Al Janiah: Utopia, boemia e resistência
Foto: Lucas Martins/ Divulgação
Bar, restaurante de culinária árabe, centro cultural, espaço de resistência. O Al Janiah, no centro de São Paulo, é de tudo um pouco. “Espaço Político e Cultural”, conceitua o proprietário, Hasan Zarif, gaúcho de Camaquã, filho de refugiados palestinos da Guerra dos Seis Dias. “Quando a gente abriu, chamava de bar e restaurante, mas as pessoas não vêm aqui só para beber e consumir gastronomia árabe. Vêm pela proposta”, explica.
Zarif prefere não enfatizar o termo “espaço de resistência” e desaconselha que a sua equipe o faça. “Não queremos ser os salvadores da pátria, nos colocar nesse papel. Resistência faz quem está na rua, passando fome”, esclarece.
Mas ele não esconde a satisfação quando algum frequentador ou admirador adjetiva o local dessa forma, associando o Al Janiah à ideia de luta por democracia nesses tempos distópicos. “Nesse caso é bem-vindo. A gente passa por permanentes ameaças o tempo inteiro. E não são ameaças de posts de ‘comuns’, com discursos de ódio. Já tivemos de Carla Zambeli, dos bolsonaros, esses que têm peso e influência entre os fascistas, o que potencializa”, revela.
Nada comparado à Guerra dos Seis Dias, que durou de 5 a 10 de junho de 1967. Iniciada pelo Egito, esse que foi o terceiro conflito entre o Estado de Israel e países árabes vizinhos possibilitou ao estado sionista expandir seu território. Ao final, foram anexadas a Península do Sinai, a Cisjordânia, Gaza, Jerusalém oriental e as colinas de Golã.
Al Janiah
O conflito e seus desdobramentos pioraram as disputas e ocupações territoriais no Oriente Médio e criaram instabilidade nas décadas que se seguiram. “Antes da guerra síria, um a cada três refugiados no mundo era palestino”, ressalta o proprietário do Al Janiah – o nome do estabelecimento faz referência a um vilarejo na parte dos territórios palestinos ocupados por Israel na Cisjordânia.
É com uma base de trabalhadores que se viram obrigados a sair de seus países pelos mais variados embates que o Al Janiah recebeu também outra definição bem recorrente: bar dos refugiados.
No cardápio, além do falafel, tabule, esfiha, shawarma, cerveja e chope artesanal produzido ali mesmo, o mais procurado é o drinque da casa: Palestina Libre. O atendimento é feito por 16 funcionários e ganha o reforço de quatro freelancers quando o movimento aperta. O empresário se esforça para lembrar os países de origem do pessoal que já trabalhou ao seu lado.
“É gente da Argélia, Tunísia, Síria, Guiné Bissau, do Iêmen, de quase metade dos países da África e do Oriente Médio”, descreve. Cubanos, venezuelanos e brasileiros de outras regiões não são refugiados, ressalva Zarif, afirmando que eles estão em outra categoria. São migrantes antifascistas.
“Um dos cubanos que trabalha aqui esteve recentemente na Ilha, visitando seus parentes. Ele pode até ter suas críticas pontuais ao regime, mas percebe como foi importante a revolução”, esclarece. No ano passado, a casa acolheu Shafiq Latifi, que trabalhou como tradutor do urdu para tropas norte-americanas e teve que fugir quando os talibãs tomaram o poder no Afeganistão.
Acolhimento e civilidade
Foto: Marcelo Menna Barreto
Em menos de um ano de fundação, o estabelecimento foi alvo de atentados por seu posicionamento político. No antigo local, lembra Hasan Zarif, dois dias após o golpe contra Dilma Rousseff (PT), bombas de gás lacrimogênio foram jogadas no interior da casa por policiais militares.
No novo endereço, em 2019, um grupo de “supremacia branca” lançou uma bomba de gás lacrimogêneo e, enquanto o público corria, era atacado com sprays de pimenta. “Esse não foi o ataque mais grave. A gente já teve três carros que pararam aqui na frente e apontaram armas para a porta e atiraram para cima”, registra.
Para ele, tudo isso ocorreu porque o Al Janiah “ganhou um histórico de luta” e de acolhimento a perseguidos e ameaçados nesses tempos de exceção. “Quando estava todo mundo tomando porrada na rua, em 2018, com os fascistas, bolsonaristas empoderados, achando que podiam fazer o que queriam, a gente publicou em nossas redes que, aqui, qualquer pessoa que se sentisse ameaçada ou estivesse em uma situação de perigo poderia vir que a gente garantiria a segurança”, relembra.
Outra faceta do Al Janiah, como define seu fundador, é o trabalho com os extremos. Dentro do espaço, as mais variadas manifestações e oficinas consideradas progressistas são bem-vindas. Vão do lançamento de candidaturas da esquerda a livros, passando até por atos ecumênicos e oficina de um coletivo feminista sobre masturbação feminina.
