Coletânea de poemas marca os 90 anos de Armindo Trevisan
Foto: Igor Sperotto
“É melhor ler muito e escrever pouco, não escrever livro nenhum a escrever um livro que não suscite dúvidas, alguma emoção, algum amor”, afirma Armindo Trevisan.
A convicção é de quem viveu para poder falar sobre a escrita. São nove décadas vividas entre a poesia, o ensino, os amigos e a família. O professor e poeta Armindo Trevisan completa 90 anos de vida em setembro, mas as celebrações e reverências pelos seus 90 anos já começaram.
Para quem já ensinou muito sobre arte a tantos, escreveu poesias e ensaios que iluminam e fez da palavra o seu ofício, nada mais justo que seu aniversário seja comemorado com um evento literário, com direito a poemas inéditos, entre outras surpresas.
Companhias são o que não lhe faltam. Na sua trajetória, o autor foi colecionando amizades e parcerias que resultaram em lindos projetos. Por exemplo, foi ele quem selecionou os poemas para antologias de Mario Quintana e também para outro amigo, Xico Stockinger. Também, escreveu um texto no livro A Matéria Encantada, de Luiz Eduardo Achutti, que aborda a última obra do escultor gaúcho.
Com sua estética rigorosa, Armindo foi orientador de muitos jovens artistas em uma carreira dedicada ao ensino da História da Arte e Estética na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), de 1973 a 1986. Dessa experiência, ele ressalta as trocas e os aprendizados.
“O magistério universitário deu-me oportunidade para aprender com os alunos, tanto quanto com outros mestres fora da universidade. Considero que, sem os alunos, tanto no Instituto de Artes como na Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, não teria escrito meus ensaios de literatura e meus ensaios sobre História da Arte, especialmente o Rosto de Cristo (AGE, 2003) e Uma Viagem Através da Idade Média (AGE, 2014). Muitos de meus alunos são hoje artistas reconhecidos”, elenca.
Foto: Bestiário/ Divulgação
Foto: Bestiário/ Divulgação
Trevisan adianta nesta entrevista ao Extra Classe que está em fase de produção o livro Meus Melhores Poemas, a ser lançado em julho pela Editora Bestiário, por ocasião dos seus 90 anos, e relata sua relação com a arte.
“Não me lembro como descobri a Arte. Suponho que foi nos ritos da Igreja Católica, vendo as casulas dos sacerdotes, as imagens em seus nichos com pequenos pedestais e, como na igreja de minha Paróquia, em Santa Maria, havia vitrais. Eu me encantava com as figuras de santos representadas, cada uma com seus símbolos, todas com cores muito vivas”, recorda.
Ele cita Simões Lopes Neto e os clássicos da história da arte entre as suas influências.
“Depois, naturalmente, vieram as ilustrações nos livros e revistas. Em relação à poesia, sempre fui, como Simões Lopes Neto, um admirador dos textos litúrgicos, entre os quais a Salve Rainha, que o grande regionalista dizia ser a mais bela oração composta pelos homens. Mais tarde, ao fazer meu doutorado em Filosofia, na Suíça, descobri os museus”, conta.
Segundo ele, esse contato com obras dos grandes mestres nos museus do Velho Mundo representou uma virada de página em relação à sua percepção sobre as artes.
“Bem, depois de ver Giotto, Duccio, Leonardo, Michelangelo, Rembrandt, Caravaggio, Picasso, Matisse, Rodin, Brancusi, dezenas de outros gênios… é melhor ficar silencioso. A arte é linguagem e a linguagem é o maior dom que a Natureza – pseudônimo para alguns de Deus, no qual creio – concedeu aos mortais”, conceitua.
Carreira literária e os 90 anos
Foto: Igor Sperotto
Nascido em Santa Maria, em 6 de setembro de 1933, Trevisan iniciou uma carreira literária bem-sucedida já a partir do seu primeiro livro, A Surpresa de Ser, de 1967.
Pelo conjunto da sua obra, que reúne cerca de 30 livros de poesia, ensaios e traduções, foi agraciado inúmeras vezes. Como obra inédita, esse primeiro livro ganhou o Prêmio Nacional de Poesia Gonçalves Dias, da União Brasileira de Escritores, em 1964.
Entre os membros da comissão julgadora desse prêmio, estavam ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo.
O poeta e escritor gaúcho também ganhou o Prêmio Nacional de Brasília para poesia inédita do original O Abajur de Píndaro, em 1972, e o Prêmio Aplub de Literatura pela obra A Dança do Fogo, em 1997. Em 2001, foi patrono da 47ª Feira do Livro de Porto Alegre.
