Telmo de Lima Freitas, o legado de um xucro poético
Foto: Eduardo Rocha
Cruz missioneira pendurada ao pescoço, bombacha arremangada, pés descalços, violão ao colo, ele fala dos “gaúchos do mar” e sola as primeiras notas. Murmura sons como se imitasse gritos de quem se comunica no mar aberto, enquanto coloca a rede e, ao murmúrio, acompanham as notas do violão. E começa a cantar os versos de “Olha o Mar”.
Numa tarde de verão, em Tramandaí, durante um encontro de música regional, Telmo de Lima Freitas carrega o estigma de um missioneiro que olha para todos os lados, embora o chapéu tapeado, a bota e a bombacha larga exponham com força uma tipicidade. Só que ele enxergou longe e profundamente o que tinha para cantar e contar. Mergulhou na rudeza e na suavidade de uma linguagem xucra, raiz, aquarelou o olhar em letras e melodias cheias de personalidade. Foi Orfeu campeiro. Voz das gentes e seu ofício, dos campos e ventos, das águas e seus mananciais.
Telmo de Lima Freitas, nascido em São Borja no dia 13 de fevereiro de 1933 e falecido em 18 de fevereiro de 2021, aos 88 anos, é considerado pelo crítico Juarez Fonseca o maior compositor regional do Rio Grande do Sul. Significa, traduzido para o idioma português, o mesmo que Atahualpa raiz para a Argentina. Telmo cantou o campo a partir das vivências. Mirou e ouviu os sinais de um jeito autêntico, original. Os mesmos sinais dos “gaúchos do mar” no oceano aberto, dos pampeanos no horizonte largo, dos balseiros cruzando o rio, dos trabalhadores escandindo facas, estribos, laços, tesouras e enxadas.
Juarez lembra que Telmo jamais usou um clichê em suas composições – e é algo tão comum no apelo de alguns compositores regionais. Que foi um romântico no trato do amor, um pintor de paisagens que falou do que conheceu e viveu. Junto com o fotógrafo Tude Munhoz e Ayrton dos Anjos, o Patinete, Juarez participou da produção do primeiro disco de Telmo, em 1983. Acompanhou-o nas edições da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, um marco dos festivais. Viu versos e acordes de um compositor múltiplo, que tocava violão e gaita de um jeito próprio e variedade de ritmos, como a mazurca, a polca, a milonga e o xote.
O primeiro grande sucesso foi em 1971, justamente na primeira Califórnia: Prece ao Minuano. Oração ao vento pampeiro, versejada em tom de súplica e devoção: Vento minuano/Eu te peço que prossigas/ Nesta cantiga/ De fraterna comunhão. A grande popularidade veio com Esquilador, um marco dos festivais nativistas, música vencedora da 9ª Califórnia da Canção Nativa, em 1979. Foi no palco da cidade de lona, em Uruguaiana, que a interpretação de Edson Otto e Os Cantores dos Sete Povos, devidamente caracterizados com avental de estopa e lenço atado na cabeça, levantou o público já no primeiro verso: Quando é tempo de tosquia/ já clareia o dia com outro sabor/ e as tesouras cortam/em um só compasso/ enrijecendo o braço do esquilador.
Música que demarca todo um uso próprio do linguajar campeiro e fronteiriço, com palavras muito próprias. Alma branca igual ao velo, tosando a martelo, cambiar de sorte, simbronaço, pelo curtido reúnem numa mesma canção um vocabulário singular, único, terrunhamente identificado com seu chão. Mas havia chão e asas no que Telmo compunha. Ele retratou a essencialidade de gente simples com um requinte de nobreza. Poesia é quando a alma se enobrece pela cor e pela aura da palavra. O pulso é o fiel da balança/ empunhando a carneadeira/ rude e fiel companheira/ para qualquer puxirão. Versos da música Açougueiro, quando se refere a Zé Grande, um hábil carneador.
Foto: Eduardo Rocha
O último campeiro
Dessa cepa de refinamento poético e melódico, uma marca que os festivais nativistas trazem, há compositores de extrema originalidade demarcando clássicos do regionalismo. Entre eles, estão, por exemplo, Aparício Silva Rillo e Mário Barbará. Telmo foi o último dessa cepa, na opinião de Sergio Rojas, compositor e arranjador que também fez história nos festivais. “Eu tenho uma desconfiança que o Telmo seja o último dessa cerne tradicional, verdadeiro, campeiro, autêntico do regionalismo do Rio Grande do Sul. Verdadeiro, aquele cara que vem do fundo do campo, que conhece o campo. Ele é uma referência”, diz Rojas.
Os que conviveram com ele, e o público em geral, dificilmente não lembrarão de versos que estão gravados para sempre. De verdadeiros clássicos que se tornaram algumas canções. “Telmo é o autor de clássicos do cancioneiro gaúcho como Cantiga de Ronda, Esquilador, Baile de Rancho, entre outros. Foi o melhor compositor, o melhor CD Regional do Troféu Açorianos com A Mesma Fuça, em 2019, quando foi também o patrono da Semana Farroupilha”, lembra a cantora Maria Luiza Benites, amiga pessoal de Telmo.
Festivais e movimento
Mais do que a si mesmo, Telmo representa um movimento que se expressa nos festivais nativistas, onde as composições ganham refinamento nas letras e riqueza nas melodias. Saem de cena os ritmos fáceis e as rimas simplórias de Teixeirinha e Gildo de Freitas e entram letristas rebuscados, como Rillo, Luiz Coronel, Sérgio Napp, Colmar Duarte, Antonio Augusto Ferreira e músicos da estirpe de Renato Borghetti, Luis Carlos Borges, Lúcio Yanel e Yamandu Costa. A eles se juntam grandes intérpretes, vozes que imortalizaram canções, como Leopoldo Rassier, César Passarinho, Fátima Gimenez, Loma e Maria Luiza Benitez. Mas entre todos esses, só um foi ao mesmo tempo compositor, letrista e intérprete: Telmo de Lima Freitas.
E assim, todos lembrarão dele como o homem senhor de sua arte. Optou por morar num sítio em Cachoeirinha, perto de Porto Alegre. Cultivava o galpão, as cordas, o couro e algumas habilidades, como a de fazer botas garrão de potro. Fazia e vivia suas próprias composições. Abre o poncho dessa alma, prenda minha/ Que eu preciso me abrigar, canta em Prenda Minha, composição clássica na qual, ao final de cada estrofe, repete o verso. Era uma marca registrada. Saborear a palavra, o som, e entregá-la novamente a quem ouve. Músicas que pareciam sempre pedir para ficar. E ficaram.