CULTURA

Cultura do cancelamento: prática autoritária ou voz dos excluídos?

O filósofo Filipe Campello, um estudioso da chamada cultura do cancelamento analisa o fenômeno e aponta onde começa e termina o debate democrático
Por Ana Paola de Oliveira / Publicado em 20 de agosto de 2020

Helder Tavares/Acervo Pessoal/Divulgação

Filipe Campello é professor de Filosofia e coordenador do Núcleo de Estudos em Ética e Política da Universidade Federal de Pernambuco

Helder Tavares/Acervo Pessoal/Divulgação

As redes sociais se tornaram a grande praça pública de ideias e ações. Ao mesmo tempo, têm sido usadas como um tribunal acusatório, sem freios, no qual impera o discurso reducionista e uns tentam silenciar os outros. À direita e à esquerda, a estratégia, se é que existe alguma, é sempre a mesma: calar e anular o pensamento divergente. Porém, o que ocorre na maioria das vezes, nos casos de cancelamento é que  o cancelado ganha ainda mais visibilidade, principalmente se for famoso. Ao mesmo tempo que, nem sempre a  chamada “cultura do cancelamento” traz mais luzes aos temas de fundo envolvidos nos debates: posições políticas (progressistas e conservadoras), fatos históricos, literatura, religião, machismo, feminismo, racismo, LGBTfobia, aborto, cultura, história, entre outros.

Há quem atribua a origem do termo “cancelar” à gíria “cancelar o CPF” oriunda dos esquadrões da morte (milícias de policiais) e do submundo da criminalidade. Outra vertente defende que sua origem está na popularização do “cancelamento de serviços” massificada pelos call center. A etimologia já é tema para linguistas, assim como se tornou objeto de preocupação na academia entre intelectuais de todo o mundo.

No Brasil, principalmente após as polêmicas identitárias potencializadas nas últimas edições do Big Brother Brasil, a prática ganhou força ao envolver massivamente tanto o público jovem comum de web com torcedores profissionais (influenciadores digitais), especialistas em aglutinar exércitos nas redes em torno de “causas” para gerar cliques e obviamente a vitória de algum concorrente.

Um exemplo de polêmica recente foi publicação de um artigo na Folha de São Paulo da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Os ataques a ela começaram após uma crítica ao último videoclipe da cantora Beyoncé, Black is a King. Na publicação, segundo a antropóloga, “causa estranheza que a cantora recorra a imagens tão estereotipadas e crie uma África caricata e perdida no tempo das savanas”.

A historiadora, que tem publicados mais de 30 livros, mais da metade tratam da escravidão e da condição do negro do Brasil ante uma cultura escravocrata, de viés claramente progressista. Ainda assim não foi poupada e acabou se desculpando publicamente, reconhecendo que havia feito “um comentário equivocado”.

Também houve o caso do youtuber Felipe Neto, que chegou a ser perseguido por haters radicais de direita em seu próprio condomínio e o caso foi parar no programa Fantástico, da Rede Globo. Nem mesmo a chef argentina Paola Carosella, famosa pelo Master Chef, escapou. Depois de um comentário sobre “nuggets” imitando carne, foi massacrada nas redes por veganos que se sentiram ofendidos.

Sem entrar no mérito da validade dos argumentos envolvidos nos cancelamentos citados, a chamada “cultura do cancelamento” pode se tornar uma perigosa arma contra a própria diversidade defendida pelos canceladores, inclusive e principalmente em escolas e universidades.

Segundo intelectuais como Noam Chomsky, que já assinou uma carta aberta e artigos  sobre o tema  junto a intelectuais do mundo inteiro e expoentes dentro dos próprios movimentos identitários, trata-se de um método autoritário e também fascista, que pode sair pela culatra e mais prejudicar do que fortalecer a democracia.  Para Chomsky e outros intelectuais, trata-se de usar as mesmas técnicas da extrema-direita, com ações impiedosas que atacam quando deveriam dialogar.

Ao esvaziarem o debate político, os verdadeiros mecanismos econômicos e políticos de opressão permaneceriam invisíveis e, assim este estado de cólera e busca de uma satisfação imediata no justiçamento via web, cria um véu gerado pela atmosfera persecutória sobre temas necessários, que mais prejudica as lutas históricas dos movimentos progressistas do que propõe avanços.

Sobre esse tema, o Extra Classe entrevistou o professor de Filosofia e coordenador do Núcleo de Estudos em Ética e Política da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), Filipe Campello que é um estudioso da Cultura do Cancelamento. O doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt e pós-doutor na New School for Social Research de Nova York revela os primórdios desta cultura e suas consequências.

