CULTURA

A arte pop de Milton Kurtz

Mostra virtual da Ecarta destaca a pluralidade e a versatilidade com as quais o artista desempenha seu papel provocativo e sedutor permeado pela indústria cinematográfica
Por Gilson Camargo / Publicado em 22 de abril de 2020
"Felipe Caldas", da série Pequenos Suspenses, grafite e acrílica sobre papel (1982)

Foto: Tânia Meinerz

“Felipe Caldas”, da série Pequenos Suspenses, grafite e acrílica sobre papel (1982)

Foto: Tânia Meinerz

O projeto Seleção Ecarta 2020 apresenta a trajetória artística e o estatuto do artista gaúcho que reinventou a arte pop para fazer uma releitura da própria identidade brasileira. Nascido em Santa Maria, em 1951, Milton Kurtz recorreu a materiais inovadores como tecidos e chapas de radiografia, entre outros recursos para compor suas obras, como ressalta Marcelo Oliveira Pereira, responsável pelo resgate e preservação do acervo após a morte do artista, em 1996.

"Mulher-onça", grafite e tinta acrílica sobre papel (1984)

Foto: Tânia Meinerz

“Mulher-onça”, grafite e tinta acrílica sobre papel (1984)

Foto: Tânia Meinerz

Aberta ao público em 12 de março, a exposição teve a visitação presencial cancelada devido às medidas de isolamento social em decorrência da pandemia de coronavírus, mas está aberta para visitação virtual. As obras selecionadas destacam a pluralidade e a versatilidade com as quais o artista desempenha seu papel provocativo e sedutor permeado pela indústria cinematográfica e os retratos do cotidiano que o cerca.

A curadoria de Nicolas Beidacki e Walter Karwatzki dispõe no espaço expositivo uma abertura ao diálogo, que por meio de colaborações de jovens artistas, curadores e estudiosos do tema discorrem sobre os trabalhos escolhidos para aproximar ainda mais o público da atmosfera densa, libidinosa e provocativa proposta pelo autor.

O dramaturgo e roteirista Diones Camargo destaca os preceitos da Pop Art, movimento surgido na Europa na segunda metade do século 20, assimilados por Kurtz. Segundo ele, o movimento se concentrava nos vãos do desejo coletivo para ironizar ou exaltar o consumismo. “Décadas depois, o artista gaúcho Milton Kurtz assimilaria em sua obra alguns dos seus preceitos do movimento. Investigando a superfície das formas e elevando o corpo a objeto de consumo, ele nos induz através do uso de cores vibrantes e múltiplas camadas de materiais o estado psíquico ao qual devemos nos aproximar”, anota Diones.

Caroline Hädrich, historiadora da Arte, arquiteta e urbanista, destaca: “a pesquisa de Kurtz explorava principalmente as dualidades e ambiguidades, tanto na plasticidade e nas composições quanto nos significados de suas imagens finais”.

 

ENTREVISTA | Marcelo Oliveira Pereira

Pintor, desenhista, artista intermídia, Milton Kurtz (Santa Maria RS 1951 – Porto Alegre RS 1996) era graduado em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e fez sua primeira exposição individual em 1983, na Galeria Tina Presser, em Porto Alegre. Integrou o Grupo KVHR, entre 1978 e 1980, e o Espaço NO – Centro Alternativo de Cultura, de 1979 a 1982. Suas obras foram mostradas em cinco exposições individuais e 35 coletivas – e três mostras póstumas organizadas por seu companheiro de ateliê, o artista plástico Mário Röhnelt, falecido em dezembro de 2018.

O acervo dos dois artistas foi resgatado e preservado por Marcelo Pereira, que destaca nesta entrevista o legado de Kurtz: “podemos dizer que temos um grande artista pop e também um visionário, alguém que deixou um grande legado para o futuro, para que as próxima gerações pudessem contemplar não só a parte expressa em cores, mas também em todo o tipo de material que ele tocou”.

Extra Classe – Alguns críticos situam o trabalho do Milton Kurtz como atualização da “arte pop” das décadas de 1960/70. Faz sentido?
Marcelo Pereira – Sim, eu concordo. Porque o Milton, ele não só foi influenciado por esses movimentos dos anos 1960 e 1970 como também fez parte deles. Eu ouvi muitas histórias contadas pelo Mário Röhnelt que revelam que até mesmo o estilo de vestir do Milton era muito levado ao movimento pop, desde o cabelo, roupa, alguns objetos que ele usava, como pulseiras, cordão. Ele gostava muito desse estilo pop e até mesmo hippie dos anos 1960 e 1970. Não seria difícil ser influenciado, se você faz parte desses movimentos.

