CULTURA

Tamandaré, o homem e a lenda

Por Gilson Camargo / Publicado em 16 de maio de 2019
"Ele arriscou a vida desde jovem. Foi com 14 anos lutar pela Independência do Brasil e depois ele estava lá, com quase 70 anos, lutando no Paraguai. Estava em progresso um projeto para a colocação dos ex-escravos"

Foto: Igor Sperotto

“Ele arriscou a vida desde jovem. Foi com 14 anos lutar pela Independência do Brasil e depois ele estava lá, com quase 70 anos, lutando no Paraguai. Estava em progresso um projeto para a colocação dos ex-escravos”

Foto: Igor Sperotto

Injetar sangue nas veias dos personagens. Essa é a síntese do romance histórico na definição do escritor gaúcho Alcy José de Vargas Cheuiche, autor do recém-lançado O velho marinheiro – A história de vida do Almirante Tamandaré (L&PM, 360 p., 2018). Desde seu primeiro livro, O gato e a revolução, lançado em 1967 pela Sulina e censurado pela ditadura, até Nos céus de Paris – O romance da vida de Santos Dumont (L&PM, 1998), e agora na saga do gaúcho Joaquim Marques Lisboa, o autor persegue esse gênero literário – no qual a narrativa ficcional está condicionada a fatos históricos. Assim como fez com o pai da aviação, ao contar a saga do patrono da Marinha, Cheuiche expõe a figura humana por trás dos mitos e heróis nacionais quando recria fatos e ambientes nos mais diferentes lugares do Brasil e também na Inglaterra, França, Uruguai, Argentina e Paraguai. O livro reconstitui a vida do Almirante Tamandaré, “um abolicionista convicto”, e revela em plena ação os personagens que marcaram todo o século XIX, a começar por Dom Pedro II e a Princesa Isabel. E explica o golpe de Estado que derrubou a monarquia. Nascido em Pelotas, em 1940, Cheuiche tem 30 livros publicados no Brasil e em outros países, a exemplo de Ana Sem Terra e Sepé Tiaraju. No início de abril, o escritor, conferencista, tradutor e orientador de oficinas literárias recebeu o Extra Classe para falar de O velho marinheiro.

Extra Classe – Por que um romance histórico sobre Tamandaré?
Alcy Cheuiche – A gênese de O velho marinheiro é a seguinte. Em 1998, eu publiquei Nos céus de Paris e, naquela ocasião, não procurei a Força Aérea Brasileira, nada. Por acaso, dois livros meus foram publicados na época na Alemanha, Ana Sem Terra e o Sepé Tiaraju – Romance dos Sete Povos das Missões. Então, eu aproveitei que lá eles têm a gentileza de pagar todos os direitos da edição à vista assim que o livro sai e fiz a pesquisa essencial do Santos Dumont. É um livro que me deu muitas alegrias e, inclusive, eu recebi a medalha Santos Dumont da Aeronáutica. Há uns três anos, fiz uma palestra em Brasília sobre Santos Dumont, a convite da embaixada da Polônia. Fizeram um megaevento, convidaram todas as embaixadas, a comunidade cultural do Brasil e, evidentemente, a Força Aérea, o Exército e a Marinha brasileiros. Quando eu terminei a palestra, o chefe da Comunicação Social da Marinha, Almirante Rocha, foi um dos primeiros a me abraçar e disse: ‘Bom, agora é a vez do Tamandaré’.

EC – Quais eram tuas referências sobre o almirante?
Cheuiche – Este livro tem pra mim algo diferente, porque eu não estava me preparando, até não sabia nada sobre o Tamandaré, sabia o que todo mundo sabe, que ele foi patrono da Marinha, uma figura histórica importante. E só. Disse isso com toda a franqueza. Tratamos essencialmente de uma coisa: já que a Marinha quer, que abram a caixa-preta, quero entrar lá, saber tudo, qualquer coisa que me interesse na pesquisa eu não vou sair a procurar por aí, vou direto para os arquivos e conversar com os historiadores da Marinha, porque a diferença do romance histórico é essa, não tem ficção, a gente põe é sangue nas veias dos personagens. Recria a vida. O personagem está vivo, ele não é uma estátua nem um nome de rua, é um ser humano. Se eu não consigo transmitir isso, então não é romance histórico. Então eu botei dois planos, em um ele fala e em outro eu conto.

