CULTURA

Era uma vez uma fábrica de discos – parte 2

Por César Fraga / Publicado em 19 de novembro de 2021

Foto: MuseCom/Divulgação

Foto: MuseCom/Divulgação


O acervo da A Electrica, pioneira gravadora de Porto Alegre e da América Latina, está disponível pela primeira vez em plataforma digital on-line. E não é no Spotify, nem no Itunes ou Deezer, mas sim de forma gratuita no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa (MuseCom) e com vários trechos on-line na web.

Trata-se do Catálogo Casa Eléctrica Digital, que apresenta a história da gravadora e uma coleção de 120 exemplares de discos fabricados por ela sob o selo Disco Gaúcho. Ao todo, a gravadora produziu, ao longo de 10 anos, mais de mil discos, gravados e prensados em suas instalações.

Foram gravações pesquisadas durante anos e que não podiam ser escutadas, nem por pesquisadores nem pelo público em geral. Só que, para entender quando começa essa história, é preciso recuar pouco mais de um século no tempo.

Foto: Reprodução/Divulgação

Porto Alegre entre 1908 e 1913: Rua dos Andradas

Foto: Reprodução/Divulgação

Era uma vez… uma Porto Alegre com menos de 80 mil habitantes. O ano era 1913. O Corpo de Bombeiros e as primeiras viaturas eram instalados na capital. Circulavam os primeiros automóveis, com limite de 10 km por hora no Centro e 15 km na área dos subúrbios, conforme a norma de trânsito vigente. As ruas e avenidas ganhavam o primeiro calçamento. O Sport Club Internacional venceria o seu primeiro Grenal – o primeiro foi em 1909 – e começaria aí a rivalidade, hoje histórica.

O Mercado Público teve seu segundo piso concluído. O porto e as estações férreas eram os principais pontos de chegadas e partidas da capital dos gaúchos – as estradas só se modernizariam bem depois dos anos 1930 e eram consideradas arriscadas.

Em meados de 1908, já havia se iniciado a circulação de 37 bondes elétricos de um e dois andares, adquiridos na Inglaterra e pertencentes à Companhia de Força e Luz Portoalegrense (formada pela Companhia Carris de Ferro Portoalegrense). Eles ligavam o que hoje chamamos de Centro Histórico aos bairros Menino Deus, Teresópolis, Partenon e Glória. A iluminação pública dos bairros era fornecida pela Usina Elétrica Municipal.

A partir do controle da eletricidade, as novas tecnologias da época mudavam radicalmente a forma de as pessoas viverem, se transportarem e se divertirem. A eletricidade, por exemplo, também levou os filmes, ainda mudos, para os teatros. Nas primeiras décadas do século 20, a cidade chegou a ter 60 cinemas ‘de calçada’, um deles com mais de 2,5 mil lugares. Aos poucos, levava também, para quem podia pagar, além de lâmpadas, música.

Foto: Reprodução/ Tânia Meinerz/Arquivo Extra Classe

Departamento de banho de galvanoplastia da Casa A Electrica

Foto: Reprodução/ Tânia Meinerz/Arquivo Extra Classe

Hoje, basta instalar um aplicativo no celular para ter acesso a quase toda produção fonográfica mundial. Se uma coleção de milhões de músicas cabe no bolso de qualquer um que use um smartphone, antes de serem inventados os primeiros players, ou compravam-se partituras para tocar em casa ou consumia-se música ao vivo.

É bem verdade que o fonógrafo de Thomas Édison foi inventado bem antes, nos tempos de Dom Pedro II, e com um cilindro no lugar de um disco. Mas foi no começo do século 19 e na virada para o 20, quando o alemão Emile-Berliner trocou o cilindro pelo disco plano e popularizou o gramofone, que o toca-discos, como conhecemos nos dias atuais, mudou o hábito de consumir música, levando-a dos auditórios e saraus para dentro de casa. O rádio só viria a partir dos anos 1920.

Com isso, os primeiros locais de gravações, espalhados pelo mundo, passaram a realizar registros elétricos em discos (em escala industrial) para que as pessoas pudessem ouvir música sem a necessidade da presença ao vivo do artista. Parte dessa história ocorreu em Porto Alegre, na fábrica de discos e gravadora A Electrica, cujo selo Disco Gaúcho marcou época e chegou a ser a segunda mais importante gravadora e fábrica de discos da América Latina.

Foi, portanto, nesse cenário de modernidade típico da segunda Revolução Industrial que, no Bairro Glória – onde se chegava de bonde elétrico –, dois irmãos imigrantes italianos tiveram a ideia de fundar uma fábrica de discos. A Electrica foi instalada no antigo número 9, hoje 220, da Avenida Sergipe, onde funcionou por dez anos, a partir de 1913.

