Hip-hop, educação e consciência
Foto: Igor Sperotto
“É o terrorismo lírico revidando e resistindo! Poetas Vivos!”, é assim o grito de resistência do grupo que leva o hip-hop gaúcho para todo o Brasil. Formado por cinco jovens negros de Porto Alegre, o coletivo Poetas Vivos foi criado em 2018, por meio das rodas culturais da capital gaúcha, os slams, ou batalhas de poesia. O objetivo sempre foi o de potencializar e valorizar os jovens. A partir do seu trabalho, o grupo quer trazer inclusão e uma perspectiva diferente da realidade que essas crianças e adolescentes vivem diariamente.
São cinco anos de um trabalho que leva nos seus versos a história do povo negro e as vivências da periferia para dentro das escolas, universidades e espaços públicos. O punho em riste com um lápis na mão, símbolo do grupo, confirma o que trazem as rimas cantadas ou recitadas nos slams. O hip-hop não é só um estilo musical, mas também uma cultura, é promoção de conhecimento.
Tratado como um movimento social, o hip-hop vem dos subúrbios de uma Nova York e uma Chicago dos anos 1970. O surgimento ocorreu pois os bairros periféricos sofriam com a pobreza, o tráfico de drogas, a violência, a ausência de espaços de lazer para as crianças e o racismo.
Ou seja, essa cultura urbana nasceu como forma de resistência. A pesquisadora e socióloga estadunidense Tricia Rose explica que o surgimento do hip-hop deu-se, também, por conta da “destruição” de instituições que deveriam apoiar as comunidades, um abandono do governo.
“Esses grupos – que iniciam os movimentos – formam um novo tipo de família, forjada a partir de um vínculo intercultural que, a exemplo das formações das gangues, promovem isolamento e segurança em um ambiente complexo e inflexível. E, de fato, contribuem para as construções das redes da comunidade que servem de base para os novos movimentos sociais”, escreve a socióloga no trabalho Um estilo que ninguém segura: Política, estilo e a cidade pós-industrial no hip-hop.
As cabeças por trás do Poetas Vivos, os MCs DaNova e Dickel, o Dj Ericão, Felipe Deds e Mariana Marmontel, trabalham em quatro áreas. Na educação, promovem oficinas, intervenções poéticas e palestras em escolas e universidades. Por meio da literatura, trabalham os slams, os saraus, intervenções poéticas e publicações de fanzines e livros. A área musical possibilita o lançamento de sons, videoclipes, shows musicais e realização de eventos. A quarta área, o empreendedorismo, trabalha com o lançamento de roupas e acessórios com lojas parceiras e a venda de livros e fanzines nos bares de Porto Alegre.
Essa ideia de comunidade, trazida por Tricia Rose, é percebida pelo coletivo. “Nós sentimos que nossos projetos estão transformando os sonhos, principalmente da juventude, em realidade. Dentro das escolas e redes sociais, recebemos muitos retornos positivos dos professores e dos alunos, pedindo que voltemos aos espaços. Isso nos deixa de coração quente e inspirados para dar seguimento nesse projeto”, afirmam os integrantes do Poetas Vivos.
Foto: Igor Sperotto
Nas redes sociais (@poetasvivxs), é possível acompanhar uma parte do trabalho feito pelo Poetas Vivos e compreender que a arte criada tem um propósito e um comprometimento com a sociedade. É nas rimas, nos versos e nas estrofes das músicas que eles apresentam um discurso antirracista, antimachista, livre de preconceito e com consciência social.
“Um quadro negro contando a história de um branco, ainda me lembro a história da escravidão. Eu vivo no RS onde a adversidade é negada quando o preto e o gueto são questão”, cantam no single ‘Primeiro Ato’, de 2019. O lançamento teve como objetivo empoderar a favela e exaltar a comunidade negra.
Os integrantes contam que a trajetória do coletivo não tem sido fácil. Apesar de contemplados com alguns editais públicos, como o Edital Criação e Formação, da Lei Aldir Blanc, e o Fumproarte, da Secretaria Municipal de Cultura, os artistas lembram que isso não é o suficiente.
“Sabemos o quão difícil foi fazer cada etapa, desde a escrita até a realização. Portanto, acreditamos que, para além destas formas de viabilização de verbas, é importante que haja também movimentações quanto à formação e capacitação para que jovens pretos e jovens periféricos possam estar acessando esses recursos”, sugerem os membros do coletivo.