“Primeiro, o personagem tem que me conquistar. Fui estudar a vida do Tamandaré e ele me convenceu, por ser um abolicionista como eu”

Foto: Igor Sperotto

“Primeiro, o personagem tem que me conquistar. Fui estudar a vida do Tamandaré e ele me convenceu, por ser um abolicionista como eu”

Foto: Igor Sperotto

EC – Qual é a técnica, essencialmente?
Cheuiche – Comecei a fazer isso agora? Não. Se tu olhares O gato e a revolução (1967), já eram capítulos curtos que vão se ligando pra formar a história. Eu sigo a orientação do Sartre: escrever para o leitor. Quem foi meu aluno sabe, eu estou sempre pregando isso. Tu não escreves pra ficar famoso nem pra ganhar prêmio, dinheiro tem que ganhar pra sobreviver, mas carreirista não funciona na arte, isso aí o cara pode ser genial, mas não é o caminho. Quer dizer, o que nós temos que fazer é escrever para o leitor, que ele pegue o livro e vá até o fim, com prazer, leia e releia…

EC – E a Marinha abriu os arquivos para a tua pesquisa?
Cheuiche – A Marinha me deu carta branca, como se diz, dessa vez não tive nenhum tipo de censura. Não me disseram, ‘ah teu livro tem que ser escrito de tal maneira’. Claro que nós mostramos e discutimos, tivemos reuniões com historiadores da Marinha, porque o que eu quero é acertar. Quando tive dúvidas ou para evitar exageros, fui em outras fontes, pesquisei os jornais de Londres da época.

EC – Por exemplo?
Cheuiche – Quando o Tamandaré vai à Inglaterra buscar o primeiro navio brasileiro a vapor, um momento fantástico, ele sai com o navio e convida a irmã do imperador, a princesa Francisca e o marido dela que era, inclusive, almirante francês, para fazer um test drive. Saíram com o barco, sem nenhum problema, ele era um marinheiro experiente, sabia que o tempo estava bom. Acontece que encontram um navio que tinha saído de Liverpool em direção aos Estados Unidos, e que pegou fogo e alto mar, o Ocean Monarch. Ele hesitou, porque não queria colocar em risco a vida da princesa, mas como o barco não era à vela e sim a vapor, fez a aproximação para salvar a tripulação e os passageiros do navio em chamas. Isso tudo é histórico, não tem nada de ficção. As descrições dos jornais brasileiros, dos arquivos da Marinha e outros, são de altíssimo nível, a coragem dos marinheiros, que salvaram mais de cem pessoas. Como é que eu vou fazer o teste de São Tomé nisso? Fui nos jornais de Londres da época. O que os jornais falavam? Exatamente isso. Só elogios pra ele. Até mais, porque dizem, o que eu não botei no livro, que um navio americano passou por ali e não deu ajuda. Os jornais londrinos atacaram essa atitude, mas a Marinha brasileira não foi se meter nessa briga.

EC – Ele era muito próximo do imperador?
Cheuiche – Ele viveu 90 anos, o que seriam hoje 120 ou mais. Era realmente fiel ao Dom Pedro II. Acreditava. E se tu olhares neste livro, por trás da figura do Tamandaré, eu procuro projetar a figura do imperador. Sem a menor dúvida. Dom Pedro governou o Brasil por 49 anos, e a visão que ele tinha era de um democrata, parlamentarista, dizia que a sua vocação era para ser professor e não imperador, com aquela preocupação com o ensino, com a cultura. Ele não tinha o poder absoluto. Tamandaré queria a Abolição de qualquer jeito, mas ele sabia o que ia acontecer. Se estivessem todos eles vivos, o Duque de Caxias, o General Osório, talvez o Dom Pedro não tivesse sido derrubado. Mas o Tamandaré tentou resistir.

