Como e por que nascem os clássicos da literatura
Foto: Universidade de Stanford/ Reprodução
“Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.” Essa é uma das definições para o gênero, segundo a obra Por que ler os clássicos? (Cia. das Letras), do escritor italiano Ítalo Calvino, que faz analogias com diversas obras que marcaram a literatura mundial, desde a Odisseia, do grego Homero, até os escritos do argentino Jorge Luis Borges.
No Brasil, o seu maior escritor, Machado de Assis, voltou a ter destaque com a viralização de um vídeo em que uma estadunidense comenta entusiasmada sobre a qualidade de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas o que explica esse retorno ao sucesso de obras tão antigas? Quem são os book influencers (influenciadores literários)? O que pensam os professores de literatura?
A Doutora em Literatura Comparada pela Ufrgs e professora da Unisinos, Márcia Lopes Duarte usa uma definição de Calvino para se referir a um clássico.
“Ele escolhe alguns títulos que seriam os da vida dele, que não necessariamente são os de todo mundo. E ele diz que um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, cogita a professora.
Para Márcia é esse texto que vai se ressignificando ao longo do tempo, que faz sentido mesmo com o passar dos anos e em lugares diferentes. “Um clássico precisa ter alguma atemporalidade, questões que vão sendo sempre revistas e postas em jogo”, aponta.
Sobre o sucesso da literatura de Machado de Assis nos Estados Unidos, a professora atribui a motivos que vão além das qualidades das obras, como o esgotamento dos próprios títulos nacionais pelos estadunidenses.
“Acho que é um fenômeno de mídia. As pessoas precisam ter coisas diferentes e novas para dizer, então, lá nos Estados Unidos provavelmente já esgotaram os textos da própria literatura americana e também dos textos clássicos europeus, e aí começam a tentar achar autores instigantes para ler, porque isso faz parte da perspectiva midiática”.
Mas o fato é que Machado de Assis é um grande autor, ressalta a professora. “Ele traz questões muito viscerais, não só da nossa sociedade, mas faz muito sentido para nós, porque ‘bota o dedo’ em algumas feridas da sociedade brasileira, que infelizmente ainda hoje estão presentes, trata de questões universais”, completa.
Em relação à importância dos clássicos para a literatura e a formação leitora, a professora revela que mudou de opinião sobre as adaptações literárias ao perceber a relevância delas para as crianças e adolescentes.
“Os clássicos adaptados, por exemplo, eu já fui bem contrária às adaptações, hoje mudei um pouco a minha postura, acho que adaptação é algo que auxilia. Eu hoje, amadurecendo, revendo as posturas, acho que as adaptações são bem importantes. É fundamental que uma criança, adolescente ou pré-adolescente possa ler, por exemplo, a Odisseia e a Ilíada de Homero, e vai ser difícil de ler os originais. Óbvio que não em grego, mas as traduções que não têm adaptação, porque são textos muito complexos”, conceitua.
Foto: Acervo Pessoal
Ao explicar a diferença entre clássicos e best sellers, ela reforça que o tempo de sucesso é o que pode determinar que uma obra bastante vendida se torne um clássico.
“Um clássico é este texto que está sempre dizendo algo novo. O best-seller, por sua vez, é algo muito momentâneo. Então, há textos que começaram como best-seller e depois podem ter se tornado clássicos. O Nome da Rosa, do Umberto Eco, foi um best-seller, um livro muito lido quando foi publicado, até porque o Eco era um autor muito conhecido, um professor universitário que trabalhava com semiótica”.
A professora investiga ainda mais o sucesso de O nome da Rosa. “As pessoas queriam saber o que o Eco faria num texto de ficção, por isso foi muito comprado, falado e hoje é um clássico. Então, um best-seller pode vir a ser um clássico, mas, a princípio, a perspectiva do best-seller é momentânea, porque ele está falando para pessoas muito próximas, para aqueles que estão lendo, se interessando pela leitura naquele momento, com aquela temática específica.”
Projetando quais obras contemporâneas podem se tornar futuros clássicos, Márcia cita O Avesso da Pele, do gaúcho Jefferson Tenório, devido à censura que o livro enfrentou.
