CULTURA

Jornalismo versus outrofobia

ENTREVISTA | FABIANA MORAES
Por César Fraga / Publicado em 14 de dezembro de 2022

 

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Fabiana Moraes conversou com o Jornal Extra Classe, por ocasião de sua passagem por Porto Alegre para o lançamento de seu novo livro, A pauta é uma arma de combate – Subjetividade, prática reflexiva e posicionamento para superar um jornalismo que desumaniza (Arquipélago, 367 páginas), em fins de novembro. Ela articula críticas, propostas e reflexões sobre as relações discursivas da mídia com grupos sociais historicamente oprimidos. Para a jornalista, se o outro é parte da matéria-prima do jornalismo, “o jornalismo não pode ser outrofóbico”.

Fabiana afirma que o jornalismo pode servir como meio de se opor a cenários de destruição de humanidades. Em seu livro, ela fala sobre como não haver espaço, em um dos países campeões em desigualdade social e concentração de renda no mundo, para posturas ‘neutras’ e falsamente equilibradas no jornalismo.

Fabiana Moraes é recifense e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É jornalista com mestrado em Comunicação e doutorado em Sociologia. Seu campo de pesquisa é mídia, imprensa, poder, raça, hierarquização social, imagem e arte.

Ela é vencedora de três prêmios Esso com as reportagens A vida mambembe (2007), Os sertões (2009) e O nascimento de Joicy (2011). Recebeu, ainda, o Prêmio Petrobras de Jornalismo, o Prêmio Imprensa Embratel e o Prêmio Cristina Tavares de Jornalismo. Ela, também, é autora de outros quatro livros: Os sertões (2010), Nabuco em pretos e brancos (2012), No país do racismo institucional (2013) e Jomard Muniz de Britto: professor em transe (2017).

Extra Classe – Na orelha escrita por Marcia Veiga, ela diz que este livro se trata da mais alta tecnologia de transformação. Gostaria de saber de qual transformação você propõe neste trabalho e qual a principal motivação para realização deste livro.

Fabiana Moraes – O livro nasceu a partir de um olhar crítico e não maternal sobre três pautas que eu desenvolvi e elas estão no final do livro. E também, associada a isso, uma análise construída no durante e também no pós-redação. Não se trata de uma análise centrada na minha produção, mas na produção de pautas de uma maneira geral. Sobre como é que a gente realiza as pautas. E essas pautas podem levar a gente, mesmo que de uma forma geral. De como a gente realiza as pautas e de como essa construção vai estar associada a uma série de questões, que, como tal, muitas vezes por melhor que seja a nossa vontade, elas podem levar a gente para lugares de mera estabilização de violências ou de invisibilidades. A pauta em si já é uma consequência de toda uma rede de ensinos, de práticas, que o jornalista desenvolve desde antes de concretizar uma reportagem.

EC – Como explicar para o leitor a forma como o jornalismo opera desde o século 19, sendo colonizado, machista, racista, entre outras adjetivos nada edificantes?

Fabiana – Uma coisa que é interessante para o público leigo é entender como é feito o critério de seleção de notícias que vai entrar em um jornal. O critério de seleção dos acontecimentos que serão transformados em notícia. Que filtro é este?  Jornalistas, editores, fotógrafos, esta rede profissional, ela vai filtrar esses acontecimentos e transformá-los ou não em notícia. Existe uma série de critérios que têm a ver com a fama das pessoas envolvidas, com o poder econômico, relevância geopolítica, a quantidade de pessoas envolvidas em determinado acontecimento. O grau de impacto que isso terá ou não na vida das pessoas. São elaborações do jornalismo para que se racionalize uma grande quantidade de acontecimentos, e é necessário ter critérios e uma hierarquia para organizar o que entra ou não. Por mais que a gente saiba que no dia a dia as coisas não operam exatamente assim. Muitas vezes, há outros fatores que vão levar algo a ser ou não notícia. E, ainda assim, esses fatores que eu falei são até hoje ensinados como dogmas nas universidades e não se questionam os valores-notícia em si. E o valor-notícia tem uma capacidade excludente enorme.

EC – O livro começou com um artigo acadêmico, não é?

