Silenciamento de indígenas e negros na imigração alemã é tema de livro-reportagem
Foto: Acervo de Sílvio Coelho dos Santos/IHU
Acostumado à vida na selva, o líder kaingang Faustino Ferreira Doble, o Iu-Tohaê também conhecido como Cacique Doble era um ‘caçador de bugres’ a serviço do Estado. Em certa ocasião, entrou no salão do palácio do governo. Apresentava-se ao presidente da Província como herói de guerra. De facão na cintura por baixo de um pesado casaco de campanha, levava à cabeça um chapéu de caçador; e nos pés, adagas escondidas nos canos de botas ornadas com polainas de couro.
O indígena havia liderado a perseguição ao bando de João Grande, um cacique negro escravizado na colônia e que fugira para se tornar chefe de um bando dissidente, envolvido no sequestro de uma família inteira de imigrantes na região de Igrejinha, em 1852. Cacique Doble, o indígena que caçava ‘bugres’, era uma espécie de capitão do mato, que recebia seu pagamento por cada orelha de procurado. Doble, portanto, levava no bolso um souvenir macabro que comprovava o êxito da sua última expedição: a orelha de João Grande.
O desfecho, contexto desta e de outras histórias estão no livro-reportagem Invisíveis – o lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã (Carta Editora, 208 p.), dos jornalistas Gilson Camargo e Dominga Menezes.
A publicação foi viabilizada com recursos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul por meio do Pró-cultura RS FAC – Fundo de Apoio à Cultura e tem lançamento no dia 16 de abril, às 15h, na Biblioteca Pública Vianna Moog (Rua Osvaldo Aranhat, 934, Centro), em São Leopoldo.
Lançado no ano do Bicentenário da Imigração Alemã, que será comemorado em 25 de julho de 2024, Invisíveis propõe um contraponto à narrativa oficial que exalta o protagonismo dos imigrantes europeus ao considerar o dia 25 de julho de 1824 como o início da história do município.
O livro resgata registros históricos da presença milenar de indígenas que circulavam pelo território que um dia seria o Rio Grande do Sul e faziam do Vale do Sinos parte do seu território, bem como demonstra que São Leopoldo já era habitada por negros escravizados trazidos de diversas partes do continente africano, assim como os portugueses residentes.
Capa: Estúdio Godinho/ Carta Editora
Capa: Estúdio Godinho/ Carta Editora
“São fartos os registros sobre dominação, conflitos, violência e mortes na relação entre o colono alemão e cada uma das etnias. Os relatos desses encontros nada pacíficos são invariavelmente feitos do ponto de vista dos imigrantes”, explica o jornalista.
“Certas escritas da história ao longo do tempo têm apresentado uma versão que ignora a ocupação do Vale do Sinos em período anterior a 1824. A região, entretanto, era ocupada, desde tempos imemoriais, por grupos indígenas hoje denominados Kaingang e, ao longo do século 18, foi ocupada por proprietários de terra, pequenos lavradores e posseiros luso-brasileiros, até que, em 1788, a Real Feitoria do Linho Cânhamo”, afirma o historiador Ricardo Charão, autor do prefácio.
Para ele, “não há como dar crédito a versões que apresentam a chegada das primeiras levas de imigrantes como uma epopeia, uma narrativa que versa sobre a trajetória de heróis. Não se está a minimizar todas as dificuldades vividas pelos imigrantes de fala alemã. Todavia, não é possível mais sustentar versões como aquela explicitada no hino do município de São Leopoldo, em que se lê: “Louro imigrante, só a natureza/ Te viu chegar para trabalhar aqui/ E o Gigante Vale,/ com certeza se engalanou para esperar por ti”. Na medida em que apenas a “natureza” presenciou a chegada dos imigrantes, está a se afirmar que a região era desabitada”, pondera.
A influência alemã e o apagamento dos povos originários
A segunda parte da publicação é dedicada à análise da influência que a tradição germânica exerceu sobre o município e a sua população. Por meio de entrevistas, os autores apresentam um mapeamento das ações dos governos ao longo das últimas décadas, marcadas por narrativas de exaltação da germanidade em detrimento de outros povos e também mostra que houve um rompimento gradual dessa lógica com o surgimento de políticas públicas de inclusão e participação a partir da criação da Secretaria de Cultura.
