Visibilidade para a poesia das mulheres negras
Foto: Sabrina Gabana/Divulgação
A partir da ideia de tornar conhecidos poemas de mulheres negras da África e das Américas, a escritora Eliane Marques – Prêmio Açorianos de Literatura, em 2016 – lançou em suas redes sociais o projeto Orisun Oro. No idioma iorubá (nígero-congolês) significa “fonte da palavra”. “Existe uma dificuldade de acesso a publicações dessa natureza, o que me motivou a realizar um movimento em sentido contrário ao apagamento desses nomes”, diz a escritora.
O projeto conta com um Canal no Youtube para apresentar produções visuais de leitores dos poemas, que estão sendo traduzidos e publicados nas redes sociais da escritora. A estreia foi uma interpretação da atriz e bailarina Danielle Costa, do poema Para uma saia de seda ao sol, da escritora africana Ama Ata Aidoo, de Gana. Além do canal, também estão sendo produzidos mais de cem cards com ilustração da artista visual e atriz Iléa Ferraz e identidade visual da designer Aline Gonçalves, que podem ser compartilhados no Instagram e Facebook de Eliane.
Entre as artistas destacadas estão Beatriz Nascimento (Brasil), Virgínia Brindis de Salas (Uruguai), Ana Milena Lucumí (Colômbia), Mathem Shiferraw (Etiópia), Ifi Amadiume (Nigéria), Freedom Nyamubaya (Zimbábue), Warsan Shire (Somália), Sitawa Wafula (Quênia), entre outras.
A tradução dos poemas, escritos em língua inglesa e francesa, é de Adriano Migliavacca e os escritos em espanhol, pela própria Eliane. O projeto ainda conta com apoio da escritora e psicanalista Marcela Villavella, responsável pela divulgação na Argentina.
SOBRE ELIANE MARQUES – Escritora, poeta e editora. Curadora da Escola de Poesia, da revista de poesia Ovo da Ema e da revista de psicanálise e cultura Anna O. (Brasil e Argentina). Integra o catálogo Intelectuais Negras Visíveis. Graduada em Pedagogia e Direito, Mestre em Direito Público e Especialista em Constituição, Política e Economia, pela Ufrgs. Publicou os livros de poesia Relicário (Editorial Grupo Cero − 2009) e E se alguém o pano (Escola de Poesia − 2015), vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura 2016, na categoria poema. Com outros autores publicou Arado de Palavras (Editorial Grupo Cero − 2008) e Blasfêmeas: mulheres de palavra (Casa Verde – 2016). Traduziu o livro O Trágico em Psicanálise (Ediciones Psicolibros − 2012), da psicanalista argentina Marcela Villavella. Atualmente trabalha na tradução do livro Pregón de Marimorena, da poeta afro-uruguaia Virginia Brindis de Salas (editora Figura de Linguagem) e no seu próximo poemário O poço das Marianas.
Como surgiu Orisun oro
Foto: Sabrina Gabana/Divulgação
Foto: Sabrina Gabana/Divulgação
Extra Classe – Como surgiu a ideia do projeto Orisun Oro e qual a avaliação desses primeiros meses?
Eliane Marques – Dos vários projetos relativos à divulgação da literatura e da poesia feitas por mulheres, verifiquei que, sob o enfoque da produção artística, o trabalho das mulheres negras ainda “era” e “é” ocultado, apagado, destacando-se mais como objeto de pesquisas antropológicas ou sociológicas. Não digo que esses estudos não sejam importantes, mas questiono o motivo pelo qual nossas produções aparecem mais nesses campos e menos no campo artístico-literário propriamente dito. Por outro lado, não temos acesso no Brasil a grande parte dos textos escritos originalmente em espanhol, português e francês por mulheres racializadas como negras da África e da América Latina, o que se deve às eleições do mercado editorial, que ainda prioriza autores brancos. Incomodada com isso, postei nas minhas páginas do Facebook e do Instagram um card em que estava escrita a frase Leia mulheres negras e afrodiaspóricas, movimento pessoal que eu mesma iniciei a não mais de dez anos. Com a frase, pretendia convocar mais leitores a se engajar nessa virada de rotas.