Extra classe – Como surgiu a cultura do cancelamento?
Filipe Campello –
Essa cultura não é nova. Grupos que eram silenciados, historicamente, que não faziam parte do debate público, não tinham vozes e estavam fora, também, dessa inclusão de ter a sua opinião escutada. Houve uma válvula de escape, uma reação, do ponto de vista sociológico, muitas vezes compreensível, mas nota-se que pessoas ao pressionarem o debate trazem muitos afetos como ressentimentos e raivas. Evidentemente estão ali colocando suas vozes, mas cujas consequências podem também ser criticadas, como as acusações exageradas e a ideia de fazer justiça com as próprias mãos. Numa sociedade democrática o direito ao contraditório é essencial.

EC – O que é afinal a cultura do cancelamento?
Campello –
É muito importante entender e distinguir o que é o cancelamento. Não é toda crítica que entra nesta lógica do cancelamento. As pessoas têm que estarem abertas para serem criticadas e isso faz parte do debate público: responsabilizar-se por opiniões. O cancelamento não se reduz a todos estarem blindados à crítica, pelo contrário, significa, fortalecer e ampliar o diálogo. Por outro lado, para compreender a razão do cancelamento, tem que entender que historicamente pessoas e grupos eram cancelados, antes de se usar o termo. O ponto aqui não é o do lado da compreensão, mas o que está em jogo. Há uma raiva nessas pessoas que agora têm condições de falarem e serem ouvidas, mas fica a pergunta: o que fazer com este diagnóstico?

EC – Os que atacam fazem parte de grupos identitários que defendem lutas sociais, mas, em alguns casos, vemos técnicas de retóricas violentas e que historicamente são usadas pela extrema-direita, a qual combatem. Como o Sr. vê isso?
Campello – A cultura do cancelamento acaba entrando no que eu chamo de paradoxo, um curto circuito. Parte de uma postura que é antipunitivista, pois traz muitas das questões que estavam historicamente presentes nos debates identitários. Há uma confusão ao meu ver, quando se fala de relação de identidade de cancelamento que é a forma adotada dentro de grupos progressistas. As pautas identitárias se caracterizaram em três questões. A primeira é a possibilidade que não há uma identidade prévia, definida. As pessoas podem mudar e rever suas posições. A segunda tem uma dimensão jurídica importante que é a luta por justiça perpassada e pautada por instituições governamentais. Já na terceira há sempre uma disputa deste processo que faz parte de um jogo inclusivo, não o de cerceamento e calar a diferença.

EC – Quais as consequências diretas e indiretas destes ataques virtuais?
Campello – O cancelamento impede a possibilidade de mudança. Alguém que escreveu um twitter há 16 anos é ainda hoje acusada de pensar da mesma forma.  É como se não pudesse aprender e ter a abertura à crítica. No limite disso tudo, nós jogaríamos fora a educação. Então para que acreditar na educação, já que estão vetadas as possibilidades de mudança? O cancelamento é grave porque já tem uma espécie de acusação prévia. A pessoa torna-se automaticamente culpada. Vejamos o caso do eletricista americano Emmanuel Cafferty, que ao estalar os dedos, seu o ato foi ressignificado como um gesto racista. Ao ser fotografado e marcado na página da empresa, em menos de duas horas foi demitido. Este é o perigo da régua moral, pois os danos podem ser catastróficos. Mesmo que seja inocentado, na rede ele será sempre culpado. O cancelamento é desproporcionar a pena. O dano é eterno nas redes sociais.

EC – A cultura do cancelamento ao fazer linchamentos e justiça pelas “próprias redes “ deixa de aprofundar o direito à defesa?
Campello – Do ponto de vista jurídico, o direito à defesa é jogado fora das instituições da justiça. Apesar das imperfeições, ela pode colocar esta régua, apontar com provas quem cometeu de fato crime, assim assegurar direitos via instituições. Quando a cultura do cancelamento transfere isso para as redes sociais, ela está retrocedendo para um politicismo moral. Jogava-se as pessoas na fogueira e vira uma lógica de faroeste, onde se faz justiça com as próprias mãos. É uma pretensão moral do que é o certo e errado. Estão punindo moralmente os outros. O que é bom para mim, não vale para o outro. Aí se tem este conflito, na qual as instituições da justiça devem pautar esta régua como a presunção de inocência e o direito à ampla defesa.

EC – Mas no caso do Brasil e do próprio EUA a justiça é seletiva, então a cultura do cancelamento pode se tornar um prenúncio de uma anarquia bruta com essas punições desproporcionais nas redes?
Campello – Nos estados de direitos modernos as instituições da justiça pegam para si esta responsabilidade. É evidente que há imperfeições, mas a crítica deve ir em direção às instituições. A justiça seletiva, quando ela não dá voz, não escuta da mesma forma determinados grupos que trazem suas queixas e são legítimas, aparecem estes ajustes de contas. Mas em vez de aperfeiçoarmos a crítica para o aprimoramento da justiça acabamos por retroceder neste “moralismo persecutório” como tem sido visto. Ao interromper o debate, acusa-se e persegue-se. É uma antiestratégia do tribunal das redes sociais.