EC – O que mais influenciou na tua decisão de fazer o livro?
Cheuiche – Primeiro, o personagem tem que me conquistar. Fui estudar a vida dele antes e ele me convenceu, principalmente por ser abolicionista. Sou adepto, fã, seguidor do Castro Alves. Tinha dez anos, já declamava inteiro O Navio Negreiro. Ele também admirava o Castro Alves, que foi o braço para a Princesa Isabel. Uma coisa que ninguém conta é que ele recebeu esse título de Marquês no dia 13 de maio de 1888. Eles sabiam que, no momento que fizessem a Abolição, estavam tirando a coroa da cabeça dela. Como dizia o Maquiavel, tire a liberdade de um homem, mas não mexa no seu bolso. A Abolição mexeu. Foram libertados 700 mil escravos.

EC – Por isso a família real foi expulsa…
Cheuiche – Exatamente. Uma das razões. A minha posição política sempre foi pela democracia. A posição do Tamandaré em relação a Floriano Peixoto é a posição que eu tenho. Peixoto deu um golpe de Estado. Já foi um golpe de Estado a República e aí ele deu o golpe de Estado no Deodoro da Fonseca, porque ele não podia assumir, ele não tinha tempo suficiente. Pela Constituição, naquele momento tinha que ter nova eleição. Então, foi novamente golpe. Dois golpes, um em cima do outro.

EC – O imperador tinha um projeto de educação para o país. Qual era?
Cheuiche – O Napoleão, por exemplo, tinha uma preocupação enorme com a educação, com a cultura. Quando ele foi para o Egito, levou um cientista com ele. A egiptologia começou aí. A educação no Brasil, eu digo isso porque o Dom Pedro trouxe para o Brasil o liceu, o nosso ginásio é o lycée, esse curso secundário de quatro anos que dava uma formação completa em artes, letras, ciências, que a pessoa que fazia… Veja, o Erico Verissimo só tinha ginásio. O Mario Quintana só tinha ginásio. E eram pessoas cultas. A ideia do Napoleão era essa, que em quatro anos a pessoa tivesse uma formação para ter o que ele vai precisar em humanidades e essencialmente na parte de ciências também. Mas o Napoleão cometeu um erro histórico primário, fazer aquela invasão lá na Rússia. Mas quem cometeu o erro maior? Foi o Hitler, que fez igualzinho (ri). Hitler não conhecia a história! Sim. Hitler cometeu o mesmo erro de Napoleão ao invadir a Rússia, acreditando que a derrotaria antes do inverno – por isso a História menciona o “General Inverno” em ambos os casos.

EC – Os golpes frustraram o projeto de inclusão dos escravos?
Cheuiche – A História é uma mestra. Nós temos que entender a figura do Tamandaré. Eu não enxergo o Tamandaré que vai inspirar qualquer golpismo. A atitude dele era essa. Ele arriscou a vida desde jovem. Foi com 14 anos lutar pela Independência do Brasil e depois ele estava lá, com quase 70 anos, lutando no Paraguai. Estava em progresso um projeto para a colocação dos ex-escravos. Ele diz: “Desejo que meus restos mortais sejam conduzidos à cova por meus irmãos em Cristo que hajam obtido o foro de cidadãos pela Lei de 13 de maio”. Quer coisa mais clara?

"Como dizia o Maquiavel, tire a liberdade de um homem, mas não mexa no seu bolso. A Abolição mexeu. Foram libertados 700 mil escravos"

Foto: Igor Sperotto

“Como dizia o Maquiavel, tire a liberdade de um homem, mas não mexa no seu bolso. A Abolição mexeu. Foram libertados 700 mil escravos”

Foto: Igor Sperotto

EC – Ele, inclusive, libertou escravos. Como foi isso?
Cheuiche – Ele arrisca a vida pra salvar dois escravos. Ele tinha uns 52 anos. Sai num domingo para ir à farmácia e se depara com uma canoa virada, dois escravos que estavam pescando para o patrão deles estão para morrer afogados. Ele simplesmente tira a roupa – era um nadador fantástico –, vai lá e salva os dois. Os dois! Quem conhece a vida dele sabe que ele era um homem muito forte, baixote, mas fortíssimo. Aí vem o momento que não é só a teoria, ‘ah eu sou abolicionista e tal’… Não. No dia seguinte, o dono dos escravos manda os dois de presente pra ele. O Tamandaré aceita, de papel passado, e os alforria na hora.

