CULTURA

Branquidade, branquitude e a vida acadêmica

A temática racial sempre foi uma questão embaraçosa gerando perplexidades, além de silêncios incômodos, sobretudo no meio dos sujeitos de raça branca
Por Adevanir Aparecida Pinheiro* / Publicado em 19 de novembro de 2019

Foto: Neabi Divulgação

Foto: Neabi Divulgação

A temática racial sempre foi uma questão embaraçosa gerando perplexidades, além de silêncios incômodos, sobretudo no meio dos sujeitos de raça branca. É uma espécie de tabu que cada semestre, de forma repetida, devemos quebrar junto aos acadêmicos e acadêmicas. É óbvio e cientificamente comprovado que não existe raça branca, assim como não existe raça negra. No entanto, não podemos mascarar a realidade. É também óbvio e comprovado que a “raça branca” se impôs como hegemônica no mundo ocidental, afirmando politicamente a inferioridade das outras “raças”. Por isso, hoje, a “igualdade racial” deve ser politicamente afirmada.

Sempre mais se foi formando em nós a consciência da importância de explicitar a temática racial, nesta sua origem e perversidade histórica de ideologia da dominação e da colonização. Hoje nos deparamos com o que se pode chamar de embotamento da consciência branca eurodescendente (e eurocêntrica). É exatamente esse embotamento que deve ser trazido para o centro do debate, sobretudo, no ensino das pós-graduações. Os brancos e brancas parecem que, muitas vezes de forma inconsciente, permanecem algemados/as em seu senso de superioridade e privilégios. Muitos aspectos históricos relacionados a isso poderiam ser trazidos à memória. Em geral merecem pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiro. São muitas vezes camuflados para não evidenciar as fraquezas vergonhosas da população que sempre se autoconsideram superior, e “tido” branco. Diante disso, quando um sujeito negro, ou negra, sofrem com os ataques de racismo, os mesmos são encaminhados para tratamentos psicológicos, já os brancos, que cometem tais atos, dificilmente são cogitados a tratarem seus problemas racistas.

Alberto Guerreiro Ramos, em 1957, publicou um artigo intitulado A patologia social do ‘branco’ brasileiro, que tem como tese central o fato de que, devido ao racismo e a um ideal de beleza e estética branca, a população brasileira produziu significados positivos ao ser branco, em contrapartida a significados negativos estéticos e culturais relacionados aos negros. Assim, para o autor, a patologia do “branco brasileiro” consiste na negação de sua identidade. Apesar de a grande maioria destes ter ascendência miscigenada cultural e biologicamente com os negros, este é um fator negado por eles (os brancos). A identidade racial branca também foi pensada por Frantz Fanon (1980), filósofo e psiquiatra formado na França, nascido na ilha da Martinica, que influenciou muitos pensadores que escreveram sobre a diáspora africana e a opressão dos povos colonizados. Em 1952, o autor publicou seu livro de maior repercussão, Pele Negra, Máscaras Brancas, que discute diversos assuntos relacionados à questão da raça e à relação entre colonizado e colonizador como categorias importantes para se entender a constituição de subjetividades de sujeitos brancos e negros em relação. Neste sentido, Petronilha Beatriz Gonçalves Silva e Silva assevera, sobre a importância da descolonização das mentes e a descolonização das produções científicas nas academias, que ainda continua tratando os saberes da população negra de forma colonizada.

Segundo Fanon, a opressão colonial e o racismo da própria estrutura da colonização passaram também a dominar subjetivamente os colonizadores e colonizados. No caso dos negros, a consequência seria uma não aceitação da sua autoimagem, da sua cor, o que resultaria em um “pacto” com a ideologia do branqueamento, e, portanto, a construção do que o autor chama de “máscaras brancas”. Isso começa pela rejeição do negro de si próprio e uma tentativa de fuga das características estereotipadas associadas negativamente aos não brancos na sociedade ocidental. Foi neste contexto de reflexões, mas, sobretudo, de experiências concretas no chão do mundo acadêmico, que fomos amadurecendo sempre mais a necessidade de centrar atenção no estudo dos “tidos” brancos e brancas nesta sociedade onde as pessoas negras devem viver como se estivessem no mundo branco, o Brasil.

Inspirada em uma grande multiplicidade autoral, com destaque a Maria Aparecida Bento, elaboramos o conceito de branquidade como distinto do conceito de branquitude. O conceito de branquidade diz respeito aos sujeitos que negam a importância do conceito de raça enquanto conceito político, não se abrindo para o diálogo sobre essa importância. Por outro lado, podemos falar em branquitude quando os sujeitos brancos aceitam a importância do conceito de raça enquanto conceito político e interagem de igual para igual.  A patologia social do branco, de que já falava Alberto Guerreiro Ramos, revela as reações sofridas pelos sujeitos “tidos” como brancos e brancas. São reações internalizadas que revelam também sofrimento quando passam a se reconhecer ou não reconhecer em sua identidade.

Mas como podemos falar em racismo, no meio de tudo isto? Fala-se em racismo, reproduzindo concepção de Kabenguele Munanga, para referir a estrutura de poder baseada na ideologia da existência de raças superiores ou inferiores. Pode evidenciar-se na forma legal, institucional e também por meio de mecanismos e de práticas sociais. No Brasil, não existem leis segregacionistas, nem conflitos de violência racial; todavia, encoberto pelo mito da democracia racial, o racismo promove a exclusão sistemática dos negros da educação, cultura, mercado de trabalho e meios de comunicação. Na mesma linha de pensamento, Silvio Almeida, em sua recente publicação com o título Racismo Estrutural, conceitua o racismo como parte constituinte da normalidade estrutural brasileira. Ele vem sendo permanentemente reproduzido pelo racismo institucional. Vivemos, portanto, impregnados por uma cultura racista. É um racismo dissimulado e invisível que, em geral, só é percebido pelas vítimas do mesmo. Isto não significa, evidentemente, que o autor desconsidere os diversos eventos de racismos cometidos por indivíduos (em ações individuais ou grupais), onde o crime é mais facilmente identificável. Em nossa opinião, o racismo não é percebido pela branquidade e é visto com dor, vergonha e desapontamento pela branquitude, mas que parece, ainda, ser um “mal menor”, mesmo sendo crime inafiançável.

Segundo José Ivo Follmann, em recente palestra na Unisinos (22/10/2019), o mais característico e, também, o mais grave no racismo institucional tratando-se de sociedade brasileira é a omissão e o absenteísmo em não tomar medidas sérias e permanentes dentro das instituições, para desmontar o racismo estrutural que marca toda a sociedade. Em termos de Educação Superior, a responsabilidade se faz ainda mais exigente neste sentido.

* Professora, dra. e pesquisadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiro e Indígena – Neabi/Unisinos

 

 

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