Fabiana – Eu escrevi um artigo com Marcia Veiga, que foi apresentado num congresso de pós-graduação em Comunicação em 2019, e o tema deste artigo está presente na discussão deste livro que estou lançando. Nessa discussão, a gente faz uma crítica aos valores-notícia. Por exemplo, quando eu falo que o que vai ser notícia sobre países considerados de elite ou sobre pessoas proeminentes e assumo isso como uma verdade.  Quando eu assumo isso como uma verdade, então preciso assumir que países e pessoas que não são de elite ou não são proeminentes, elas estão tecnicamente fora da produção noticiosa. Significa dizer, por exemplo, que uma comunidade vulnerabilizada ou que países pobres vão ficar fora. A não ser por um ou outro critério que, enfim, se interponha e torne essas ou esses países noticiados ou noticiáveis.

EC – Esse critério de país acaba também sendo decalcado para outras amplitudes geográficas, como, por exemplo, Zona Sul e morro, no caso do Rio de Janeiro, ou zonas nobres e periferias, Sudeste/Nordeste?

Fabiana – Com certeza, esses são critérios. Só pra tentar traduzir melhor: sendo este apenas um dos critérios noticiosos e é um dos critérios em que faço crítica a alguns valores-notícia no segundo capítulo do livro. Justamente chamo a atenção para essas questões, porque, uma vez que assumimos isso, nós estamos assumindo também que esses lugares são menos importantes do que os outros. Outro valor forte é o da novidade ou do extraordinário. Isso é quase um sinônimo de jornalismo.

Jornalismo versus outrofobia

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

“Como é que a objetividade jornalística explica o fato de a maioria das fontes dos jornais de maior referência serem pessoas brancas e masculinas? Como é que a objetividade jornalística explica a fraca cobertura sobre as questões das populações indígenas até agora?”

EC – Principalmente nesta época de caça aos cliques, não é?

Fabiana – Exatamente. O risco é nos tornarmos ainda mais dramáticos. E o que a gente vai observar é que, muitas vezes, pessoas e grupos em situações de vulnerabilidades diversas só vão se tornar notícia a partir de fenômenos como da exotificação, em que sua condição é transformada em novidade. Um exemplo: a travesti que conseguiu passar no vestibular. De que forma vamos tratar essa pauta?

EC – O jornalismo acaba vendendo ao leitor médio um fato que deveria ser tratado com normalidade como algo espetacular? Cria-se um circo para tornar a notícia do que seria trivial mais interessante?

Fabiana – Exatamente. Este valor-notícia da novidade, que é muito caro ao nosso campo, quando pautado apenas pela diferença, se está transformando a diferença em desigualdade, na verdade. Não trata o diferente como um fato cotidiano. Mas tratamos como? Como aberração? Como exótico? Como parte de um tecido social? Para mim, é uma questão muito cara: que é quando eu consigo olhar aquilo que foi tratado historicamente como exótico e consigo trazer pessoas desses grupos por exercícios de tentativas de horizontalidade, ao invés de tentativas de diferenciações. Obviamente, eu entendo, como jornalista, que se é a primeira vez que uma travesti é nomeada pra um cargo de diretoria na USP, que isso é notícia. Pegando aqui a USP como esse lugar de poder, óbvio que isso é noticiável. Mas como eu falo sobre isso? A partir de que critérios? Como é que eu consigo transformar esse fato, não para dizer “olha aqui a travesti que agora está num lugar de poder?” Mas como trazer nessa notícia todo o círculo cultural e social que sempre impediu essas pessoas de chegarem ali. O jornalismo precisa tentar fazer determinados giros e inflexões sobre as formas como a gente pauta e dá a notícia, quando existe um potencial exotificador e exotificante muito grande. Porque, ao dar muito zoom na diferença, a gente cava mais o poço da desigualdade. Muitas vezes, se individualiza e não torna essas questões coletivas, porque tem várias outras pessoas que continuam fora nos espaços de poder.

EC – E como desatar esse nó?

Fabiana – Então, acho que esse exercício é reflexivo. No segundo capítulo, eu tento justamente fazer uma espécie de radiografia do que chamo de jornalismo de subjetividades. Porque foi o momento em que eu consegui organizar essas questões que desde 2015 venho tratando. Foi quando eu lancei o livro O nascimento de Joyce. Eu já falo no jornalismo de subjetividade nesse livro, mas de uma maneira ainda muito embrionária. Acho que agora eu consigo organizar melhor o que é esta subjetividade e a partir dele (o livro), através da pauta, provocar essas reflexões.

