações era de R$ 100 milhões. Somente a primeira fase da obra, que iniciou em outubro de 2017, vai custar R$ 30 milhões. Em plena campanha de arrecadação para o acabamento do prédio, a previsão de reinauguração é estimada para 2021.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
MEMORIAL – Em novembro de 2013, o auditório Simón Bolivar do Memorial da América Latina foi bastante danificado por chamas que trouxeram abaixo o forro da plateia B do auditório. Uma tapeçaria de 800 metros quadrados feita pela artista Tomie Ohtake (1913-2015) foi completamente destruída. Apesar das obras para a restauração do auditório terem iniciado rapidamente em março de 2014, um princípio de incêndio voltou a ameaçar o conjunto do Memorial que saiu da prancheta de Oscar Niemayer. Ironicamente as madeiras que estavam no auditório para o seu restauro pegaram fogo. Após reforma de R$ 41,4 milhões, que incluiu o restauro da tapeçaria de Tomie Ohtake, o auditório do Memorial da América Latina foi reinaugurado.
LICEU – Em fevereiro de 2014, o acervo completo do Liceu de Artes e Ofícios em São Paulo foi destruído pelo fogo. Todos os quadros, esculturas e réplicas em gesso da instituição se perderam. Fundado em 1873, o Liceu se tornou referência na cidade como escola de ensino técnico profissionalizante e de formação geral. Reconhecido por seus trabalhos em marcenaria, serralheria e esculturas em madeira, o centro iniciou em 1905 a comercialização de seus produtos, como fonte de recursos para manutenção de cursos gratuitos. Foi no Liceu que em 1930, o país desenvolveu e fabricou o primeiro hidrômetro inteiramente nacional.
Foto: Bombeiros do Estado de São Paulo
LÍNGUA PORTUGUESA – Maltratada nas redações dos vestibulares e nas redes sociais, a língua portuguesa também sofreu em São Paulo. Com menos de uma década de vida, o Museu da Língua Portuguesa também se transformou em cinzas. Idealizado por Ralph Appelbau, autor do Museu do Holocausto, em Washington, e da Sala de Fósseis do Museu de História Natural, em Nova Iorque, um curto circuito acabou com o que estava se consolidando como um dos museus mais visitados do Brasil e da América do Sul. Além de todo o acervo interativo, o desastre ainda ceifou a vida do bombeiro civil Ronaldo Pereira. Com previsão para seu retorno no primeiro semestre de 2019, as obras estão estimadas em R$ 65 milhões.
CINEMA – Em fevereiro de 2016, mil rolos de filmes foram destruídos no incêndio que tomou conta de um galpão da Cinemateca Brasileira, na Vila Clementina em São Paulo. Guardados à parte, rolos de filmes que levavam em sua composição nitrato, substância inflamável usada em películas cinematográficas até a década de 50, foram alvos fáceis do verão paulista. Apesar de cerca de 80% das obras atingidas terem cópias de segurança, pelo menos 17 curta metragens e telejornais foram totalmente perdidos. A Cinemateca Brasileira tem um dos maiores acervos da América Latina. São cerca de 200 mil rolos de filmes, entre longas, curtas e cinejornais. Possui também um amplo acervo documental formado por livros, revistas, roteiros originais, fotografias e cartazes.
BUTANTAN – O pesar vivenciado hoje pela comunidade científica do mundo inteiro com a perda do Museu Nacional tem um pouco de similaridade com o desastre ocorrido em maio de 2010 com o Instituto Butantan, outra instituição mantida pela USP. “É uma tragédia científica global” declarou na época Harry Greene, professor de ecologia e biologia evolutiva da Universidade Cornell, em Nova York.
Não era para menos, o Butantan era o maior e mais importante acervo de espécies de cobras da região tropical do mundo, com uma coleção iniciada há mais de um século. Ao todo, a coleção possuía cerca de 77 mil serpentes registradas e cerca de 5 mil que ainda nem chegaram a ser catalogadas. “Cada um desses mais de 80 mil exemplares representava um ‘retrato’ da biologia de uma espécie, num determinado momento e lugar. Espécimes que foram e ainda poderiam ser uma fonte inestimável de informações sobre riquezas naturais de um país com uma biodiversidade extremamente rica”, afirmou Greene, autor do livro Snakes: the Evolution of Mistery in Nature, e que já tinha trabalhado em pesquisas com especialistas brasileiros no Instituto.
No incêndio do Butantan foram perdidos cerca de 178 mil exemplares de aranhas, 45 mil para serem catalogadas. Norman Platnick, curador da coleção de aranhas do Museu Americano de História Natural, em Nova York, lamentou na ocasião: “As coleções do Butantan formavam a principal base para o nosso conhecimento de uma grande proporção da fauna aracnídea sul-americana”.
A pesquisa e a cultura sofrem eterna dificuldade financeira
Verbas para a manutenção de institutos da cultura e da memória no Brasil sempre foram racionadas; jamais chegaram perto de instituições como o British Museum, em Londres, ou o Ermitage, em São Petesburgo, que tem, como o Museu Nacional, o propósito de ser uma espécie de síntese de tudo aquilo que a civilização humana reuniu em sua evolução cultural.
Um exemplo só já ecoa e soou estranho a toda imprensa internacional que deu destaque à tragédia de domingo na Quinta da Boa Vista. Enquanto em seu ápice nessa década, o Museu Nacional recebeu R$ 531 mil no ano de 2013, o British Museum tem um orçamento de cerca de 900 milhões de libras, aproximadamente R$ 4,8 bilhões. Levando em conta que o Museu Nacional reunia um acervo de 20 milhões de peças e o British Museum em torno de seis milhões, a notícia soou ainda mais alarmante ao público estrangeiro.
Descaso e PEC do congelamento
Para piorar, o orçamento que paulatinamente sofre reduções e atrasos, chegou a um repasse de apenas R$ 98 mil este ano por conta da lei aprovada por Temer que congela em 20 anos os investimentos da União. O descaso com o Museu Nacional foi verificado em junho passado quando a instituição completou seu bicentenário. Convidados, nenhum ministro de Estado marcou presença. Nem mesmo os responsáveis diretos pelo mais antigo museu do Brasil, os ministros da Educação e da Cultura.
Foto: Reprodução Twitter
Foto: Reprodução Twitter