A voz das mulheres privadas de liberdade
Foto: Igor Sperotto
Na penitenciária feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre, uma oficina de literatura leva obras de grandes autoras e incentiva mulheres a contarem suas próprias histórias.
Manicure e formada em Administração, Maricleia Müller viu sua vida virar do avesso quando foi presa com o companheiro, Estevão Andrade, em 29 de abril de 2020. Desse dia, ela guarda apenas flashes de memória: de ser separada do marido, das algemas, de dormir em uma delegacia até ser encaminhada ao presídio Madre Pelletier, na zona sul de Porto Alegre.
Na sua cabeça, martelava uma necessidade que a guiou durante o cárcere: “Preciso me adaptar, preciso me adaptar”.
“Eu tentava pensar que era uma casa nova, uma casa que eu jamais imaginei entrar”, disse, em entrevista ao Extra Classe. Ela não quis comentar qual foi o motivo da prisão.
Após 12 dias em isolamento devido às regras adotadas nos presídios durante a pandemia, Maricleia, enfim, chegou à galeria B2, que seria sua casa por dois anos e dois meses. Sua cela tinha uma cama e outras três mulheres, com quem fez uma amizade instantânea.
Para não dar espaço à angústia de estar longe de casa e da família, ela decidiu se ocupar. Primeiro, foi “paneleira”, função de quem distribui as refeições dentro da cadeia.
Depois, descobriu que havia uma biblioteca à espera de ser organizada. Se candidatou para a vaga e de lá não saiu mais. Lia todos os livros que chegavam como doação, desde romances espíritas aos “mais açucarados”, como ela mesma classifica. Entre uma leitura e outra, catalogava os títulos.
Em uma das oficinas do coletivo Balcão da Cidadania, personalizou seus próprios cadernos e começou a escrever – e não parou mais.
Em um dos trechos de um texto de 26 de setembro de 2021, registrou: “Meu querido diário, cada palavra escolhida para enfeitar meu diário foi feita de coração e muitos sorrisos”. Maricleia preencheu com esmero páginas e páginas de diários, em um esforço contínuo e comovente para não se abater.
Mulheres presas e palavras soltas
Foto: Igor Sperotto
O exercício da escrita a levou ao projeto “A Palavra Tem Nome de Mulher”, um grupo de leitura e redação literária criado em março por Helena Terra, autora do livro Bonequinha de lixo (2021). Hoje, a oficina funciona com cerca de 10 alunas no presídio feminino Madre Pelletier.
A cada quinze dias, elas se reúnem para discutir literatura feita por mulheres, com obras de autoras como Hilda Hilst, Adélia Prado, Gabriela Silva e Wislawa Szymborska. As mulheres privadas de liberdade não têm acesso à internet, computadores ou outras ferramentas digitais de processamento de texto.
Foto: Reprodução
O uso de celular também é proibido para visitantes. Por isso, toda a produção das aulas é feita à mão.
“Em agosto de 2021, passei na frente do presídio e vi mães gritando na calçada pelas filhas. Aquilo começou a me doer, e por isso decidi criar o projeto”, contou a escritora Helena, em entrevista ao Extra Classe.
“O Madre Pelletier é um ambiente muito mais seguro do que parece. Nunca senti medo lá dentro. A violência lá passa muito mais pelo processo de desumanização das mulheres privadas de liberdade”, ressaltou.
As alunas da oficina são escolhidas diretamente pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), e já há lista de espera.
Até agora, apenas uma pessoa desistiu das aulas: “Ela levantou e disse que não aguentava ouvir histórias tão tristes”, lembra Helena.
A maternidade e a saudade dos filhos são alguns dos temas que mais aparecem nos relatos. “Quando uma mulher é presa, isso reverbera de uma forma muito maior na família, por uma questão de patriarcado.
São elas que cuidam da educação dos filhos”, observa a autora.
Segundo um relatório de 2019 do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), em torno de 74% das mulheres privadas de liberdade têm filhos. Além disso, mais de 60% aguardam sentença da Justiça.
De acordo com a escritora, as participantes geralmente começam os exercícios de escrita com histórias ficcionais, mas, aos poucos, vão inserindo pedaços de suas próprias biografias no texto.
Um dos primeiros exercícios da oficina propôs que as participantes escrevessem sobre sonhos a partir da leitura de Dreamlog (2018), da jornalista Lívia Araújo.
A aluna Graciela Gonçalves, da galeria B1, resumiu o ato de sonhar da seguinte maneira:
Sonhar é traduzir aquilo tudo
que na realidade, desejamos,
é transformar nossos anseios
em doces sensações de prazer.
É cometer loucuras,
sem medo.
Confessar sentimentos ocultos,
proibidos.
Dormindo ou acordada
o que importa é viver,
em toda sua plenitude,
um sonho de cada luz.
O reencontro
Foto: Igor Sperotto
Conversamos com Helena numa noite de quinta-feira, 13 de outubro, na Casa de Cultura Mário Quintana. Alguns minutos depois, ela reencontrou Maricleia – em liberdade há quatro meses. Ambas haviam sido convidadas para um ciclo de palestras organizado pelo Balcão da Cidadania sobre o cárcere feminino.
“Toda sexta-feira, a gente chegava e a Maricleia vinha sempre com um sorriso no rosto”, lembrou uma das voluntárias da ONG. “O caso da prisão dela é a representação da falência do Estado”, acrescentou Helena.
No evento, algumas assistentes sociais da Susepe também compartilharam suas experiências como funcionárias no presídio feminino.
“Fiquei oito anos trabalhando no Madre Pelletier. As mulheres presas me mostraram que eu não sou diferente delas. Se eu estivesse na mesma situação, talvez tivesse o mesmo desfecho. Basta um erro na vida de alguém para acabar lá”, ponderou Daiana Maturano.
Maricleia falou pouco no evento, mas contou como o contato com os livros e a escrita a ajudou a resistir ao tempo de cárcere. Ela segurava com orgulho o diário onde encontrou uma libertação alternativa, em pensamento – até que a própria justiça decidiu a seu favor.
Enfim, liberdade
Foto: Igor Sperotto
Quando completou mais de dois anos presa, Maricleia desabou. A opção por ocupar as páginas dos seus cadernos personalizados com mensagens cheias de sentimentos de esperança e otimismo cedeu espaço ao desabafo.
“2 anos, um mês e cinco dias são o tempo que estou privada de liberdade, longe do mundo lá fora. Saudade da minha família, principalmente dos meus animais de estimação, do Jorge, da Ursa, do Tigre, da Belinha. Nossa, a saudade deles é muito grande, não tô aguentando, não gosto nem de pensar neles, da minha família nem se fala.”
Pouco tempo depois do desabafo, Maricleia estava em uma aula quando recebeu uma papelada. Pensou que fosse mais um livro para catalogar na biblioteca. “É a tua liberdade, me disseram”, ela lembra.
“Minha liberdade foi dia 29 de junho”, dando materialidade ao conceito que a maioria não dimensiona. Um dia depois, ela saiu dos portões do Madre Pelletier, onde seus tios a esperavam.
Agora, do lado de fora, ela quer viver ainda mais intensamente.
“Eu já era ansiosa, queria sempre fazer de tudo. Agora tenho dois anos de energia acumulada”, disse. Os cadernos seguem sendo seus companheiros, e as páginas agora estão recheadas dos planos: tirar carteira de motorista, especializar-se mais no ofício de manicure, com esmaltação em gel e unhas de fibra, e se engajar em um projeto social que lhe garantiu uma outra liberdade, a do pensar.
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