“Sombras”, grafite e tinta acrílica sobre papel (1983)

Foto: Tânia Meinerz

“Sombras”, grafite e tinta acrílica sobre papel (1983)

Foto: Tânia Meinerz

EC – Como você descreveria a obra dele?
Marcelo – Eu poderia descrever a obra do Milton como muito ousada. Eu acho que ela é bem sensualizada e muito colorida. A parte que eu gosto muito é que além do atrevimento dele, a obra toda é colorida, ele gostava muito de cores fortes, enfim, muitas cores.

EC – Qual a característica mais marcante da sua produção artística?
Marcelo – Tenho pra mim que a parte mais marcante é a forma como ele se expressava em cima de tecidos, uma técnica só dele, de preparar, de esconder coisas no tecido, coisas que você descobre mais tarde, quando a obra se revela. E por serem obras grandes. Então, eu acho que ele revolucionou não só no papel como na tela, mas essas técnicas sobre tecido, sobre pano, isso mexeu muito comigo. Eu acho que são as obras mais bonitas dele.

 

EC – Qual a importância, o legado para a arte produzida no estado?
Marcelo – De fundamental importância, a obra do Milton traz para o Rio Grande do Sul talvez o primeiro artista realmente pop da sua geração. Esse é o grande legado. Nós podemos dizer que temos um grande artista pop e também um visionário, alguém que deixou um grande legado para o futuro, para que as próxima gerações pudessem contemplar não só a parte expressa em cores, mas também em todo o tipo de material que ele tocou. Acho que ele é o precursor de muitas coisas aqui no RS e, sem dúvida, podemos deixar bem claro que temos um artista pop no RS, com uma obra maravilhosa.

EC – Fale sobre a continuidade do resgate e da preservação do acervo do Milton Kurtz e também do Mário Röhnelt.
Marcelo – O resgate e a preservação do acervo do Milton foi o grande aprendizado que eu tive como o Mário. Ele me ensinou como era importante guardar as obras de forma correta e também restaurá-las para que elas tivessem uma vida após a morte do artista. Eu ajudei a fazer isso com a obra do Milton e hoje sou responsável por fazer também pela obra do Mário. O Mário, como um grande apaixonado pela arte, nunca poupou nem esforços financeiros muito menos esforços físicos e sentimentais pra proteger a obra do Milton para que ela pudesse chegar nos tempos de hoje, após 20 anos, intacta, exatamente como o Milton nos deixou. Então foram muitos restauros, muitos lugares preparados para que essa obra ficasse acondicionada de forma correta.

“Cada cabeça, uma sentença”, grafite e tinta acrílica sobre papel (1989)

Foto: Tânia Meinerz

“Cada cabeça, uma sentença”, grafite e tinta acrílica sobre papel (1989)

Foto: Tânia Meinerz

EC – Há uma memória afetiva envolvida nesse projeto?
Marcelo – De tanto se lidar com as obras e transportá-las de um lugar pro outro, você vai se envolvendo com elas, vai conhecendo mais do artista, vai se apaixonando por algumas em especial. E hoje eu vivo muito isso não só com a obra do Milton, mas também com a obra do Mário. E é de minha responsabilidade não deixar que aconteça com as obras de ambos o que aconteceu de ficarem guardadas 20 anos dentro de um baú. Não porque assim o Mário tenha desejado, mas porque elas estavam protegidas.

EC − Boa parte do acervo é quase desconhecido pelo público. Por quê?
Marcelo – Nesse lapso de tempo, as obras do Milton saíram por alguns momentos para serem vistas pelo público, mas de uma forma mais tímida em função de que o Mário, como sempre produziu muito e criou muito durante a vida, as exposições dele sempre tiraram do Milton um pouco do tempo e da disponibilidade que o Mário tinha para expor. Então, essa é a minha grande responsabilidade hoje, fazer com que essas obras sejam colocadas de tempos em tempos à disposição do público pra que nenhuma delas mais volte para o baú e passe 10, 15, 20 anos escondida da humanidade. Será o meu legado, como administrador e como protetor das obras do Mário e também do Milton, e vou tentar fazer o meu melhor. Eu acho que esse foi o grande ensinamento, o Mário nesses 22 anos me preparou, porque sabia que um dia isso iria acontecer.

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