Livro, artigo de luxo?
Foto: Igor Sperotto
A declaração do ministro da Economia Paulo Guedes de que a isenção de tributos para livros – em agosto passado – deveria acabar porque ele é “artigo de luxo” voltado para elites foi a cereja colocada em cima de um bolo indigesto. De um lado, reações da indústria livreira que teme por sua sobrevivência, de outro, a constatação de que o pouco conquistado em termos de formação de leitores no país nos últimos 25 anos está em retrocesso.
A fala foi considerada infeliz pelo presidente da Associação Nacional das Livrarias (ANL), Bernardo Gurbanov. “É quase como uma afronta”, diz, para defender uma proposta que onera a comercialização de livros através da Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços (CBS). Trata-se da primeira proposição do governo para, com futuras iniciativas, reformar as questões tributárias do país. Proposta essa que foi considerada tímida em diversos setores da sociedade por não contemplar a simplificação dos tributos e não tocar em um tema essencial, como aliviar a vida dos mais pobres e da classe média.
O tributo pretende ser aplicado a todos os setores, sem exceção. Serão índices de 11 a 12%, incidindo, inclusive, sobre a cesta básica. No caso dos livros, os 12% sobre o produto final promete, na opinião de especialistas, ferir ainda mais um setor que encolheu 20% na última década e que, em abril, amargou ainda uma queda de 47% em seu faturamento comparado com o período anterior.
Do ponto de vista político, também sobram críticas. Para o escritor e professor de escrita criativa Jéferson Assumção, “a defesa do livro diante do bolsonarismo é questão civilizatória hoje”. Assumção, na verdade vai mais longe: “A ultradireita no mundo todo ataca os livros. Eles estão querendo acabar com a racionalidade em nível mundial”.
Em um cenário que também espelha o impacto digital na vida dos consumidores, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostra que, ao contrário do sugerido por Guedes, a elite econômica não é a que mais lê. Pelo contrário, se afasta do produto que ele chama “artigo de luxo”.
José Castilho Marques Neto, ex-editor, pesquisador e consultor para as área de livro, bibliotecas e formação de leitores, entende que a frase do ministro de Bolsonaro não deve ser vista como algo ocasional e por conta de uma proposta que busca somente uma reforma fiscal no país.
Na realidade, para ele, que em duas ocasiões foi o secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) junto aos Ministérios da Cultura (MinC) e da Educação (MEC), a declaração faz parte de uma pauta que, acredita, será permanente no atual governo: o combate e o menosprezo ao conhecimento.
Castilho diz que os esforços que foram feitos nos últimos 25 anos para a formação de leitores em um país onde se lê muito pouco estão sendo jogados fora. O atual Departamento do Livro e Leitura – que até o afastamento de Dilma Rousseff, era uma importante diretoria do Ministério da Cultura – está sem comando.
Conta outra
Crédito: Zé Carlos Barretta/Divulgação
O resultado para a política de formação de leitores é que, “até agora a iniciativa que veio do governo, há uns dois meses, aconteceu via MEC e é algo assustador”, opina. Castilho se refere ao projeto Conta pra mim.
Para ele, a ação voltada para as classes C, D e E está fora da realidade. “Até a publicidade do programa mostra isso”, diz. A campanha, ressalta, mostra gente que não tem nada a ver com o perfil do povo brasileiro. Ao retratar, por exemplo, negros, reproduz o estereótipo de “uma família negra de classe média americana”, registra.
Moralismo censor
O ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), ligado ao MinC e ao MEC, Castilho ainda questiona a qualidade literária do Conta pra mim. “Destrói toda a linguagem simbólica dos próprios contos de fadas”, afirma.
Como exemplos, fala do Lobo Mau que não é morto pelo caçador, mas cai em um rio e “some para sempre” e da Branca de Neve que não é desperta pelo beijo do príncipe. “A maçã que estava engasgada na garganta dela sai quando um dos anões tropeça”, diz.
De fato, Castilho entende que por trás do “vai ser só historinha bonitinha, fica tranquila”, dita pelo então ministro da Educação Abraham Weintraub para uma jornalista no lançamento do programa em 2019, está o “moralismo fundamentalista dos olavistas” que estão assentados no MEC.
À frente da Conta pra Mim está o secretário de alfabetização do MEC, Carlos Nadalim. Admirador e ex-aluno de Olavo de Carvalho, ele defende o homeschooling (ensino domiciliar), uma proposta polêmica a ponto de ser considerada crime na Alemanha e na Suécia.