O trabalho das mulheres negras ainda “era” e “é” ocultado, apagado, destacando-se mais como objeto de pesquisas antropológicas ou sociológicas
No texto que acompanhava o card citei uma série de nomes dessa linhagem, uns mais, outros menos conhecidos. A frase acabou se voltando para mim, impondo-me realizar um trabalho que possibilitasse a outras pessoas a leitura de poetas mulheres afrodiaspóricas. Para acessar esses livros objeto do Orisun oro conto com a colaboração do professor Adriano Migliavacca que, além de traduzir do inglês, trabalha como um rato de bibliotecas digitais. Agora, estamos na fase da montagem de uma equipe de tradutoras mulheres negras para o fim de lhes possibilitar trabalho e conhecimento na área da poesia. Os primeiros meses do projeto nos trouxeram o contato com várias poetas, não apenas no sentido do conhecimento de seus trabalhos e biografias, mas também um contato pessoal realmente afetivo, por e-mail ou WhattsApp.
EC – Como está sendo a interação com o público e que tipo de relato já é possível reportar aos leitores?
Eliane – O público é ainda um pouco tímido no acesso às postagens. Isso se deve às próprias dificuldades de circulação dos poemas no Facebook e a relação do público em geral com o poema, ainda visto como algo estranho à cotidianidade repleta de imagens fantásticas. Porém, o Orisun oro tem proporcionado grande interação entre a equipe do projeto e as mulheres negras da América Latina cujos poemas traduzimos e publicamos. Por exemplo, já conversamos com Georgina Herrera, poeta cubana fundamental para a tradição hispano-americana; desse contato resultou a cedência dos direitos autorais de 40 poemas para publicarmos em livro no Brasil pela editora da qual sou responsável, três desses poemas inéditos inclusive em espanhol.
Recentemente conversei por WhatsApp com a poeta afro-argentina Graciela Paz, que nos cedeu os direitos autorais do seu livro Zambeze para tradução e publicação. Também mantivemos contato com a poeta afro-porto-riquenha, Mayra-Santos Febres, que nos cedeu Anamu y Manígua para a publicação no Brasil. Essas poetas são inéditas em língua portuguesa e praticamente desconhecidas no Brasil. Conhecemos muito do que se produz e publica na Europa e nos Estados Unidos e quase nada do que se faz ao nosso lado, como no Uruguai, na Colômbia, no Peru, Equador… especialmente no que se refere ao trabalho das mulheres negras no campo do poema.
EC – Na sua visão, como a literatura/poesia produzida por mulheres negras poderia estar mais presente nos sistemas educacionais e de que forma professores interessados podem utilizar projetos para levar essa produção e as realidades dessas autoras para os estudantes?
Eliane – É importante compreender que as mulheres negras poetas produzem arte, ou seja, seus poemários se situam numa esfera ético-estética, além do interesse sociológico ou antropológico que ordinariamente suscitam. Depois, deve-se reconhecer que numa sociedade que se queira democrática, a democracia, inclusive no mercado editorial, não pode se reduzir ao discurso dos homens brancos, à sua visão de mundo, ao seu modo de interpretar e de escrever as coisas e as gentes. O trabalho das mulheres negras no campo do poema rompe com essa visão unitária e uniteral, escudada num universalismo que é tão particular quanto à saia de seda ao sol de que fala Ama Ata Aidoo, poeta de Gana, no poema que leva esse nome. A poesia pode estar presente em todas as disciplinas escolares, na História, na Geografia, na Biologia, na Matemática… não é necessário que esteja encerrada na Literatura ou na Língua Portuguesa.
Contudo, aos professores, nessa batalha diária que é sobreviver com um salário que não corresponde ao seu trabalho e à sua importância social, não se pode exigir que leiam poemas, que transmitam o gosto pela poesia aos seus alunos, que escrevam poemas, se antes não se fizer esse trabalho específico com eles mesmos. Para tanto, a Escola de Poesia oferece bolsas para professoras, especialmente negras, em todos os seus cursos. O curso para o qual as vagas ainda estão abertas se chama Poéticas Brasil e África e visa oferecer aos interessados uma visão geral da tradição poética brasileira, do modernismo à atualidade, bem como das poéticas africanas e sua fundamentação teórico-crítica, além de um mergulho bem especifico no Romanceira da Inconfidência, de Cecília Meireles. Especificamente quanto ao Orisun oro, as professoras podem baixar os cards de minha página no Facebook ou no Instagram, assim como copiar e utilizar os poemas para leitura e deleite, para o conhecimento de parte da cultura de outros países, para interpretação e discussão em grupos, entre outras possibilidades de trabalho. As professoras também podem incentivar as alunas a produzir um audiovisual no próprio celular no momento da leitura dos poemas, em seguida, enviá-lo ao e-mail do projeto para que os publiquemos no nosso canal no Youtube.