“Os autores trazem para o campo do visível e do sensível a vida de indígenas e de africanos e afrodescendentes – e isso não em abstrato, mas no concreto palpável: por ocasião das comemorações dos 200 anos da imigração germânica no Brasil, de que o Rio Grande do Sul é exemplo destacado” e “reúnem casos exemplares de confronto, luta, busca por justiça e vida digna por parte dessas populações”, anota o escritor e professor de Literatura, Luís Augusto Fischer.
“Escrito com seriedade, empatia humana e ritmo jornalístico, Invisíveis é uma excelente maneira de penetrar nesse universo, vedado ou ao menos velado até pouco tempo atrás, mas que os tempos de agora impõem seja trazido para a luz do dia, da razão, da crítica inteligente, da justiça histórica”, resume.
Já a jornalista Dominga Menezes, conta que ao participar da feitura do livro-reportagem se deu conta de que também faz parte de uma geração que viveu o auge dessa história da cidade forjada no etnocentrismo.
“Moro em São Leopoldo desde os seis anos de idade, fui alfabetizada em escolas públicas e participei de algumas comemorações do aniversário da cidade. A dos 150 anos, em 1974, foi uma dessas comemorações. Estava entre as meninas que dançaram para um público de tradição germânica e autoridades da época, incluindo o presidente da República à época, o general da ditadura militar Ernesto Geisel. Sobre um grande tablado que representava o mapa do RS, nas imediações da Estação Rodoviária de São Leopoldo, dancei para uma multidão para contar uma história diferente daquela que já existia muito antes dos imigrantes desembarcarem em solo capilé”, relata a autora.
“Meus traços indígenas foram ignorados, assim como de tantos outros colegas de aula, crianças moradoras em São Leopoldo, resultado da miscigenação, mas invisibilizadas pela história oficial”, contextualiza.
Ela destaca também, que por não se tratar de uma tese acadêmica, o livro que combina jornalismo com a narrativa literária, possibilitou a fluidez das informações. “Permitiu que eu fosse além da pesquisa histórica, partisse de pistas deixadas ao longo da história e que desse voz às percepções em contrário do que vinha sendo aceito como narrativa oficial”.
“Ou seja, há uma história mal contada, que promove o apagamento e negação sobre a existência dos povos originários e de negros que viviam aqui muito antes da chegada dos primeiros imigrantes alemães, no ano de 1824”, defende.
Dominga adianta que a segunda parte do livro trata da influência que a tradição germânica exerceu sobre a identidade de São Leopoldo sob vários aspectos, entre os quais o político. Segundo a jornalista, a alternância de poder interfere na história em vários momentos, porque atende a interesses de um determinado período.
Por intermédio do mapeamento dos governos das últimas décadas foi possível, segundo a autora, elencar ações de cada administração em relação a essa hegemonia germânica e avaliar o impacto provocado por políticas públicas inclusivas a partir da criação da Secretaria de Cultura, em 2005.
Como foi a pesquisa
Dominga explica que o tema da invisibilização de indígenas e negros sempre que se fala de imigração e da história de São Leopoldo, seja nos livros, seja nos discursos, não é novo para os autores. “Com a Revista Carta Capilé (publicação gerenciada pelo casal de autores) desenvolvemos diversas matérias e entrevistas com historiadores e outras fontes sobre essa germanicidade que não encontra correspondência nos arquivos. Os registros da presença negra estão por toda a parte, apenas não são levados em conta na hora de contar a história de São Leopoldo”.
A partir dos anos 2000, diversos historiadores e pesquisadores vêm desenvolvendo trabalhos que demonstram isso, inclusive livros como A presença negra no RS, editado por um grupo de pesquisadores com base em documentos do Arquivo Histórico do RS. Ela, portanto, destaca, inclusive, que livro Invisíveis, tem inúmeras citações de trabalhos acadêmicos sobre indígenas e negros e seus descendentes na região.
A pesquisa sobre a bibliografia foi desenvolvida tanto por Gilson quanto por Dominga, com a orientação de uma consultoria desde 2022. Porém, as entrevistas se concentraram no último ano, pois havia a preocupação de trazer um material quente e atualizado para os leitores.
Os autores
Dominga Menezes, 62 anos, é jornalista com mais de 30 anos de experiência em jornalismo diário, assessoria de imprensa parlamentar e gerenciamento de projetos de comunicação social e corporativa.
Gilson Camargo, 61 anos, é jornalista desde 1988, passando pelas redações do Diário do Sul, Grupo Sinos, Zero Hora, O Sul, Correio do Povo e assessorias de imprensa. Atualmente é editor executivo do Jornal Extra Classe, onde conquistou nove prêmios de jornalismo.