EC – Ao fazer a crítica a estes atos da cultura do cancelamento imediatamente aparece o termo “passar o pano”, isso reduz a crítica e enfraquece o debate e a tolerância?
Campello – Tem uma grande diferença entre passar pano e cancelar. Há muita coisa nestes dois extremos inclusive o livre debate. Pautar uma posição crítica é uma forma de abrir a responsabilidade de suas ações, mas sem automaticamente ser cancelada, como se ela não tivesse possibilidade de aprender de rever seus conceitos, inclusive de ser julgada depois pelas instituições da justiça. O direito ao contraditório está por traz das ideias progressistas mas acaba sendo jogado fora. Cancelar o cancelamento como tem sido dito não significa que as pessoas não devem ser criticadas. A medida utilizada às mudanças necessárias inclui o aprendizado social e o respeito.

EC – Qual sua opinião sobre as duas cartas manifestos “Uma carta sobre a justiça e o debate aberto” e a que contrapõe “Uma carta mais específica sobre justiça e debate anônimo”.
Campello – O desdobramento da crítica para quem é culpado tem se voltado as pessoas de visibilidade, artistas e intelectuais. No caso das cartas, são pessoas que têm privilégios e condições de defesa. A minha preocupação não é tanto com estas pessoas, mas o impacto e o desdobramento disso, com pessoas não têm esta visibilidade. A gente defende o aperfeiçoamento da justiça pois temos visto vários exemplos de execuções extrajudiciais com pessoas negras. Elas são vítimas de um cancelamento há muitos anos, pois não têm direito à livre defesa, presunção de inocência, tudo que “simboliza” o estado democrático de direito. Essas pessoas são as que mais sofrem por esta lógica.

EC – Quem deve ser responsabilizado por injustiças feitas nesta cultura do cancelamento?
Campello – Não é previsto um tipo de punição a pessoas por falsas acusações mesmo que acabem com a vida de outra pessoa. Há crimes previstos como difamação, injúria, mas na cultura do cancelamento, não é um indivíduo, pois, é muito difusa a forma como circula a informação. Não é como publicar uma matéria que apresenta uma calúnia. É difícil responsabilizar alguém. A dialética do cancelamento tem perdido de vista tudo o que estava por traz das críticas estruturais e históricas. As apreciações têm que atingir a dimensão social. A cultura do cancelamento tem se atrapalhado e voltado para a esse tipo de moralismo persecutório a indivíduos. Precisamos fazer uma crítica à cultura do cancelamento e suas formas de compartilhamento. Este é o peso dos usos das redes sociais e isso precisa ser enfrentado.

Um festival de vaias em Gramado, a revanche cultural da direita e os ataques ao cinema brasileiro

Foto: Acervo Pessoal/Divulgação

Foto: Acervo Pessoal/Divulgação

Um caso para lembrar. Nas últimas duas edições do Festival de Cinema de Gramado em 2018 e 2019 ataques a artistas e realizadores tentaram silenciar seus pronunciamentos e sua lutas. O diretor Otto Guerra foi uma das vítimas diretas, em 2018, junto com o ator Osmar Prado e o próprio Festival.

Segundo o diretor de animação, as vaias e ameaças foram em função da sua defesa pela liberdade do Lula no palco. “Gramado é uma cidade rica e branca. De repente acontece o festival, num ano em que era impossível não se manifestar politicamente, e elas se depararam com um universo antagônico às suas crenças e valores. Foram confrontadas em seu mundo que acreditam ser o certo”.

Os ataques a Otto seguiram na sua rede social após afirmar que tinha sido vaiado pela população local da cidade. Sua rede foi inundada de assédios, ameaças de morte e segundo uma internauta que “ele jamais deveria pisar no tapete vermelho”. Isso fez com que o diretor, frequentador assíduo do Festival há mais de 30 anos, reduzisse sua presença no evento na edição do ano seguinte.

Mas esta violência retórica se ampliou em 2019. O assédio atingiu, fisicamente, a classe artística ao passar pelo tapete vermelho, pois, habitantes da região da serra, jogaram comida nos realizadores durante uma manifestação a favor da Ancine, que vinha sendo “cancelada” politicamente pelo novo governo.

Para ele a agressividade piorou após a chegada da barbárie ao governo federal. “O fascismo, nesses momentos de vacilo na política de um país, cria espaço para eclodir.”

Após a agressão física aos convidados o Festival de Gramado também acabou sendo atacado nas redes sociais. As críticas e comentários vinham de todos os lados, de realizadores que não tiveram suas produções selecionadas e, também, os que julgam os investimentos em cultura desperdício de verbas públicas. Estavam unidos num mesmo discurso de ódio representantes da esquerda e da direita.

Otto defende que Gramado segue sendo o maior e mais importante festival de cinema do país. “Espero que Gramado siga sendo essa grande vitrine do cinema brasileiro e latino americano, desejo vida longa ao Festival. Vida longa, respeitosa e democrática”, conclui.

 

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