CULTURA

O impacto das redes no mercado das artes

As redes sociais podem se transformar em galeria e impulsionar carreiras, mas o reconhecimento da produção artística para além do ambiente virtual é fundamental
Por Fernanda Simoneto e Sílvia Lisboa / Publicado em 14 de julho de 2023

Foto: Pérola Dutra/ Divulgação

Tainan vê as redes como uma grande galeria virtual, que encurta distâncias para os artistas

Foto: Pérola Dutra/ Divulgação

Nas ruas estreitas de um bairro do subúrbio carioca, uma barricada montada pela polícia vira objeto de arte. Sacos que outrora armazenavam areia para fazer cimento compõem a paisagem. As lonas, que já cumpriram a função de proteger as casas ou os comércios, dão forma a telas com as cores encontradas por Tainan Cabral, 32 anos.

Morador de Senador Camará, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, o artista transformou as paisagens do subúrbio carioca em objetos de arte. A “realidade pitoresca”, muitas vezes interrompida pela violência, é o ponto de partida de tudo que Tainan produz.

“Faço trabalhos que partem de uma pesquisa de cores e de formas, que têm muito a ver com o lugar onde eu moro, que tem uma certa criatividade no ar que eu chamo de criatividade popular”, conceitua.

NESTA REPORTAGEM
O carioca, que iniciou sua carreira no grafite, não tinha a arte como sustento até o começo de 2020. Ele fazia bicos como motoboy e camelô, mas, no começo da pandemia, decidiu concentrar todas as energias na arte que produzia, a qual compartilhava no Instagram desde 2015.

Em um ano, seu trabalho foi encontrado na rede social por ninguém menos que Adriana Varejão. A artista brasileira de renome internacional conheceu o trabalho de Tai, como é conhecido, em 2021.

“A Adriana comprou um trabalho meu através de um leilão na internet. Eu nem esperava isso. Acho que bastou para as pessoas conhecerem meu trabalho”, reflete ele, dois anos depois daquele dia que impulsionaria de vez a carreira do artista. Hoje, ele se dedica exclusivamente à pintura.

O Instagram serviu para Tainan Cabral como um encurtador de distâncias. De Senador Camará até o centro do Rio, onde ficam as principais galerias e exposições de arte do estado, são 40 quilômetros. Essa distância dificultava a entrada do artista no circuito da arte.

“Era uma questão geográfica”, explica. “As galerias estão concentradas no Centro e na Zona Sul. Para conhecerem meu trabalho, eu preciso estar lá, e eu não moro lá”, deduz.

Experiência malsucedida

Nem sempre os likes das redes sociais garantirão a senha para entrar e permanecer no circuito da indústria artística, como ocorreu com Tainan Cabral.

O caso emblemático que se tornou público foi o do atual vocalista da banda Barão Vermelho, Ro­drigo Suricato. O músico decidiu encerrar sua carreira solo depois de considerar que havia virado mais um produtor de conteúdo para as redes do que um músico, movido pela necessidade de usar as plataformas a fim de promover seu trabalho.

Em abril de 2023, cerca de cinco meses depois do lançamento, em dezembro, do álbum solo Marshmallow Flor de Sal, Rodrigo anunciou, também pelo Instagram, que estava desistindo da banda Suricato.

“Amigos, tô desistindo da Suricato”, escreveu em nota divulgada no seu Instagram pessoal. “Confesso que 80% do meu tempo é trabalhando uma onipresença digital publicitária e questões que nada têm a ver com a atividade que eu escolhi (…) Portanto, se essa atividade me desestabiliza emocionalmente (a maior parte das vezes), então eu já mudei de emprego faz tempo e não sabia”, ironiza.

Rodrigo entrou para o circuito pop da música em 2014, quando chegou à final do programa Superstar, reality musical da Rede Globo. Antes disso, integrou a banda de figuras importantes do país, como Zélia Duncan e Ana Carolina.

Em 2015, depois de sair do programa como segundo colocado, a Suricato ganhou um Grammy Latino de melhor álbum de rock brasileiro.