Dentro dessas oportunidades que podem ser criadas e das trocas de conhecimento, o movimento está se mobilizando nacionalmente para celebrar os 50 anos do hip-hop no país. Em nome dos Poetas Vivos, Mariana foi escolhida como 5ª suplente para representar as necessidades, carências e demandas do Rio Grande do Sul.
Cultura que fortalece e dá esperança
A vinte minutos do Centro de Porto Alegre, no Morro da Cruz, o Galpão Cultural – Casa do Hip-Hop também oferece cultura à comunidade. Jaqueline Pereira, conhecida como Negra Jaque, é a coordenadora do espaço e explica que, a partir dos eventos que acontecem ali e nas atividades propostas, é possível ampliar a visão de mundo de quem mora no local.
Assim como os Poetas Vivos, os educadores do Galpão Cultural também fazem trabalhos em escolas. É por meio de oficinas de rima e dança que eles promovem o movimento do hip-hop.
Além disso, a aproximação com outros movimentos gera a potencialização e valorização dos jovens da comunidade. Negra Jaque conta que, por meio de uma aula do Galpão, que ensina a arte da perna-de-pau, um dos alunos foi selecionado para participar do HONK! POA. O evento é um festival de fanfarras ativistas, que defende a ocupação das ruas como um processo de resistência coletiva e artística.
“Ele nunca tinha feito aula de perna-de-pau, mas no primeiro dia já se destacou, conseguiu aprender e foi convidado para participar do cortejo do Bloco do Beijo. Foi lindo ver ele participando das atividades e sendo fortalecido”, exalta a coordenadora do Galpão.
Com o Poetas Vivos não é diferente, o slam já promoveu diversos momentos marcantes. O coletivo lembra que, em 2019, no Morro do Sereno, no Rio de Janeiro, após Felipe Deds ser campeão da 1ª edição do Slam do Sereno, um menino pediu ajuda para escrever uma poesia.
“A plateia inteira era só de crianças e adolescentes. Depois do slam, fizemos uma atividade com eles e, com o auxílio do DaNova, um menino fez um lindo texto. Logo ao finalizarem o poema, o garoto foi correndo mostrar para o irmão dele, que, infelizmente, estava trabalhando em uma biqueira (ponto de venda de drogas). Ali descobrimos a dimensão que nosso trabalho tinha”, contam.
Foto: Igor Sperotto
A slammer Mikaela Coelho, conhecida como Mika, conta que o hip-hop serviu para trabalhar a sua identidade. Ela conheceu o slam em 2016, pela internet e recita desde 2018. “O contato com essa cultura me ajudou a me entender como mulher negra, pois, pra mim, minha cor chega antes do meu gênero nos locais. – O movimento – ajudou a moldar minha personalidade e a forma de me posicionar”, explica.
A artista participou do Festival Aquarela Preta, promovido pelo Poetas Vivos, e tem como planos para o futuro uma carreira com shows pelo país, sendo reconhecida nacionalmente pelo seu serviço e ganhando para fazer o que ama.
O futuro dos projetos
Mesmo com relatos positivos, promovendo trabalho com crianças e jovens e levando a cultura do hip-hop para dentro das comunidades, Negra Jaque explica que é necessário que o Galpão Cultural seja um espaço sustentável.
“Queremos ampliar as ações, principalmente nas escolas, e ter sustentabilidade. O espaço ainda vive de campanhas para arrecadar fundos e doações.” No entanto, a coordenadora afirma que, para manter as portas abertas, “é necessário conseguir a estabilidade financeira”.
Foto: Igor Sperotto
Hoje, a conta da internet, do gás e a ajuda de custo para os educadores geram um investimento mensal de quase R$ 3 mil para o Galpão Cultural. Para conseguir arrecadar todo esse valor, a organização criou a campanha #ChegaJunto. Assim, o espaço pretende continuar com as portas abertas e prosseguir mostrando o quanto a arte pode movimentar vidas. No Instagram do espaço (@galpaoculturalch2poa), estão todas as informações para quem desejar ajudar.
Para os Poetas Vivos, o ano 2023 é com foco no crescimento. O grupo quer investir na área musical, com shows em festivais, e criar os próprios espaços para que o público acompanhe cada vez mais os trabalhos produzidos.
Tudo isso sem abandonar as rodas culturais mensais e as performances que os artistas fazem nas ruas da capital diariamente.
Douglas Glier Schütz é estagiário de jornalismo. Matéria elaborada com supervisão de César Fraga.