Os irmãos Leonetti, segundo Vedana

Foto: Igor Sperotto

Graças a Vedana, o prédio onde funcionava a fábrica foi tombado, mas permanece em total abandono. O sonho de Hardy era que ali funcionasse uma espécie de museu da imagem e do som

Foto: Igor Sperotto

Conforme um dos importantes pesquisadores desta história, Hardy Vedana, falecido em 2009, em depoimento ao Extra Classe em 2006 e publicado em 2007, dois irmãos italianos (calabreses), Savério e Emílio Leonetti, fundaram a gravadora, um deles teria tirado a virgindade de uma moça em seu país natal e ambos vieram fugidos para a América. Este causo apócrifo não consta no livro A Electrica e os Discos Gaúchos, de 252 páginas, lançado por Hardy em 2006, o qual remonta a história dos dois pioneiros do disco. O relato de Vedana é extraoficial, pois, apesar de rocambolesco, nunca conseguiu a comprovação dessa história, que lhe foi contada oralmente e envolvia até a máfia (os pais da moça).

Ambiciosos, com vinte e poucos anos e algum dinheiro –, passaram antes por Nova Iorque e Buenos Aires – e, posteriormente, montaram em Porto Alegre, primeiro uma loja no Centro da cidade e, por fim, uma fábrica de discos planos, feitos de cera (goma laca), e que chegou a registrar não apenas a música feita no Rio Grande do Sul, mas também artistas de São Paulo, de Montevidéu e de Buenos Aires. O próprio Carlos Gardel, lenda do tango mundial, conforme Vedana, teria feito registros sonoros por ali. Em 2011, seu acervo foi doado ao MuseCom e ficou lá, parado por anos e sem o devido acondicionamento e atenção.

Foto: Tânia Meinerz/Arquivo Extra Classe

Com metade dos discos digitalizados, pelo menos 60 eram do acervo doado de Hardy Vedana ao MuseCom, em 2011

Foto: Tânia Meinerz/Arquivo Extra Classe

A Electrica tornou-se uma fábrica de discos, sendo “a segunda gravadora com fábrica própria da América Latina”, segundo o músico e pesquisador Arthur de Faria em sua obra Porto Alegre: uma Biografia Musical, de 2017.

A partir daí, A Electrica se consolidaria no ramo da fabricação de discos e gramofones, primeiramente em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e em alguns estados vizinhos. Tempos depois, conquistaria também o centro do Brasil e, por causa da proximidade, países como Argentina e Uruguai – os quais não possuíam nenhuma fábrica prensadora de discos à época.

A Casa A Electrica operou até 1923, constituindo um catálogo de 3.500 lançamentos (de acordo com Hardy Vedana), número expressivo para a ocasião. Não há uma “versão oficial” sobre o motivo da falência, apenas duas hipóteses são levantadas pelos pesquisadores: a crise mundial causada pelo pós-guerra (1ª Grande Guerra), a qual se abateu também na economia do Rio Grande do Sul, e também o “espírito perdulário” de Leonetti, que gastava além do que recebia. Fala-se também em uma querela existente com os irmãos Hartlieb, donos da Casa Hartlieb, localizada em Porto Alegre. Vendiam e arrumavam instrumentos musicais, publicavam partituras e comercializavam discos e fonógrafos de várias fábricas.

Depois do fechamento da Casa A Electrica, em 1923, o Rio Grande do Sul ficaria 40 anos sem produzir discos. Mas aí já é outra história.

O projeto viabilizado

Foto: Pantheon/Divulgação

Da esquerda para direita: Welington Silva (diretor do MuseCom), Alahna Rosa (museóloga da Pantheon) e Marcos Abreu (engenheiro responsável pela digitalização e higienização dos discos)

Foto: Pantheon/Divulgação

O diretor do MuseCom, Welington Ricardo Machado da Silva, explica que, apesar de o projeto do catálogo da Casa Elétrica Digital ter se viabilizado durante a pandemia, já vinha de um escopo de gestão mais amplo, no sentido de “encarar as necessidades de preservação dos acervos do museu”.

Com escassez de receita específica, foi preciso usar a criatividade. Os recursos foram provenientes do Edital Criação e Formação – Diversidade das Culturas, promovido pela Fundação Marcopolo e financiado pela Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (Sedac-RS) pela Lei Aldir Blanc.

A partir disso, estabeleceu-se um contato com a Pantheon Patrimônio e Cultura – parceira privada do projeto –, que se uniu ao MuseCom para promover a manutenção e a comunicação deste material. O projeto desenvolveu seis atividades/etapas para a preservação do acervo: higienização, acondicionamento adequado, digitalização, documentação fotográfica, pesquisa e publicização. A Pantheon é uma empresa de consultoria a museus, formada por três museólogas, mestres em Museologia e Patrimônio: Alahna Rosa, Kimberly Pires e Julia Jaeger.

“A gente vem construindo um olhar mais aprofundado de cada uma das nossas reservas técnicas, das nossas grandes coleções. No caso, o rádio e a fonografia, a imprensa escrita, o cinema, a publicidade e propaganda e os tridimensionais. A gente vem, desde 2019, fazendo grandes incursões nesses espaços e verificando quais seriam os acervos de maior relevância”, explica.