EC – Considerando o cenário atual, era um militar de outra estirpe?
Cheuiche – Nós não podemos confundir o Brasil com o governo do Brasil, a Marinha com um golpista da Marinha. Tem que pesquisar a história despido de preconceitos nesse sentido. Ah, eu só quero o que é bom pro Tamandaré, não. Aquela questão do Uruguai também… Eu sou amigo dos uruguaios, tenho livros aqui. Eles são divididos em gre-nal. Depois veio a revolução dos Tupamaros, mas eram os blancos e os colorados. Aqui nós temos de família, do lado da minha mãe, os Silva Tavares, que eram Maragatos, minha avó não podia nem ouvir falar no Borges, essa gente. Porque mandavam matar, não era brincadeira. O que morreu de gente degolada na revolução de 1893… Quando o Tamandaré vai lá para o Uruguai ele tem que escolher um lado. Ele ficou com os colorados, que estavam fora do poder, os blancos mandavam e davam apoio ao ditador Solano Lopes. Então, que atitude pode tomar um comandante brasileiro, de tudo, porque ele não era só naval, era comandante de todas as tropas em operação e, como o embaixador brasileiro fugiu, ele ficou também representando as relações internacionais.

EC – Como estás vendo a conjuntura atual do país?
Cheuiche – Tem duas coisas a respeito da conjuntura. Primeiro: há uma diferença muito grande que nós temos que colocar. Porque, às vezes, se diz que estamos vivendo um regime de exceção. Não estamos. O meu primeiro livro, O gato e a revolução, foi lançado pouco antes do AI-5. Ali, naquele momento ainda havia um simulacro de vida democrática, claro, tinha gente cassada, o diabo, mas não havia ainda a perseguição, com prisões e torturas, tanto é que o livro foi lançado na Feira do Livro. Mas quando entrou o AI-5, aí o negócio mudou de posição, virou ditadura completa. Foram lá na Sulina, pegaram o livro e levaram uns 600 exemplares, picotaram, não sei o que fizeram. Eu não posso comparar.

EC – Qual é a diferença?
Cheuiche – A diferença é o seguinte, nós estamos neste momento numa situação política muito ruim, porque o Brasil está dividido e não há argumentação possível. Foi cometido um erro extremamente grave, que foi o impeachment. Hoje se vê que quem queria fazer o impeachment já está aí processado, pelo menos é réu em dois processos. Foi o presidente da Câmara dos Deputados que encaminhou o impeachment, está preso, por ladrão, né? Vamos colocar assim os termos, bem às claras. Os dois ladrões. A Dilma pode ter muitos defeitos, mas ladra não se sabe de nada dela.

EC – Agora pedem desculpas…
Cheuiche – Não tem desculpa. O Brilhante Ustra pediu desculpas pra deputada Bete Mendes. Essa história do Ustra começou a ser conhecida porque ninguém sabia nada, nem o nome dele. Mas ele foi colocado como adido militar do Brasil no Uruguai, premiado pelas torturas. Quando, em 1985 o Sarney vai ao Uruguai… a então deputada federal e atriz Bete Mendes foi convidada, o Sarney tá brincando ali, ele também não foi eleito presidente da República, aquilo ali também entrou pelo lado, está brincando de presidente democrata. Essa foi a primeira paulada que ele levou. Chegou lá e a Bete Mendes reconheceu o Brilhante Ustra. E aí? O Ustra pede desculpas pra ela. É a mesma coisa, não posso desculpar, ele é um torturador. O Sarney disse que imediatamente ia tomar uma atitude. Mas nisso não se tocava, estava todo mundo perdoado pela Lei da Anistia.

EC – Por que Lula está preso?
Cheuiche – Na minha opinião, o Lula deixou-se dominar pelo PT de São Paulo, onde a política é corrupta desde o tempo do Adhemar de Barros, seguido de perto por Paulo Maluf e companhia. Não acredito que ele tenha roubado, mas deixou que fossem colocados em postos-chave da Petrobras e em outros cargos de escolha política ministros e diretores que roubaram impunemente durante seus dois governos. Se compararmos Lula com alguns líderes petistas do Rio Grande do Sul, como Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont, entenderemos por que ele é culpado de “ignorar” tanto roubo. O que não se entende é por que Lula está preso e Michel Temer conseguiu ficar mais de dois anos como presidente, com culpabilidade mais fácil de provar. Quanto ao aspecto social, não há a menor dúvida de que lutou para tirar grande parte da população brasileira da miséria. Historicamente, não gostar de Lula não justifica ter raiva de tudo a que seu nome esteja ligado.