Não é à toa que até agora a única iniciativa para a formação de leitores no governo Bolsonaro promove a literacia familiar. São ações onde crianças têm acesso a experiências relacionadas à leitura e à escrita diretamente com seus pais ou responsáveis.
Especialistas questionam
Foto: Reprodução
A inquietação contra a ação do MEC ainda fez que personalidades ligadas à área da leitura e do livro, pesquisadores, educadores e bibliotecários lançassem um manifesto de protesto.
No documento, a denúncia de que o programa tem bases em conceitos “ultrapassados, preconceituosos e excludentes de educação e de família” e é concebido “a partir de valores morais e religiosos, como o certo e o errado, o bom e o mau, o bonito e o feio”.
Para os signatários, o Conta pra mim também desconsidera “o vasto e qualificado conhecimento acumulado de pesquisas sobre a literatura infantil e formação de leitores”.
Mercado desmente homem do mercado
O argumento de Paulo Guedes para acabar com a isenção nos livros acabou sendo desmentido pelo próprio mercado.
Apesar do índice de leitores no Brasil ainda ser muito baixo, a última pesquisa Retratos da Leitura do Brasil (dos Instituto Pró-Livro e Itaú Cultural) mostra que, ao contrário do pensamento do ministro, as classes C,D e E leram mais livros do que as classes A e B.
Dos 34 milhões de leitores (aqueles que leram ou interagiram com um livro nos últimos três meses), 70% se encontram nas classes C,D e E.
Outros dados da pesquisa mostram que as pessoas com nível superior e das classes A e B, – potenciais compradores de livros e de “artigos de luxo” – estão dedicando seu tempo livre mais no acesso à internet e às redes sociais.
“O ministro desconhece o Brasil”, declara Castilho sobre Guedes. Segundo o especialista, decretar que um livro seja um artigo de luxo é não saber, por exemplo, que no ano de 2008 houve um crescimento de 58% das chamadas bibliotecas comunitárias, aquelas que são feitas pelos cidadãos, independente do apoio do setor público ou privado.
Castilho diz que existe um enorme movimento em torno do livro e da literatura nas mais variadas regiões do Brasil “que lê e escreve”, pontua.
“É muita produção oral que se transforma em escrita. Por isso, repito, quem diz que isso tudo é coisa de elite não conhece a realidade do país, a não ser a partir de uma ótica elitista”, reafirma.
Castilho, no entanto, reconhece que, se existe uma faixa “resiliente”, uma grande parcela da população não lê. Por isso, lamenta que o governo não apenas busca onerar o livro, mas “está operando para atacar a formação de leitores no Brasil”.
Artigo essencial
Foto: Acervo Pessoal/ Divulgação
Bernardo Gurbanov é categórico: “O livro é essencial, não de luxo”. Para o presidente da ANL, “não parece que Paulo Guedes tenha uma má formação, mas tem uma visão que podemos discutir longamente”.
A proposta de doação de livros para as classes mais pobres, usada como contra-argumento aos opositores da tributação, por exemplo, é uma das críticas. “Vamos doar livros é quase como coisificar o cidadão. Peca na liberdade de escolha”, afirma Gurbanov, que indica ainda a contradição do ministro. “Prega o liberalismo, mas coloca agora o Estado como paternalista.
Gurbanov lembra que o livro desde 2004 tem as alíquotas do PIS e Cofins zerados. “Não é isento. O livro e o seu processo todo paga, sim, impostos e contribuições. Só não é pago quando vai da livraria para o consumidor final”, esclarece.
Com a ideia do governo, as editoras terão que acrescentar em seus preços de capa, a CBS. “Para uma indústria que tem contribuições zeradas, 12% é a tornar inviável”.
O problema vai, segundo Gurbanov, acabar nas livrarias. “A editora vai ter que administrar o preço de capa. Já a livraria não tem como fazer isto”. Ele lembra ainda que devido à competição acirrada, o livreiro já não vende mais pelo preço de capa, mas com descontos. “Isso significa menos dinheiro no caixa e qualquer desconto que se der, ainda terá que ser pago os tais 12%”.
O impacto no preço final, estima, pode chegar a 20%, o que, de concreto, servirá ainda mais como efeito desestimulador.
Para o setor livreiro, a proposta do Guedes vai na contramão da democratização do livro. O dilema que fica é: tornar o livro ainda menos acessível ou pressionar por políticas públicas para que ele tenha uma presença maior entre a população?