Clarice Lispector, cem anos à frente de si mesma
Foto: Acervo Pessoal/Rocco/Divulgação
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Dezembro marca o centenário de Clarice Lispector, considerada uma das escritoras mais importantes e originais do século 20.
Ela migrou da Ucrânia para o Brasil com seus pais e suas duas irmãs em 1922. Os Lispector se radicaram no Recife (PE) até a família se mudar para o Rio de Janeiro em 1934. Clarice tinha, então, 14 anos.
No Rio, estudou Direito na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Paralelamente, fazia trabalhos na imprensa carioca. Das letras, não mais saiu.
IMPORTÂNCIA – Como Joyce, Kafka e Woolf, Clarice usava com maestria o Fluxo de Consciência, recurso literário que internaliza o discurso para mostrar aos leitores o interior da mente dos personagens. Foi ela quem inovou o estilo no Brasil. Por isso, chegou a ser chamada de a “Virginia Woolf” brasileira. O título a irritava.
Seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, publicado em dezembro de 1943, quando Clarice tinha 22 anos, rendeu comparações a Virginia Woolf, James Joyce, Marcel Proust e Jean-Paul Sartre.
Detestava comparações
A escritora chegou a afirmar mais tarde que, na época, não teria lido nada desses autores europeus. As comparações realmente a incomodavam muito.
O início da leitura de Virginia Woolf, Sartre e Proust só ocorreu após janeiro de 1944 quando se licenciou do jornal A Noite. Foi acompanhar o então marido, o diplomata brasileiro Maury Gurgel Valente, para seu novo posto, em Belém (PA).
Clarice teve dois filhos. Pedro Lispector Valente, nascido em Berna, Suíça, em 10 de agosto de 1948 e Paulo Lispector Valente, nascido em 10 de fevereiro de 1953 em Washington, Estados Unidos.
Dominando quatro idiomas (português, inglês, francês e espanhol), Clarice ainda foi tradutora de 35 livros. Entre eles, obras de Agatha Christie, Jorge Luis Borges, Júlio Verne e Edgar Allan Poe.
Tempos sombrios
Nascida Chaya Pinkhasovna Lispector, em uma família de judeus russos na cidade ucraniana de Chechelnyk em 10 de dezembro de 1920, Clarice Lispector chegou ao Brasil aos dois anos de idade.
Sua família migrou para fugir da onda de antissemitismo na Europa depois da primeira guerra mundial, e que se intensificou durante a guerra civil russa.
Seu avô fora assassinado, há biógrafos que registram um possível estupro de sua mãe por soldados russos durante a primeira guerra mundial. No meio disso, seu pai teria ficado na miséria e sem fontes de renda, vendo-se obrigado a migrar para a sobrevivência da família.
Separação e maternidade
Em 1959, a escritora encerra sua relação de 16 anos com o diplomata Gurgel Valente. As constantes viagens e mudanças que era obrigada a fazer devido ao serviço do marido, as desconfianças, os ciúmes e, sobretudo, seu desejo de não abandonar a carreira e se dedicar à saúde do seu primeiro filho foram determinantes. O primogênito foi diagnosticado esquizofrênico na adolescência.
Clarice, de uma forma ou outra, se sentia culpada por isso. Ela, que ao lado do marido, morou em Milão, Nápoles, Berna, Paris, Londres e Washington em um roteiro que durou 15 anos percebeu que as constantes mudanças deixavam Pedro cada vez mais nervoso.
Sentimento de culpa
Foto: Acervo Pessoal/Rocco/Divulgação
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Apesar disso, entre pesquisadores da obra de Clarice pairam opiniões divergentes em relação ao sentimento de culpa que a escritora carregara por toda a vida e a dimensão dele em influenciar sua introspecção.
Para Teresa Cristina Montero Ferreira, mestre e doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), Clarice era tímida e tinha uma certa quietude. “Já menina ela era mais introspectiva, gostava muito de ler”, diz.
Eu sou uma pergunta
Autora de Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector e O Rio de Clarice: Passeio afetivo pela cidade, Tereza lembra que, em uma entrevista com uma prima de sua biografada que conviveu com ela na época em que morou no Recife, disse que a imaginação fértil sempre foi um traço forte da então menina. “Ela dava nome aos ladrilhos e ia inventando histórias a partir disso”, fala.
Já a escritora e antropóloga Fátima Quintas, autora de Nervo Exposto em Torno de Clarice Lispector, acha que a doença da mãe influenciou muito a personalidade de Clarice. “Ela seria a salvação da mãe, que tinha uma doença degenerativa nos nervos, mas essa mãe morre em 1930. Ela carrega essa marca”, expõe.