EC – O que pensa sobre a negação da ditadura pelo Itamaraty?
Cheuiche – O que eu quero deixar bem claro é o seguinte: como escritor que trabalha com História, eu não posso admitir que se diga que não houve uma ditadura, quando eu mesmo sofri isso com a apreensão do meu livro. E não posso comparar o regime daquela época com o de hoje, que aí é outra bobagem. Tu podes não gostar do presidente da República, não gostar disso ou daquilo, mas vai ter eleição. Essa é uma posição de ordem política. Dizer que o nazismo foi comunista é uma coisa tão absurda que eu não quero nem começar a tratar desse assunto. É ridículo. É como dizer que o papa Francisco é ateu. Isso é uma questão histórica. Essas pessoas estão contribuindo para criar uma cisão ainda maior. Não podemos confundir o Brasil com isso.

EC – Dom Pedro II era um grande líder e um democrata. Por quê?
Cheuiche – Nós estamos falando de Tamandaré e de Dom Pedro II. Eu faço questão de lembrar. A quem o Tamandaré servia? Quem era o imperador dele? Era Dom Pedro II. Termina a Guerra do Paraguai, 1870. Dom Pedro II era o governante de maior prestígio da América Latina. Tanto é que, em 1876, no centenário dos Estados Unidos ele foi convidado para estar do lado do presidente. Ele era o imperador e vai para uma república. A Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro vota uma verba para fazer uma estátua equestre dele na entrada do porto, caríssima, um dinheiro enorme. Ele vai à Assembleia e aceita, não para fazer a estátua, mas escolas. Eu não posso partilhar dessa ideia de dividir o Brasil completamente. Ah, a Marinha foi golpista em 1964, eu sou obrigado a achar que o Tamandaré também ia dar esse golpe. Não dava! Não dava! Eu me sento com quem quiser e debato isso. Não dava o golpe! Tá? Então, aí é que está. Nós temos que olhar para a História de uma maneira muito mais ampla, senão vamos ficar quanto tempo com o Brasil assim? Agora tem que usar também a inteligência, em todos os sentidos, em todos os níveis, porque, se não, o debate baixa tanto que é o que eu costumo dizer: o debate fica abaixo do meu entendimento.

EC – São contextos diferentes.
Cheuiche – Claro. Com quem nós ficaríamos? A proclamação da República (1889) foi um golpe de Estado? Foi. Não tenho a menor dúvida. Agora eu vou deixar de ser republicano porque foi um golpe de Estado? Eu não quero que volte a Monarquia pra cá. A Monarquia naquele momento estava com o Dom Pedro e com a princesa Isabel, o que eu acredito que poderia continuar. Mas, essencialmente – e se não fosse assim eu não tinha escrito a Guerra dos Farrapos defendendo a República Farroupilha –, embora eu narre com bastante isenção, eu tomo partido claramente, pro lado do Tamandaré. Eu acredito no Tamandaré. E o fato de ele, com 82 anos, chegar para o Dom Pedro e dizer ‘olha, eu seguro a Marinha’. Eles ficaram por uma hora conversando. O imperador pergunta o que pode acontecer. ‘Ora, nós vamos ter que atirar nas tropas do Exército’. E foi aí que o Dom Pedro não quis, e quem não quis a mesma coisa (o confronto armado) foi o João Goulart. Ele teve a mesma posição que Dom Pedro.

EC – Como assim?
Cheuiche – O João Goulart fez a mesma coisa que o Dom Pedro, se ele quisesse teria incendiado duas vezes o Brasil. Uma em 1961, quando ele aceitou o parlamentarismo. Se ele não tivesse aceitado, o que ia acontecer? O Terceiro Exército já estava todo aqui, o general Oromar Osório já tinha entrado por Santa Catarina com as tropas, de trem. A Aeronáutica estava contrária. Ia ser uma carnificina. Eu não estaria aqui, era estudante, tava até às orelhas envolvido naquilo. Uma vez o Christopher Goulart (advogado, neto de Jango) me perguntou o que que eu achava da posição… Na hora me deu raiva, vontade de atirar ovo nele quando ele passou por aqui (pelo estado), o povo todo lá e ele não disse nada, ele já tinha acertado o parlamentarismo. Mas politicamente ele que estava correto e não eu. Porque nós iriamos morrer, ia morrer horrores de gente. Historicamente tem que enxergar essas coisas. Quem é que se parece aí? O ídolo do Tamandaré foi o Dom Pedro. Foi derrubado do poder e não quis reagir para não haver um banho de sangue. O João Goulart foi derrubado do poder e não quis reagir, evitando um banho de sangue.