Mas nesse ano, o músico decidiu dar um ponto final na sua carreira solo (ele segue como vocalista da Barão Vermelho). Sua carreira, como ele mesmo resumiu, ficou restrita a postar nas redes, pressionado por manter uma onipresença digital autêntica: em vez de reduzir distâncias, as redes foram um sumidouro de energia e talento, que pode ter prejudicado o reconhecimento pelo trabalho solo de 2023.

“(Estou) desligando os motores da minha relação atual com a música. Ela não é saudável. Não aconteceu nada. Simplesmente não há assentos disponíveis para a música que faço. E tudo bem”, completou.

Suporte para expressão e fruição da arte

As redes sociais tiveram um impacto profundo e ainda não totalmente compreendido na arte.

Apesar das experiências negativas – que não são isoladas –, esse ambiente virtual funciona como suporte para a expressão artística e, também, exerce uma importante mediação para a exposição de trabalhos e conexão de novos contatos, como no caso de Tainan Cabral. E impacta, ainda, na fruição de uma obra artística.

“O ambiente digital se tornou uma importante ferramenta para circulação da produção artística em termos da divulgação dos artistas. É um espaço muito propício de descoberta e trocas. A produção artística também tem assimilado e está incorporando as tecnologias e o digital na própria poética dos trabalhos em si”, observa Bruna Fetter, professora e pesquisadora do Instituto de Artes da Ufrgs.

Pesquisa e galeria digital

No caso de Tai, a internet serviu, primeiro, como fonte de pesquisa e, depois, como uma galeria digital que deu visibilidade à sua obra. Nascido na década de 1990, o carioca cresceu junto com a expansão da web. Foi através de blogs de outros países que ele se aproximou do grafite, onde viu que seu hobby podia ser considerado arte.

“Eu conheci movimentos que nem estavam acontecendo aqui no Brasil ainda”, conta. “Comecei a ler blogs da Alemanha e de outros lugares da Europa que falavam de grafite, de ilustração, e ligavam tudo isso ao skate”, relata o artista visual, lembrando que este é seu outro hobby.

Quando começou a vender suas peças pela internet, ele fazia tudo: fotografava as obras, publicava, monitorava o retorno, tirava eventuais dúvidas dos clientes e negociava os valores. Hoje, dois anos depois do dia em que Adriana Varejão comprou uma obra sua, essa função é exercida por uma galeria. O crescimento impulsionado pela presença digital permitiu que o artista se concentrasse integralmente no processo de criação.

“O máximo de tempo que eu puder ter para criar, melhor”, conclui.

A trajetória de Tainan também revela que, apesar das mudanças profundas exercidas pelos meios digitais, o sistema da arte ainda opera sobre bases bem tradicionais.

Consagração e legitimação

“O sistema se utiliza das redes para conhecer novos artistas, mas a rede em si não é um sistema de consagração e legitimação”, explica Bruna Fetter, que é coautora do livro As novas regras do jogo: sistema da arte no Brasil (Ed. Zouk, 144p. 2014). “Na arte, o sistema de consagração ainda é composto por um conjunto de agentes individuais institucionais, responsável por definir o que é arte em determinada sociedade”, completa.

O colecionador de arte André Stock, doutor em Filosofia, concorda. Ele enxerga o Instagram como um espaço de troca e de experiência, porém não vê a rede social como substituta da vida real. “O Instagram não decide nada”, diz. Stock reconhece o papel democratizador que pode ser desempenhado pelas redes sociais, mas destaca a importância dos curadores e das galerias, que fazem parte do sistema de consagração.

Na música, são os críticos e produtores; na literatura, as revistas especializadas, por exemplo. As premiações e os concursos valem para todas as manifestações artísticas.

“O sistema da arte não é imune à sociedade. Ele está o tempo inteiro em diálogo com ela, se modificando, seja pelos embates tecnológicos, econômicos, sociais ou políticos”, analisa a pesquisadora.

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