Foto: Pantheon/Divulgação

Processo de confecção dos envelopes de acondicionamento dos discos em papel filifold documenta e cola acid free

Foto: Pantheon/Divulgação

“No caso do rádio e da fonografia, identificamos, dentro da nossa dimensão de guarda que é o acervo, que esses discos da A Elétrica possuem essa relevância. Eles são muito importantes não só para o museu, mas também são muito importantes para a comunidade que nos procura, porque são parte integrante da memória dessa gravadora, que é pioneira no Brasil e no mundo”, dimensiona.

Ao todo, são 128 discos e 189 fonogramas. 50 desses fonogramas já estão inseridos no catálogo e podem ser acessados pelo próprio catálogo na internet. Todos fonogramas podem ser consultados mecanicamente, in loco, no museu.

De acordo com Wellington, o MuseCom pretende concluir até o final deste ano o processo de acondicionamento desses materiais, que já estão no último lote. E, até dezembro, fazer a documentação e as fichas documentais dos fonogramas, para poder disponibilizá-los por meio de repositórios próprios de difusão. “Com isso, a pessoa não precisa agendar. Por isso queremos concluir esses detalhes até dezembro”, explica.

Acesse o catálogo e, a partir dele, os áudios e outras informações.

Orçamento curto e muita vontade

Alahna Rosa, da Phanteon, conta que o mais difícil foi fazer tudo com um orçamento bastante enxuto: R$ 30 mil. “A realização do projeto surgiu a partir de uma relação que já tínhamos com o MuseCom. Quando saiu o edital, nós achamos que era uma boa possibilidade”, conta.

Conforme Alahna, o objetivo inicial era preservar o acervo de todas as formas, tanto o conteúdo dos discos quanto a materialidade. “A princípio, o Museu queria fazer isso sozinho, com compra dos equipamentos de digitalização e higienização. Mas ficamos com um pouco de receio de estar trabalhando com um material e com tecnologias que não dominávamos”, recorda.

Foto: Marcos Abreu/Acervo Pessoal/Divulgação

Selo Gaúcho, dos irmãos Leonetti, principal produto da Casa A Electrica

Foto: Marcos Abreu/Acervo Pessoal/Divulgação

De acordo com a museóloga, trata-se de um equipamento bastante caro, o que oneraria muito o projeto, correndo-se o risco, inclusive, “de não saber usar”. Foi quando se iniciou a procura por empresas que fizessem a digitalização de forma mais adequada, depois de alguns insucessos.

E foi a partir da ficha técnica do livro de Hardy Vedana, A Electrica, que se chegou no engenheiro de som, o Marcos Abreu, responsável à época (2006) pela digitalização dos áudios que foram para os três CDs que acompanhavam o livro.

“Aí, conseguimos conversar com uma pessoa que realmente conhecia a materialidade e o conteúdo, sabia do riscado, e passamos a entender como funcionaria o processo, a partir do momento em que contratamos o Marcos. E, apesar do orçamento apertado, ele tinha muito interesse no projeto e se doou e temos muito a agradecer a ele. Foi uma figura essencial na realização do projeto como um todo. Então, ele fez toda a parte de higienização e digitalização”, relata Alahna.

Os principais pesquisadores utilizados no catálogo para reconstituir a história da A Electrica foram Hardy Vedana, Arthur de Faria e Paixão Côrtes.

Engenharia de áudio

Marcos Abreu, engenheiro de som

Foto: Acervo Pessoal

Marcos Abreu, engenheiro de áudio

Foto: Acervo Pessoal

Marcos Abreu, um dos mais experientes engenheiros de áudio do país, responsável por inúmeros projetos artísticos e de restauração, relata que já há muito tempo queria retornar ao material da A Electrica, pelo qual possui interesse pessoal. “É um importante conteúdo sonoro que pode mostrar o que se escutava e até como se registravam conteúdos sonoros lá no princípio da história do som, quando eram registrados mecanicamente em uma matriz de cera. A Casa A Electrica, como uma das pioneiras no Brasil na fabricação de discos, é de extrema importância para a fonografia brasileira e da América Latina, pois poucos acervos desses discos estão disponíveis e, em breve, teremos isso à disposição aqui em Porto Alegre, onde tudo isso aconteceu”, festeja.

Segundo Abreu, foi necessária a importação de agulhas especiais, vindas da Inglaterra. Outra etapa bastante complicada foi a higienização dos discos. Foram décadas de acúmulo de resíduos nos sulcos dos discos. Como eles eram feitos a partir de uma base de goma laca – material rígido de resina usado antes da era do vinil – e muitos já estavam danificados ou até quebrados, os cuidados com os produtos certos precisavam ser redobrados.

Acesse a reportagem de 2007:

Era uma vez… uma fábrica de discos – parte 1

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