EC – Jango teria incendiado o país duas vezes, a primeira ao aceitar o parlamentarismo. E a segunda?
Cheuiche – A segunda foi quando chegou ao Rio Grande do Sul, ainda como presidente e não aceitou resistir ao golpe a partir daqui, como proposto por Brizola e pelo comandante do Terceiro Exército. Meu tio Joaquim Tavares, que era uma das maiores autoridades federais no RS como superintendente da Sudesul, assistiu à reunião privada em que Brizola disse a Jango: “Nomeia a mim como ministro da Justiça e o general Ladário Telles como ministro da Guerra que nós iremos reverter essa situação”. Jango não aceitou para evitar um enorme derramamento de sangue. Tanto é assim, que temendo essa possibilidade de resistência, o governador Ildo Meneguetti abandonou o Palácio Piratini (símbolo da Legalidade de 1961) e foi-se para Passo Fundo. A “vox populi” afirma que ele disse: Pé no fundo! e o motorista entendeu mal.

EC – Por que nossa democracia é tão frágil?
Cheuiche – Fico com a opinião de Winston Churchill quando perdeu a eleição seguinte à sua grande vitória na Segunda Guerra Mundial. Entrevistado por um jornalista com pergunta semelhante a essa, ele respondeu: “De fato, a democracia é frágil, cheia de defeitos, mas, infelizmente, ainda não descobrimos um sistema melhor”.

EC – A República sempre esteve sob a ameaça das armas?
Cheuiche – Tudo que nós temos que olhar é o estado de direito. Porque quando a Lei está para o nosso lado, nós achamos muito bom. Quando está contra, achamos muito ruim.

EC – O estado de direito…
Cheuiche – Eu vivi as duas situações. Podia não ter sido escritor. Quando cassaram meu primeiro livro – sou formado em Medicina Veterinária, tinha um mestrado feito na França, tinha feito parte do meu doutorado na Alemanha –, resolvi parar o doutorado pra escrever. Mas tinha uma profissão. Dava aula na Ufrgs. Perdi tudo isso. E nunca quis entrar com processo pra voltar.

EC – Chegou a ser cassado?
Cheuiche – A minha cassação foi uma cassação branca. Me tiraram os alunos. Eu não podia dar aula. Só aula prática. Não podia mais ter contato em sala de aula com aluno. E aí alguns alunos meus estavam pensando em fazer uma greve. Eu sei até os nomes, mas não vou te dar porque não interessa… Greve naquela época, tu imaginas, 1969… Era pra liquidar. Era bem naquele momento pesado. Vou embora daqui. A minha demissão foi a coisa mais engraçada. O diretor da faculdade de Agronomia e Veterinária, esse eu dou o nome, Costa Neto, diziam que era primo do Costa e Silva. Eu tinha 28 pra 29 anos, mestrado na França, era oriundo da própria faculdade, e eu fui lá me demitir e o cara não levantou, ficou sentado me olhando: “O que o senhor deseja?” “Minha demissão.” “Pode botar em cima da mesa”.

"Tamandaré queria a Abolição de qualquer jeito, mas ele sabia o que ia acontecer. Se estivessem todos eles vivos, o Duque de Caxias, o General Osório, talvez o Dom Pedro não tivesse sido derrubado"

Foto: Igor Sperotto

“Tamandaré queria a Abolição de qualquer jeito, mas ele sabia o que ia acontecer. Se estivessem todos eles vivos, o Duque de Caxias, o General Osório, talvez o Dom Pedro não tivesse sido derrubado”

