Memória, afeto e ancestralidade
Fotos: Igor Sperotto
A artista têxtil e ilustradora Mitti Mendonça e a fotógrafa e artista visual Ursula Jahn, cada uma a seu modo e lançando mão de diferentes motivações, técnicas e materiais, recorrem às imagens para resgatar a identidade, os afetos e a ancestralidade femininas com a exposição Afeto Presente, na Galeria Ecarta, até 11 de julho, das 10h às 18h, seguindo todos os protocolos de segurança contra a covid-19.
VISITAÇÃO – A Galeria Ecarta passa a ter suas exposições presenciais também no formato virtual a partir deste mês de julho. A atual mostra, Afeto Presente, é a primeira a contar com esse recurso, que permite conferir os diferentes espaços e acessar informações sobre cada uma das obras, como dimensão, técnica, nome e data de criação.
Foto: Mitti Mendonça/ Divulgação
São 20 obras em bordado e fotografia e um vídeo, divididos em duas mostras dentro da mesma exposição, as quais expressam a identidade e o imaginário das mulheres das famílias das autoras, que elas buscam resgatar por meio de pesquisa documental e oral. Em comum, a busca de autorreconhecimento e do pertencimento coletivo nesse jogo de luz e sombras da memória – que mantém vivos determinados afetos, pessoas e acontecimentos, enquanto obscurece outros.
“O ponto de convergência é a temática. Ambas as artistas têm pesquisas sobre memória familiar, ancestralidade e afetos sob um ponto de vista matriarcal. Contudo, fizemos a divisão da exposição em duas salas porque entendo que cada uma está contando a sua própria história através das obras apresentadas”, explica a historiadora Mel Ferrari, integrante do grupo de pesquisas Mulheres nos Acervos e curadora da mostra.
“Essa forma de representação da figura feminina é antagônica aos cânones da história da arte, reafirmando uma contranarrativa que, ao mesmo tempo em que cultiva a memória, transborda o espaço privado para alçar outras dimensões públicas”, conceitua a produtora cultural.
Retratos de família
Foto: Igor Sperotto
Com interferências nos retratos de seus familiares, Mitti Mendonça apresenta dez obras com costura e bordado, técnicas que aprendeu com suas tias. Ela relata que se utilizou de uma experiência coletiva herdada para subverter o uso cotidiano dos materiais, das linhas e dos tecidos, mesclando-os com o desenho e fazendo uma releitura das fotografias de família. “A construção dos retratos revela referências de matriz africana, presentes em toda sua produção”, repara a curadora.
“Minha motivação é falar sobre as questões de ancestralidade, memória e afeto, herança ancestral”, revela Mitti. As obras foram elaboradas a partir da técnica de bordado, ponto russo e pedrarias. “São releituras dos meus álbuns de família, dez leituras de mulheres da minha família, especificamente retratos e um autorretrato”, descreve a artista.
Foto: Mitti Mendonça/ Divulgação
Mitti vê as obras como uma materialização de heranças deixadas pelas mulheres que a antecederam e que ela quer passar adiante através do seu trabalho, da valorização do bordado com uma técnica artística. O ofício a motivou a criar o projeto Mãos Negras de valorização dessa herança cultural secular.
“Representa a oportunidade de dialogar, de provocar memórias também no público, porque muitas pessoas têm também essa questão muito forte na infância, na juventude, de ter na família uma mulher que bordava. A minha intenção é resgatar esses afetos e fazer com que o espaço seja um lugar de acolhimento”, relata a artista, que nasceu e mora em São Leopoldo.
A mostra também “fala” sobre protagonismo de mulheres negras, acrescenta Mitti. “Penso no quanto a arte, ao longo dos séculos, reservou lugar de destaque aos homens, os homens brancos. E as artistas mulheres não tiveram o tempo e o espaço necessário para cultivar o seu trabalho além do ambiente doméstico”, reflete.
Abordar o universo dessas personagens tão próximas, mas afastadas no tempo é como circular em conjunto com outras mulheres, expressa a artista. “Quando retrato essas mulheres da minha família, é como se estivéssemos todas lá, transitando por espaços não esperados. Todas eram empregadas domésticas. Penso no quanto o espaço da exposição representa um lugar onde elas podem ser reconhecidas e valorizadas nesse grande cânone que são as obras de arte”, constata.
Sobrenome materno
Foto: Igor Sperotto
Ursula Jahn mostra em dez imagens e um vídeo uma narrativa ficcional que mistura relatos de familiares com seu “inconsciente imagético para ressignificar o sobrenome materno”. Ela afirma que as obras buscam uma alteridade simbólica com sua mãe e irmã para resgatar a história das mulheres de sua linhagem, “como resistência afetiva sob o peso da estrutura patriarcal”.
Graduada em fotografia pela Unisinos, nascida em São Sebastião do Caí, Ursula mora em Montenegro. O lugar da mulher na sociedade, a percepção do corpo e a autoimagem são temas recorrentes em seus trabalhos. “Afeto Presente é uma exposição que reconstrói a nossa ancestralidade a partir de um ponto de vista matriarcal”, define.
O trabalho em cartaz é uma história ficcional sobre a perda dos sobrenomes maternos. “Misturando acontecimentos verídicos que envolvem uma memória familiar e meu consciente imaginativo, me voltei ao passado e à memória que me contavam de que minha bisavó materna fraturou a cintura pélvica. Brinquei, então, que esse acidente foi o responsável pelo desalinhamento em minha descendência ancestral feminina, que resultou na perda do registro do sobrenome materno de três gerações de mulheres da família, recaindo sobre elas o peso da estrutura patriarcal”, relata.
Inventário afetivo
Foto: Filipe Conde/ Divulgação
Ursula revela que esse trabalho é resultado de um start que ela teve em meio a um tratamento holístico, em 2019. “A terapeuta me disse que sentia existir um problema de ordem ancestral feminina na minha família, que sentia existir um processo de negação da linhagem materna. Pronto, eu saí de lá com a cabeça explodindo e fiquei um bom tempo refletindo sobre, e então percebi dois fatores dessa negação. O primeiro era um problema de ordem afetiva. E o segundo, eu e minha irmã apenas carregávamos o nome do nosso pai e minha mãe só carregava o nome do pai dela e assim por diante”, rememora.
Conta que passou a buscar imageticamente o que ela carrega dessas mulheres que vieram antes e que já não vivem mais, e das que ainda se fazem presentes na sua vida. “Faço isso através de imagens de mim, minha irmã e minha mãe, da apropriação de imagens de minha avó e bisavó e de uma videoperformance. Criei o meu inventário afetivo dessas mulheres, como ritual simbólico de cura dessa ausência do sobrenome materno.”