Jornalismo versus outrofobia

Foto: Foto: Igor Sperotto

Foto: Foto: Igor Sperotto

“Onde é que essa suposta objetividade jornalística nos levou até agora como imprensa e como sociedade?”

EC – Interessante você propor a questão da subjetividade no jornalismo, quando a busca pela objetividade é praticamente um dogma entre colegas. Como é esse negócio de tirar a subjetividade do armário?

Fabiana – Acho que tem uma questão que se impõe para pensarmos. Onde é que essa suposta objetividade jornalística nos levou até agora como imprensa e como sociedade? Como é que a objetividade jornalística explica, por exemplo, um discurso enviesado (preconceituoso) sobre o Nordeste? Como é que a objetividade jornalística explica o fato de a maioria das fontes dos jornais de maior referência serem pessoas brancas e masculinas? Como é que a objetividade jornalística explica a fraca cobertura sobre as questões das populações indígenas até agora? Tem várias questões que a objetividade jornalística nunca deu conta, porque ela nunca foi só objetividade. A subjetividade jornalística também esteve ali nessas escolhas. Por isso eu digo “tirar do armário”, porque ela está ali. Todo o trabalho que a gente faz como jornalistas, cineastas, produtores e produtoras de informação está relacionado à subjetividade. O que eu procuro fazer é mostrar um pouco o que costumo qualificar com subjetividade jornalística. Porque eu não estou falando que, necessariamente, ela, a subjetividade, seja por si mesma uma questão positiva. O racismo, por exemplo, é algo da ordem da subjetividade.

EC – Existem limites tanto pra objetividade quanto pra subjetividade no jornalismo? E é esse exercício que você está propondo?

Fabiana – É assim… A objetividade que não pode estar fora do jornalismo. E a objetividade de que falo é a que torna o jornalismo o que ele é. A apuração. Isso que a gente tá fazendo agora, né? A entrevista em busca de dados, de informações, de compreensão. A checagem. A não modificação da fala do outro. Principalmente, falo da modificação consciente das falas, atitudes e posturas do entrevistado, em nome daquilo em que o jornalista está interessado. Enfim, existe uma objetividade jornalística que, sem ela, o jornalismo não vai existir. A minha crítica é a uma objetividade que simplesmente esconde uma série de questões relacionadas também à ordem subjetiva. E que está presente no cotidiano jornalístico em nome, por exemplo, de uma suposta isenção.

EC – Nós, jornalistas, muitas vezes, nos escondemos atrás da objetividade de forma covarde?

Fabiana – Isso. Uma covardia de praticar, por exemplo, o jornalismo declaratório. Uma coisa que tá bem em voga e estou achando ótima atualmente é essa crítica ao jornalismo declaratório. Este, talvez, seja o grande exemplo dessa falsa isenção, dessa falsa objetividade. E que, na verdade, vai tornar o produto jornalístico um produto totalmente tóxico para uma série de populações. Temos o exemplo do termo “petralhada”, colocado em várias manchetes, em determinada época, e replicado nas redes sociais e que geram uma série de violências.

EC – Por exemplo…

Fabiana – Cito também a cobertura do caso Lázaro, que também trago no meu livro, ali no segundo capítulo. Critico práticas como ouvir a polícia sem fazer nenhuma espécie de filtragem, reportar termos racistas em relação às religiões não cristãs, como “magia negra” ou “ritual satânico”. Então acho que tem uma série de questões aí que são elaboradas pelo jornalismo, que, muitas vezes, são defendidas em nome de uma suposta perseguição da objetividade, mas que elas revelam mais questões da ordem subjetiva como racismo, por exemplo. E que são lançadas pelos jornalistas no ar, nas redes, como se ele não tivesse nada a ver com aquilo que está sendo publicizado, como se jornalista não fosse um filtro. Então, acho que a gente, inclusive, se apequena, a gente diminui o papel do jornalismo quando a gente se utiliza dessas explicações da objetividade, porque nós somos seres pensantes e exercendo uma atividade complexa que é o jornalista.

 

 

 

 

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