Foto: Igor Sperotto

EC – Como esse episódio influenciou tua carreira de escritor?
Cheuiche – Fui para São Paulo e resolvi trabalhar pra ganhar a minha vida. Mas o destino me botou na frente da Biblioteca Pública de São Paulo, onde eu aluguei um apartamentozinho que chamavam “já vi tudo”. Digo, eu vou escrever um livro que eles não vão poder cassar. Eu já tinha na minha cabeça as Missões Guaranis. A primeira sociedade socialista cristã de verdade foi a dos Sete Povos e os outros, no total eram 33 povos. É coisa bíblica, eu fiquei sete anos pesquisando porque tinha que trabalhar e a pesquisa era enorme, mas veja, meu último livro tinha sido publicado em 1968; em 1975, publiquei o Sepé Tiaraju. Ainda era ditadura em 1975. Agora tu vais cassar os Sete Povos das Missões? Vai dizer que uma república cristã socialista que não tem dinheiro, que divide tudo, que não tem miseráveis, que não tem mendigos… é a maior experiência, então, né? Aí é que eu me agarrei com o romance histórico, contar as histórias e popularizar essas histórias. O romance histórico funciona também como cinema, como filme. Queres entender como é que Napoleão invadiu a Rússia? Lê Guerra e Paz. Tem o livro, do Tolstói, e tem o filme. Aliás, o Almirante Rocha, que lutou por este livro (O velho marinheiro), tem vontade de fazer um filme…

EC – Qual será teu próximo livro?
Cheuiche – Eu não paro de escrever. Estou fazendo um livro de contos. O conto é como a poesia, permite pausas. O romance, não. Não posso ficar um dia sem escrever, nem que sejam dez linhas. Romance, tenho algumas ideias, mas não posso falar ainda. Venho trabalhando nesse livro de contos que pretendo publicar até o fim do ano. Já tem até título. Uma vela acesa descendo a correnteza. É o nome de um conto que tem muita importância pra mim porque foi um fato que aconteceu com meu pai quando eu tinha cinco anos de idade. Meu pai era do interior, de Caçapava do Sul. Nesse livro, todos os contos se passam no campo. Quero retomar, de certa forma, a tradição de contos do Rio Grande do Sul que tem como expoentes Simões Lopes Neto, Cyro Martins.

EC – Escrever é um ofício. Por quê?
Cheuiche – É exatamente isso. A realidade é que a literatura é uma arte. Então, por mais que tu aprenda e desenvolva técnicas e tudo tu tem que ter uma vocação pra isso, então eu tenho isso desde criança, eu quando tinha sete anos e o Monteiro Lobato morreu eu chorei como se ele fosse uma pessoa da família, tenho a minha irmã mais velha pra contar isso… E botei na minha cabeça que eu ia escrever. Não queria ser maestro de uma orquestra ou tocar violino, porque não nasci pra isso. Agora, é arte. Então a literatura, sendo arte, tu não podes tratar como passatempo, nunca. A literatura tem que ser o mais importante, sempre foi na minha vida. Eu fui e editor de uma revista, a Hora Veterinária, durante 33 anos. Fazia tradução, eu trabalho com português mais quatro idiomas, seleção de material, editorial, e não era fácil, eu aprendi a escrever de madrugada, acordar cedo, deitar cedo, e quantas vezes, um romance, eu acordava às quatro da manhã e escrevia um capítulo, e ia pra revista… Então, meu amigo, é o que eu estou dizendo, tu não consegue, tua mulher diz vai escrever porque tu fica meio irritado, porque aquilo faz parte do teu equilíbrio emocional. Tem que ter disciplina. Pesquisar muito. A inspiração pra mim vem durante o sono, eu acordo, quando estou escrevendo um livro, muitas vezes o livro me acorda, muitas. Eu anteontem me acordei com o capítulo de um livro na cabeça. Não sei o que vou fazer, mas me veio um capítulo inteiro. Pra mim, escrever sempre foi trabalho, aprendi com o Hemingway, que é meu escritor predileto. Ele dizia: trabalhei bem hoje de manhã, escrevi quatro horas. Hoje eu sou um profissional da literatura, mas antes disso, eu quero ser escritor, eu não vou saquear a minha família, eu tenho que tratar de ganhar meu pão, ter essa seriedade, né?