Zarif diz que um dos princípios da casa, afixado na parede, é que o respeito ao ser humano, a civilidade, são fundamentais. “Isso não é ideologia. Tem que respeitar gênero, tem que respeitar cor, etnia, opção sexual, tudo. Aqui tinha travesti trabalhando na cozinha ao lado de um cara que rezava cinco vezes ao dia voltado para Meca. Com todo o respeito”, ilustra.
Refugiados palestinos
Foto: Marcelo Menna Barreto
O caldo de cultura que gerou o Al Janiah passou pela opção de Zarif, que se dedica à causa palestina, e por sua experiência autodeclarada de “vida noturna e boemia iniciada em Porto Alegre, na Cidade Baixa”. Integrante do Movimento Popular Palestina para Todos (Mopat), ele sempre trabalhou com cultura do mundo árabe, ligado à resistência do seu povo. Sem emprego, fazia cerveja artesanal em casa quando morava no bairro de Santa Cecília, na zona central de São Paulo, em cima de um bar de karaokê.
As ligações com as mais variadas correntes de esquerda que são solidárias à causa palestina renderam festas que lotavam seu apartamento e o estabelecimento comercial, que acabou virando uma extensão da casa. “Tanto é que, ao me mudar do apartamento, o Karaokê faliu”, explica.
A saída foi pela causa. “Em 2014, surgem os refugiados palestinos da guerra síria. Começou em 2012, mas o fluxo maior, mais triste, complicado foi a partir desse período”, recorda.
Foi aí que o Mopat, ao lado do movimento de luta pela moradia Terra Livre, organizou a ocupação de um prédio no bairro da Liberdade, centro de São Paulo. Quatro andares ficaram com famílias de imigrantes sírios, palestinos, libaneses, iraquianos em situação vulnerável. Mais de cem pessoas aportaram lá em poucos dias.
Assim, Zarif decidiu se mudar para o local que acabou sendo batizado como Ocupação Leila Khaled, em homenagem à militante da Frente Popular para a Libertação da Palestina que se tornou famosa nos anos 1970 e que, atualmente, integra o Conselho Nacional Palestino.
A missão de Zarif era servir de apoio em um espaço que ainda abrigava bolivianos e brasileiros. “Entre aqueles de língua árabe, ninguém falava português; eu estava muito envolvido e a coisa começou a ficar complicada. Doei os móveis que tinha e fui para lá até estabilizar a situação de comunicação”, relata.
Humor livre de preconceitos
Not available
No final de 2015, Zarif retomou a ideia antiga de ter um bar. Não qualquer bar. “Que fosse uma extensão da minha militância, onde se pudesse discutir política, falar da causa Palestina, passar filmes.” Sem dinheiro, “juntando daqui e dali”, ele alugou um primeiro espaço nas proximidades da avenida Augusta em janeiro de 2016.
Um ano depois, como o antigo estabelecimento ficou pequeno, se transferiu para o tradicional bairro do Bixiga. Lá, na rua Rui Barbosa, o Al Janiah passou a ter dois ambientes e um pátio. É um lugar para 180 pessoas sentadas e mais uma infinidade em pé, que comem e bebem discutindo a situação política do Brasil e do Oriente Médio. “Antes, eu, que defendo a causa Palestina, passei a vida inteira indo para lugares distantes para falar sobre ela. Agora, aqui, é o inverso. As pessoas vêm para cá e se envolvem. É incrível!”, exclama.
Destaque no concorrido Guia da Folha de São Paulo já no primeiro ano de funcionamento, o espaço ainda figura no Guia 36 Horas, do New York Times, como uma atração imprescindível de se conhecer em São Paulo. O Al Janiah também é o Ponto de Encontro Oficial da Mostra de Teatro da capital paulista. Em 2019, foi escolhido pela Warner Music como palco para a transmissão do lançamento no Brasil do álbum Everday Life, sob o amanhecer da Jordânia, da banda Coldplay.
“Ali, circulam todos os tipos de ideias, propostas, ativismos, artes, diversões, encontros, num ambiente absolutamente livre, criado e mantido por gente que já sofreu discriminação, opressão e preconceito. Sim, é possível rir dos nossos dramas cotidianos, desde que eles não provoquem ainda mais dramas e tragédias”, define o jornalista e escritor Gilmar Rodrigues.
Ele coordenou recentemente uma oficina sobre escrita de humor no Al Janiah. Trabalho, obviamente, dentro da proposta do local: “Humor de ‘esquerda’, crítico, mordaz e até agressivo, mas direcionado ao poder constituído e ao preconceito e discriminação que ele gera e não às vítimas desse poder. Humor sem homofobia, machismo ou racismo”, resume.