CULTURA

O universo trans de Buenos Aires na literatura punk de Naty Menstrual

A escritora, estilista, artista e performer argentina fala sobre uma Buenos Aires que não dorme e trata suas personalidades trans com crueldade e afeto
Por Gilson Camargo / Publicado em 9 de julho de 2024

O universo trans de Buenos Aires na literatura punk de Naty Menstrual

Fotos: Acervo Pessoal/Divulgação

Fotos: Acervo Pessoal/Divulgação

A realidade trash da noite portenha em uma Buenos Aires que não dorme, uma cidade paradoxal que trata suas personalidades trans com crueldade e afeto. É nesse contexto que estão ambientadas as narrativas de Continuadisimos, livro de estreia de 2008 da escritora, artista e performer argentina Naty Menstrual. A coletânea foi traduzida por Amara Moira e recém lançada no Brasil pela Diadorim Editora com o título em português Chuva dourada sobre mim.

Artista do coletivo trans boinarense, Naty Menstrual nasceu no final dos anos 1990, inspirada na atriz e cantora espanhola Nati Mistral. Ela mora em Buenos Aires e expõe seus trabalhos e desenhos aos domingos na Feira de San Telmo. Escreve crônicas do cotidiano, contos e poemas publicados em periódicos como o Página 12 e em livros. “Minha escrita muda conforme eu mudo, por isso digo que é visceral e não acadêmica. Não estudei literatura nem nada parecido. Para mim, a melhor oficina é a vida”, define-se nesta entrevista, com sua verve provocativa.

Além de Continuadisimo (2008), a autora publicou em seu país os livros Batido de Trolo (2012), Poesia Recuperada (2016) e TTP (Trava Puta Punk, 2022). Naty também assina a arte da capa de Ficção Completa, Crônicas Reunidas & Retratos Ilustres, obra da escritora portuguesa Manuela Porto que será publicada em 2025 pela Pontoedita.

Extra Classe – Quem é você e o que espera dos leitores brasileiros?
Naty Menstrual – Sou Naty Menstrual, escritora, artista plástica e desenhista de moda. Sou direta, sem voltas, escorpiana perceptiva. Às vezes crua, porém, a esta altura da minha vida creio que o único caminho é cercar-se de gente que te queira e te acompanhe nos prazeres dessa vida. A vida é muito curta para se ficar calado e aquilo que você não diz explode do outro lado. Espero que a tradução do meu livro expresse o que sinto, embora eu nunca tenha escrito com um dialeto travesti. Escrevo para todos que queiram me ler, sem distinção de sexo, idade ou classe. Minha escrita é direta e clara, mostra o que muitos querem ver.

O universo trans de Buenos Aires na literatura punk de Naty Menstrual

Foto: Diadorim/Divulgação

Foto: Diadorim/Divulgação

EC – Como se situa na literatura?
Naty – Na literatura creio que sou mais punk e não me interessa o mundo da escrita, salvo alguns autores pelos quais me apaixono. Se não me apaixono, não leio.

EC – E na vida?
Naty – Na vida sou o que escrevo e o que pinto. Não escrevo para ganhar prêmios nem fama, escrevo por uma pulsão, uma necessidade.

EC – Como é essa “suja realidade” da vida norturna portenha que aparece no livro? Como Buenos Aires trata seus habitantes trans?
Naty – Buenos Aires é muito diversa. Há mulheres trans que se dão bem e outras nem tanto, como qualquer ser humano. Aqui é preciso saber se posicionar na vida. Agora, o atual governo não é nada amável com as questões de gênero, de uma forma mais ampla.

EC – Tuas histórias proporcionam um senso de realismo muito forte. Até que ponto essa narrativa é autobiográfica?
Naty – Meu livro é muito autobiográfico e também ficção misturada com realidade.

EC – Você estudou locução no Instituto Superior Enseñanza Radiofônica. Manteve conexão com o rádio?
Naty – Não tenho ligação com o rádio, mas esse preparo me ajuda na hora de ler, por exemplo, ou atuar.

EC – Como se descobriu – ou foi descoberta – como escritora?
Naty – Escrevi por toda a minha vida, desde menina. Aos 30 comecei a me travestir e isso mudou minha vida e não parava de falar sobre o que estava vivenciando. Aí alguém me ouviu lendo em público e acabei levando meus textos para uma editora.

EC – E assim foi publicado teu primeiro livro?
Naty – Meu primeiro livro é Continuadisimo, agora publicado no Brasil pela Diadorim como Chuva dourada sobre mim. O segundo Batido de Trolo, com crônicas que escrevi para o Página 12, e poesia. O terceiro, Poesia Recuperada, é apenas de poesia, e o quarto, TTP (Trava Puta Punk), também crônica e poesia.

EC – Defina seu estilo literário.
Naty – Minha escrita muda conforme eu mudo, por isso digo que é visceral e não acadêmica. Não estudei literatura nem nada parecido. Para mim, a melhor oficina é a vida.

EC – Qual o próximo livro?
Naty – O que vem a seguir, mmmm, você nunca sabe. Tenho algo que gostaria de fechar e publicar. Mas o que vem a seguir, nunca se sabe, não importa o quanto você tente planejar sua vida, isso pode mudar tudo de uma só vez.

EC – Por que publicar no Brasil?
Naty – Essa publicação no Brasil foi graças a um escritor brasileiro que conheci na Colômbia, na feira do livro, e ele pegou meu livro, o Marcelino Freire. Ele levou para a editora. Acho que o melhor da vida é que ela te surpreende.

EC – Como a violência de gênero e a transfobia aparecem em seu livro?
Naty – Você teria que ler o livro para obter essa resposta. O ser humano é o pior da natureza. Violência é violência, não importa o que aconteça com os negros, os pobres, as crianças, as pessoas trans, as mulheres, os homens. Não há necessidade de se vitimizar. Se todos os discriminados estivessem unidos no mesmo protesto, as coisas seriam diferentes. Mas o individualismo vence e cada pessoa sente que a sua desgraça é a pior e nesta divisão vencem as piranhas do poder. Dividir e reinar.

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