Uma mulher não interrompida
Culpa, introspecção ou timidez não pararam o fenômeno Clarice Lispector. Para o escritor e historiador americano Benjamin Moser, autor de Why This World: A Biography of Clarice Lispector, publicado pela Oxford University Press em 2009, desde a primeira história de Clarice – publicada quando tinha 19 anos – até a última, “seguimos uma vida inteira de experimentação artística por meio de uma vasta gama de estilos e experiências”.
Moser escreveu para o New York Times que Clarice foi “uma mulher que não foi interrompida: uma mulher que não começou a escrever tarde, nem parou para casar ou ter filhos, nem sucumbiu às drogas ou ao suicídio. Uma mulher que, como tantos escritores do sexo masculino, começou na adolescência e continuou até o fim”.
Biografia apaixonada e o amor de Clarice pelo Brasil
Foto: Acervo Pessoal/Rocco/Divulgação
O americano se apaixonou pela obra de Clarice quando estudava Literatura de língua portuguesa. Seu esmero em conhecer a “enigmática escritora” fez com que seu trabalho integrasse o National Book Critics Circle Award, projeto que promove as melhores obras de críticas literárias publicadas na Inglaterra.
Moser diz que a literatura de Clarice não é para todos. “Até mesmo alguns brasileiros altamente letrados ficam perplexos com o fervor de culto que ela inspira”, comenta. No entanto, para o biógrafo, o amor pela pessoa de Clarice Lispector é imediato e inexplicável para quem a compreende instintivamente.
Para ele, a obra de Clarice “é uma arte que nos faz querer conhecer a mulher e ela é uma mulher que nos faz querer conhecer sua arte”.
Moser entende que Clarice Lispector “conjura, em primeiro lugar, a própria escritora” nos 85 contos que deixou. “Podemos traçar sua vida artística, desde a promessa adolescente, passando pela maturidade garantida, até a implosão à medida que ela se aproxima – e convoca – a morte”, filosofa.
Em sua vida, Clarice, que se naturalizou brasileira após os 21 anos, conforme a legislação da época, fazia questão de se declarar brasileira e pernambucana. “Eu saí do Recife, mas o Recife não saiu de mim”, dizia. “Abandonar o Brasil é um assunto muito sério. Eu pertenço ao Brasil”, afirmava convicta nossa maior escritora.
Comemorações e publicações
Foto: Acervo Pessoal/Rocco/Divulgação
Clarice Lispector morreu cedo, às vésperas de completar 57 anos de idade, de um câncer nos ovários. A influência de sua obra, no entanto, se reflete na amplitude das comemorações de seu centenário.
Nem mesmo a pandemia ofuscou a efeméride. Lives pipocaram por todos os lados. Em novembro, a Universidade de Princeton (EUA) realizou uma série de eventos. Entre eles um show com Moreno Veloso, Beatriz Azevedo e Jaques Morelenbaum e uma palestra da escritora Jhumpa Lahiri, vencedora do Prêmio Pulitzer de Ficção de 2000.
No Brasil, praticamente todos os cursos de Letras no país marcaram de uma forma ou outra atividades em memória da autora, que teve mais de 200 traduções de seus livros, em dez idiomas.
Mas a cereja do bolo do centenário foi proporcionada pela Editora Rocco. Em novembro de 2019, a detentora dos direitos de publicação de Lispector anunciou o relançamento das 18 mais importantes obras de Clarice. Começou em dezembro, com o primeiro livro da autora, Perto do Coração Selvagem. Culminando, em dezembro de 2020, com a Hora da Estrela.
São edições que contam com capas e conteúdos extras inéditos. As capas, assinadas pelo designer Victor Burton, detentor de uma dúzia de Prêmios Jabuti. Também trazem recortes de telas feitas por Clarice, que pintou 22 quadros ao longo de sua vida.
Todas as cartas
Foto: Rocco/Divulgação
Coube ainda à Rocco presentear os atuais e futuros fãs de Clarice com Todas as cartas, livro lançado em setembro que reúne correspondências escritas por Clarice Lispector durante sua vida. Pelo menos meia centena do material selecionado é inédito para o público e, segundo a editora, configura um acervo fundamental para compreender a trajetória literária da escritora.
O ponto alto são correspondências inéditas com amigos escritores como João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga, Lêdo Ivo, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Natércia Freire e Mário de Andrade.
Os 18 livros republicados pela Rocco Foto: Reprodução/Divulgação Foto: Reprodução/Divulgação
- Perto do Coração Selvagem
- O Lustre
- A Cidade Sitiada
- Laços de Família
- A Maçã no Escuro
- A Paixão segundo G.H.
- A Legião Estrangeira
- Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres
- Felicidade Clandestina
- Água Viva
- Onde Estivestes de Noite
- A Via Crucis do Corpo
- O Ovo e a Galinha
- Um Sopro de Vida
- A Bela e a Fera
- A Hora da Estrela