Livro resgata origens da milenar fábula Chapeuzinho Vermelho
Foto: J. J. Smith/ Reprodução
Foto: J. J. Smith/ Reprodução
“Pela estrada a fora, eu vou bem sozinha, levar esses doces para a vovozinha.” As estrofes iniciais da canção feita pelo compositor Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha (1907-2006), também conhecido como João de Barro, ultrapassam o imaginário de gerações de brasileiros e remetem à fábula infantojuvenil que completará um milênio em 2023: Chapeuzinho Vermelho.
Tanta história levou o professor Fabiano Moraes a lançar, em agosto, o livro Chapeuzinho Vermelho na Escola – Mil anos de história (Vozes, 2022, 152 p.). “Nunca contei Chapeuzinho Vermelho. Contava a versão do Chico Buarque, Chapeuzinho Amarelo”, explica Moraes, que é doutor em Educação e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e contador de histórias.
Ele evita as fábulas “hegemônicas, tipo Disney”, mas conta que se deparou com a “presença inquestionável” desse conto clássico nas salas de aula para crianças. Muitas ouviam outras versões e diziam que não era bem assim a história. Por isso, resolveu ir fundo na história – da fábula original da tradição oral feminina da Idade Média às suas inúmeras versões.
“A música do Braguinha foi composta em 1946. Não está nas rádios. Aquele disquinho já não toca mais há muito tempo. Aí me perguntei: como é que todo mundo sabe essa música e como ela é propagada? Ela não é popular, da tradição oral. Ela é autoral”, constata Fabiano.
A partir do que chama primeiros questionamentos, o porquê dos porquês sobre a história de Chapeuzinho Vermelho ser tão difundida, sua quase onipresença, “surge a inquietação”.
O livro de Moraes é resultado de uma pesquisa que se iniciou há mais de dez anos no seu mestrado em Linguística, em que muita coisa interessante foi encontrada, “mas não parou na dissertação”, enfatiza.
Criada para educar
Foto: Henry Liverseege/Bolton Library/ Reprodução
Foto: Henry Liverseege/Bolton Library/ Reprodução
Em Chapeuzinho Vermelho na Escola – Mil anos de história, além de apresentar a fábula e a sua trajetória, o professor faz sugestões de atividades para sala de aula da educação básica a partir de quatro versões contemporâneas: Deu a Louca na Chapeuzinho, animação infantil dirigida por Cory Edwards; Fita Verde no Cabelo, escrito por Guimarães Rosa; Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, e A Indiazinha Chapeuzinho Verde, da autora Maria Lucia Takua Peres.
As atividades sugeridas são, também, um questionamento ao sistema de produção e consumo excessivo e abordam, ainda, a preservação da natureza, o respeito aos ciclos de vida e o convívio intergeracional. Além disso, se propõem a trabalhar a compreensão do poder da palavra e a luta pelo discurso.
Não falta ainda o resgate do protagonismo feminino, que se perdeu ao longo destes mil anos. Tudo, ressalta o professor, necessário para “adiar o fim do mundo e recriarmos lugares de sonhos”.
Ele lembra que a primeira versão escrita do que era então conhecido como Conto da Avó, ou A História da Avó, já se originou com o objetivo de ser utilizado como ferramenta nos bancos educacionais.
Foi sob o título de De puella a lupellis servata (‘a menina poupada pelos lobos’, em tradução livre) que o clérigo e educador da Catedral de Liége, Egberto, deu fama – de forma escrita – à vestimenta da “camponesa mais famosa do mundo”, segundo o trabalho de Moraes.
Era um período em que a educação formal ficava sob total responsabilidade da Igreja, a grande disseminadora do conhecimento, com escolas anexas às catedrais ou aos mosteiros.
Na introdução da sua obra, o próprio Egberto de Liége admite que investiu forte nas tradições orais da região onde ele vivia para escrever A Nau Fecunda para seus alunos. “É lá, entre 2.373 versos, sentenças e provérbios e uma miscelânea de peças mais longas, como fábulas, sátiras e contos de cautela, que se encontra a primeira versão do que seria a atual Chapeuzinho Vermelho”, relata o livro de Moraes.
Rito de passagem
Na versão para educar de Egberto, uma menina de cinco anos é pega por uma loba para alimentar seus filhotes. Mas os lobinhos, ao invés de devorar a menina, a lambem delicadamente. Isso porque ela está usando as vestes encarnadas dadas por seu padrinho na hora do batismo no dia de Pentecostes. Uma representação da proteção divina.
De acordo com Moraes, tudo indica que o conto que as mulheres camponesas medievais passavam oralmente de gerações em gerações servia para demarcar a passagem da infância à fase adulta. “Um conto de iniciação sexual feminina”, em que a astúcia das mulheres estava presente, interpreta Fabiano.
A história do clérigo, apesar de distante da ideia original, tem o mérito da honestidade intelectual de registrar que se baseou na tradição oral de camponeses não alfabetizados para a “aquisição dos elementos da ‘alta cultura’”, como se dizia na época, além do fato de Egberto ter sido uma espécie de precursor dos folcloristas.
Do protagonismo à dupla violência
Foto: Acervo Pessoal
Na evolução do conto, destacam-se as versões de Charles Perrault (1628-1703) e dos irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863 e Wilhelm, 1786-1859).
Na história do francês que é considerado o Pai da Literatura Infantil, além do macabro fim de Chapeuzinho e de sua avó, devoradas pelo lobo, Moraes enfatiza o viés moralizante e machista.
“Um conto oral otimista sobre a iniciação sexual feminina se transforma em uma tragédia singular de violência em que a menina é culpada por haver sido violentada”, teoriza Moraes.
Algo que, apesar da sobrevivência da menina e de sua avó, na versão dos irmãos alemães, permanece. “Outro elemento é incluído aí. Chapeuzinho e a avó são salvas, retiradas da barriga do lobo, por um caçador. A figura do homem como salvador”, acrescenta.
Moraes vê no clássico Chapeuzinho Vermelho um conto de dupla violência. De um lado, entende que houve uma violação da tradição oral camponesa predominantemente feminina; do outro, o fomento de noções de violência por meio do tratamento da menina como objeto sexual.
Moraes diz que o que muitos consideram um conto de fadas, em um determinado momento passa a transmitir a ideia de um alerta para as meninas: “O quanto a violência sexual se faz presente na nossa cultura, sem, no entanto, se questionar a origem e as raízes culturais dessa violência”, escreve.
Sobre a menina salva dos filhotes de lobo
(Egberto de Liege – 1023)
Traduzido do Latim por Fabiano Moraes
O que tenho a relatar os camponeses o podem contar tal como o faço,
E por mais maravilhoso que pareça é a mais pura verdade:
Um homem apadrinhou, na pia batismal, uma menina
A quem deu uma túnica tecida com lã vermelha;
O dia santo de Pentecostes foi a data desse batizado.
Ao nascer do sol, a menina, que havia recém completado cinco anos,
Caminhou sem rumo, desatenta ao perigo que corria.
Um lobo a apanhou, seguiu para os covis silvestres,
Levou-a e entregou-a como uma caça para que os seus filhotes a devorassem.
Esses se lançaram sobre ela de uma só vez, e como não lograram feri-la,
Começaram, livres de sua agressividade, a lamber-lhe a cabeça.
“Não me estraguem esta túnica, seus ratos,” disse a menininha,
“Que o meu padrinho me deu ao me acolher na pia batismal!”
Deus, o criador desses, acalma seus espíritos cruéis.