“É bem difícil de saber que livros vão se tornar clássicos. Na verdade é um livro muito visceral, que toca muito as pessoas pela sua temática e sua construção. Já houve apostas em textos, ‘ah, esse sim, vai ser um clássico’ e eles simplesmente foram apagados pela continuidade da história. Então, não é fácil de dizer. Acho que alguns textos, obviamente, a gente já sabe, porque eles vão construindo história no início da sua trajetória, textos que vão sendo comentados pelo público. Textos que sofrem censura, por exemplo, O Avesso da Pele, do Jefferson Tenório. Esse é um texto que muito provavelmente vai ser um clássico, porque, além de tudo, ele está sendo contestado, censurado. Então, vai criando essa aura de clássico, que também é superimportante.”
Influenciadores literários
Em conversa com o Extra Classe, a publisher da TAG Livros (empresa que possui clubes de assinaturas de livros), Rafaela Pechansky, afirma que há bastante demanda por obras clássicas e que a empresa busca intercalar títulos consagrados com obras contemporâneas.
“Já tivemos experiências muito boas mandando clássicos como Jude, o Obscuro. Também o livro do Stefan Zweig que foi o Êxtase da Transformação, mais recentemente enviamos (para os assinantes) um clássico do Henry James, que foi o A Outra Volta do Parafuso. Temos um desafio bem grande na TAG, pois como a gente envia um livro surpresa, tem o desafio de não mandar um livro que a pessoa já tenha lido ou já tenha em casa. Então vamos muito por um caminho dos clássicos lado B”, explica.
Questionada se a editora faz parcerias com influenciadores literários, ela ressalta que eles têm um papel essencial para a empresa, com números que chegam a até 12 mil cliques nas publicidades feitas em parceria.
“Fazemos muitas parcerias com influenciadores literários, eles têm um papel fundamental para a TAG hoje em dia, e realmente são muito parceiros nossos. Tivemos recentemente cases de sucesso. Falando em alguns números, vários deles já geraram, 10 mil, 12 mil cliques nos anúncios, então é muito bom para captar também não só novos associados, mas também os leads, possíveis futuros associados”.
Rafaela conta que a TAG já fez parceria com influenciadores como o Latina Leitura, Rodrigo de Lorenzi. “Estamos com um projeto bem legal com o Bookster, que vai sair no ano que vem. Não posso revelar ainda mais informações, mas ele é um grande parceiro nosso e talvez seja o maior influenciador literário do Brasil. Então, eles são um grupo muito importante para a gente e é muito legal ver esse retorno positivo”, revela.
Velhos e novos clássicos
Foto: Acervo Pessoal
A professora de história Charlene Ximenes, moradora de Fortaleza, conta como surgiu a ideia de compartilhar suas leituras no Instagram: “Eu sempre fui uma leitora, uma pessoa que gosta muito de literatura. Quando mais nova, não tinha tanto acesso, não tinha condições de ter livros. E aí, acho que em 2016, por aí, eu comecei a ter contato com os vídeos do YouTube, os canais literários e desde sempre eu postava no meu Instagram pessoal algumas coisas”.
Ela explica que a estratégia é dar mais detalhes sobre os livros, alguma impressão, “coisas muito simples mesmo, sobre o que eu estava lendo, e descobri que tinha esse nicho muito específico, que era muito interessante no Instagram”.
Ela lembra que era bem mais simples do que atualmente, um esquema menos mercadológico, “muito mais como um diário de leitura, um registro daquilo que as pessoas estavam lendo conhecendo e aí eu fiz um”, relata.
Ao falar sobre a importância dos clássicos no seu conteúdo para o Instagram, ela também cita Italo Calvino. “Primeiro, o que é um clássico? O que conseguimos entender como clássico? E eu sou muito fã daquilo que o Ítalo Calvino traz no livro Por que ler os clássicos?, de que um livro clássico é aquele livro que todas as vezes que você for ler, ele parece um livro novo. E de maneira geral, a gente tem muita literatura que é clássica, sabe? Que nasce clássica, não porque o tempo já definiu, mas porque você já entende a importância dela naquele contexto, já entende a importância dela em diversos outros contextos que ela for trabalhada, que for lida. E aí, definir um clássico como necessariamente um livro nacional, como, sei lá, Memórias Póstumas, ou dizer que um clássico pode ser Torto Arado, um livro bem mais contemporâneo. Isso é muito relativo”, pondera.