“Aos 90 anos, percebo que ainda sou aprendiz de poeta e aprendiz de ensaísta. Obviamente, não é em vão que a gente envelhece. Dizem que o vinho velho é melhor que o vinho novo. Ou seja, é preciso afastar-se um pouco do suco de uva para chegar à excelência de um vinho varietal. O mesmo acontece na vida e na arte. A Editora Bestiário, do Roberto Schmitt-Prym, lançou Meus Melhores Poemas. Convido os leitores a tomarem conhecimento de meus poemas inéditos, compostos depois que desabou sobre nós a pandemia. São 115 poemas novos. Gostaria que as pessoas vissem as mudanças que se operaram em mim”, revela.
A poesia, afirma, “embora não seja ‘raciocinadora’, é intuitiva. Seus insights são um convite ao coração para segui-lo, até onde ele é capaz de ir”.
Poetas com a palavra
O poeta alegretense Élvio Vargas, da Academia Rio-grandense de Letras, demonstra sua admiração a Trevisan, colega de ofício e amigo de toda a vida, com um texto peculiar: “O poeta tem um exemplar acordo ético com o leitor – educa-o para o esplendor das ofertas e o risco das contaminações, herança afetiva e inspiradora do seu amigo e padroeiro, Mario Quintana. Usa, em rarefeitas vezes, algum humor drummondiano, não economiza atração pela simples arquitetura lírica de Manuel Bandeira e a contenção de linguagem de João Cabral de Melo Neto”.
Outro poeta, o porto-alegrense José Eduardo Degrazia, que também é médico e autor de mais de 20 livros, escreve sobre o aniversariante. “Armindo Trevisan vem fazendo uma obra profunda, lírica, de visão cósmica e religiosa, mas baseando-se na relação com o Outro, na sua corporeidade. Suas metáforas nunca abandonam as formas dos seres e coisas, mesmo quando procuram atingir – através delas – a deidade. Nesse sentido, desde A Surpresa de Ser – que desde já menciono como uma das minhas leituras preferidas entre os seus livros –, o poeta vem escrevendo a interface do amor erótico e o divino, através da materialidade do corpo”.
O que vem por aí
A antologia inédita Meus Melhores Poemas (Bestiário, 340p.) contém poemas selecionados de outras duas antologias, de 1986 e de 2021, e traz 115 poemas inéditos compostos nos últimos quatro anos, além de outros 10 poemas da coletânea Adega Imaginária.
No prefácio, o autor reflete: “A inspiração pode ser considerada uma vontade íntima, e incontornável, de comunicar, por meio da linguagem, determinados estados de alma. Nos grandes poetas, ela é algo maior: uma vontade de comunicar uma visão de mundo intelectual e emotiva. Existem tantos estados de almas quanto os corações humanos. Há estados de prazer e desprazer, de encanto e desencanto, de alegria e tristeza, de esperança e desesperança. Possuir, porém, uma Weltanschauung (visão de mundo) é privilégio dos gênios, uma vez que pressupõe singular amadurecimento pessoal, excepcional riqueza cultural, e incomparável poder de expressão”.
Confira a seguir dois poemas inéditos que compõem a antologia, cedidos pelo autor ao Extra Classe:
Em todo amor palpita uma chama
Em todo amor palpita uma chama,
que se assemelha em tudo a uma língua.
Mas a língua do fogo é silenciosa.
Tão silenciosa que, para escutá-la,
impõe-se que se veja ali um rosto,
e, nele, como que delineado,
o rubro esplendor do coração.
Porém, no coração jamais tocamos
os frutos que produzem os seus ramos,
que são os sentimentos e emoções.
Ninguém, ao contemplar os passarinhos,
descobre onde ficam os seus ninhos,
nem os vazios que levam em seus voos.
Também o amor oculta no seu seio,
o inumerável de seus pormenores.
Melhor é ouvir a voz da própria vida
que, às vezes, cala, e outras vezes diz
o que na intimidade é experiência.
Não só experiência, mas mistério,
que cresce como um grão dentro da terra,
e estando em plena treva, é feliz.
A longa viagem
(À memória de David Coimbra)
Amigo,
fomos te ver
no Hospital.
Ali… As despedidas
dispensam as mãos
e os lenços.
Beijos
ao pé dos leitos
são beija-flores
que desconhecem
as flores que sugam.
Não quiseste te despedir
de nenhum de nós.
Deste teu braço
ao silêncio
e, com ele, saíste a caminhar
para uma longa viagem.
Uma viagem tão longa
que te perdemos de vista!