EC – Sobre as tuas oficinas literárias, qual a importância de formar novos escritores em tempos tão adversos para o livro e a literatura?
Cheuiche – Quando penso se estou fazendo alguma coisa pela democracia, pelo estado de direito, pela igualdade de oportunidade social, pela valorização da cultura brasileira, meu único consolo são os livros que escrevi (25) e os livros dos meus alunos de Oficina Literária (75 obras de 2002 a 2018). Em relação aos meus livros, tenho a honra de ter escrito, em 1975, o romance histórico Sepé Tiaraju, quando sua história verdadeira não era conhecida popularmente. Edições desse livro em português, alemão e espanhol foram anexadas ao processo que culminou com a decisão da Unesco em transformar as ruínas de São Miguel em “Patrimônio da Humanidade”, o único do Rio Grande do Sul. Meu livro também foi entregue em mãos ao Papa Francisco pelo então prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, logo que tomamos conhecimento que Sepé Tiaraju poderá ser santificado como mártir do cristianismo. O mesmo em relação a outros livros em que valorizo a raça negra, como João Cândido, o Almirante Negro e O Farol da Solidão. Também me orgulha ter publicado um livro de 1980, O Mestiço de São Borja que é considerado o primeiro romance ecológico do Brasil. Quanto aos livros sobre Santos Dumont e o Almirante Tamandaré, me sinto feliz por ter mostrado o retrato humano desses personagens ímpares da nossa História, facilitando entendimento sobre seu real valor histórico, muito maior do que nos ensinam na escola. Quanto aos meus alunos, já que não há espaço para falar deles, quero lembrar que um grupo da minha oficina literária, com apoio da Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal (APCEF-RS) está escrevendo um romance histórico sobre a vida de José Lutzenberger que será lançado, em edição bilíngue português/alemão, em novembro deste ano, na Feira do Livro de Porto Alegre e em Berlim.

EC – Teu livro O mestiço de São Borja deixa no ar suspeitas sobre o suicídio de Vargas…
Cheuiche – Esse é um livro que eu gosto muito porque é para formação política, para entender o Brasil daquele período de 50 anos, de 1930 a 1980. E foi uma pesquisa pesadíssima. No meio do livro é o suicídio do Getúlio. E eu fiz a pesquisa com pessoas que ainda estavam vivas, que participaram. Um tio meu, que foi técnico do Ministério da Agricultura, chegou a responder pela pasta, foi secretário da Agricultura do Rio de Janeiro, era amigo do Maneco Vargas, que era também agrônomo como meu tio. Ele estava dentro do Catete. Ele ouviu o tiro. Eu recriei como no cinema todos os locais. Mas O mestiço de São Borja tem personagem de ficção. É estilo Erico Verissimo. O pano de fundo é a História, mas tem personagem de ficção. Na morte do Getúlio, ali a pesquisa foi feita minuciosamente. Eu consegui conheci o major da Aeronáutica, (Hernani) Fittipaldi, que era o ajudante de ordens do Getúlio, era de Uruguaiana, e na época ele me passou todas as informações, horas de gravação. Eu estive com o Tancredo Neves, que era ministro da Justiça, com 30 e poucos anos. A dona Alzira (viúva de Vargas) leu o capítulo, essa era a única condição imposta pelo major Fittipaldi. E ela aprovou completamente. Eu fui até onde eu podia. O que eu quero dizer é que não se brinca com História. Mesmo que seja pano de fundo, tu tens que procurar fazer a coisa certa. O meu personagem de ficção tá lá dentro do Catete, mas esse não é o caso. Tem que ter alguém pra contar a história. Mas a história que ele está contando é a real. O Bejo Vargas, irmão do Getúlio, chegou às 4h da manhã, tinha sido interrogado na Aeronáutica, ele subiu pelo elevador, chegou aqui, o major Fittipaldi estava na porta do quarto, e não deixavam entrar ninguém. Diziam, ah vão lá matar o Getúlio, rá!, não era isso assim, aí ele abriu, o Benjamin, que era o Bejo Vargas, entrou e contou para o Getúlio a situação, quer dizer, eles querem a tua cabeça, te derrubar, não querem saber de mais nada. Foi ali que o Getúlio tomou a decisão. Até aí ele estava de pijama. Quem vai se matar não tá de pijama… Ele ainda tinha a esperança de conseguir segurar aquele negócio. Agora, ele disse que só saía morto do Catete e cumpriu a palavra. Passada uma hora mais ou menos dessa visita, foi o tiro.

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