Charlene cita que já teve parcerias com autores e editoras e explica como funcionava essa colaboração: “Já tive algumas parcerias, tanto diretas com os autores, que perguntavam se eu tinha interesse de ler suas obras, de conhecer seus livros, já recebi livros de autores, já fui parceira da Companhia das Letras, já fui parceira de algumas outras editoras, como Editora Contexto, e isso tudo veio de uma maneira muito natural, sabe?”.
Ela conta que participou de seleções de perfil que sondam o tipo de postagem que o candidato costuma fazer. “Mas sempre fui tentando seguir a lógica do que eu realmente acredito e do tipo de literatura que eu gosto, não só literatura, mas livros de não ficção. A Editora Contexto, por exemplo, tem livros muito voltados para a minha área, que é a história”, cita.
Clube de leitura
Rafael de Souza, integrante do editorial do Clube de Literatura Clássica, que consiste na assinatura mensal para recebimento de livros clássicos, explica como surgiu a ideia de criar um clube específico para esse tipo de literatura.
“A ideia de criar um clube de assinatura dedicado exclusivamente a livros clássicos nasceu de uma experiência pessoal muito valiosa. Formamos entre amigos um clube de leitura em que nos reuníamos regularmente para conhecer grandes obras da literatura clássica. Essas reuniões se tornaram momentos de troca intelectual e prazer literário, e nos mostraram o valor imensurável de redescobrir esses textos fundamentais. Percebemos que faltava um serviço que não apenas entregasse esses clássicos, mas que também os apresentasse de uma maneira que facilitasse sua leitura e compreensão, respeitando a integridade das obras originais”.
Ao falar sobre o sucesso dos clássicos, ele ressalta que os brasileiros se alegram quando percebem que os estrangeiros consomem a nossa literatura. “A popularização dos clássicos é muito positiva e é um dos objetivos do Clube: fazer com que os clássicos, que sempre são fonte de inspiração para os seus leitores, estejam acessíveis ao maior público possível”.
Rafael acredita que os brasileiros ainda leem muito pouco e le ainda menos os clássicos. “Mas o público brasileiro gostou muito do fato de que um de nossos maiores escritores foi valorizado lá fora, entretanto, não detectamos um aumento muito grande de procura em consequência dessa viralização em específico”, contrapõe.
“Para nós, um clássico da literatura é aquele texto que fez história na língua em que foi escrito e na cultura que o produziu, independentemente da época em que foi redigido. Muitos desses clássicos são bem conhecidos e estimados pelo público brasileiro, outros nem tanto, mas nos certificamos sempre de que os textos que publicamos são importantes em seu país ou contexto de origem. Isso quer dizer que nossa visão de clássico não é eurocêntrica, já que todas as grandes culturas letradas do mundo produziram textos de imensa relevância para a história e experiência humanas”, conclui.
Entende-se então que, independente da relação com os clássicos, as definições de Italo Calvino se encaixam para vários perfis de leitores e cabe destacar entre elas o que Calvino apresenta, já na primeira linha, como definições de obra clássica: “Comecemos com algumas propostas de definição. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo’… E nunca: ‘Estou lendo’”.
O autor alerta, entretanto, que essa constatação não basta, porque reler pressupõe tempo vivido, exclui jovens leitores: “Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram ‘grandes leitores’, não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro”.
Um clássico têm diversos tipos de adaptações, como citadas pela professora Márcia, sejam elas para o cinema, televisão e teatro. Conclui-se também que o que valida um livro como clássico é sua capacidade de retratar uma época ou acontecimento histórico, servindo como testemunha daquele período.
Bárbara Neves é estagiária de jornalismo. Matéria elaborada com supervisão de Gilson Camargo.