CULTURA

O macho escroto é o protagonista de Senhor Cão, novo livro de Flávio Ilha

Com lançamentos em Porto Alegre e São Paulo, o escritor busca uma literatura dissonante em que o julgamento do leitor sobre seu personagem é o mais importante
Por César Fraga / Publicado em 6 de agosto de 2024

O macho escroto é o protagonista de Senhor Cão, novo livro de Flávio Ilha

Foto: Tânia Meinerz/Divulgação

Foto: Tânia Meinerz/Divulgação

Na contramão da literatura engajada – e com um pé nas temáticas identitárias –, uma tendência contemporânea não só do mercado editorial, mas também de autores surgidos nas últimas décadas, Flávio Ilha lança seu primeiro livro de narrativa longa, Senhor Cão, pela editora Aboio, cuja lombada reúne 192 páginas para contar a história de um típico macho escroto e das pessoas à sua volta.

No material de divulgação da editora, uma afirmação apócrifa: “faltam protagonistas repulsivos na literatura brasileira contemporânea”. Trata-se de uma provocação e um convite à escrita direta e desconfortável, que esviscera personagens desagradáveis para escrutínio e julgamento mais do leitor do que do autor. E é neste sentido que Ilha caminha neste seu livro.

Conforme Marcelino Freire, nas notas da contracapa (blurbs), trata-se de “uma história de tirar o fôlego. Lida de um fôlego só. Linguagem original e visceral. Escrita entre os dentes. Presa a uma corrente elétrica de prosa, raivosa”.

Já Júlia Dantas vai além: “neste romance, Flávio Ilha faz o gesto corajoso e necessário de se colocar no lugar dos homens que se acreditavam os donos do mundo, mas receberam como herança apenas ressentimento, assim criando uma voz narrativa única capaz de dar novas direções às possibilidades da literatura”.

Não à toa, agosto – mês de cães danados – foi o escolhido para o lançamento da obra. Senhor Cão terá sessões de lançamento e autógrafos na quinta-feira, 8, a partir das 18h30, na livraria Clareira (rua Henrique Dias, 111, no centrinho do Bom Fim, em Porto Alegre). Em São Paulo, a sessão de lançamento será no dia 16 de agosto na livraria Ria (rua Marinho Falcão, 58, ao lado da estação Vila Madalena.

Senhor Cão narra a trajetória de Pedro Flávio Póvoa, que se beneficia de sua condição masculina numa sociedade patriarcal para cometer delitos de comportamento. Premido por uma pressão social cada vez maior acerca de seus atos, muitos dos quais abomináveis, decide migrar para a Portugal onde, julga ele, terá sossego em relação a suas condutas devido à sua dupla nacionalidade.

A “branquitude tóxica” do protagonista, como aponta Paula Sperb na orelha do livro, apresenta várias camadas, desde uma família destruída pela ditadura militar até a violência intrínseca de uma sociedade segmentada e excludente. O desfecho surpreende o protagonista, que se julgava a salvo de julgamentos por sua condição superior.

O macho escroto é o protagonista de Senhor Cão, novo livro de Flávio Ilha

Foto: Aboio/Divulgação

Foto: Aboio/Divulgação

“O tom de sonho nas descrições do passado, operando de modo limítrofe entre realidade e delírio, aproxima a literatura de Flávio Ilha à de João Gilberto Noll e seus personagens que alucinam e vivem nas bordas da convenção, muitas vezes ultrapassando-as. O tema dos tabus, que são revelados como um mistério da trama, faz com que Ilha dialogue também com J.M. Coetzee, especialmente com Desonra”, completa Sperb.

Segundo o próprio autor, o romance faz parte de um conjunto de narrativas que buscam elucidar a origem e as consequências do patriarcado na sociedade brasileira, porém longe de ser um tratado sociológico e muito menos de uma cartilha de boas maneiras.

“O protagonista do Senhor Cão anda por aí, pode ser encontrado em qualquer esquina, e muitas vezes se esconde sob uma roupagem humanista e cidadã. Mas no trato cotidiano, quase sempre deixa escapar seus traços de crueldade e violência contra quem ele julga inferior”, diz.

Flávio Ilha é jornalista, livreiro, editor e escritor. Atuou nas principais redações do país, como Folha de S. Paulo, O Globo, Valor Econômico, Zero Hora, Correio do Povo e Correio Braziliense. Foi repórter e editor da revista Aplauso – Cultura em revista, entre 2005 e 2010. Também colaborou com o Jornal Extra Classe e diversos outros veículos. É autor de Longe daqui, aqui mesmo (2018), Ralé (2019) e João aos pedaços – biografia de João Gilberto Noll (2021). Os dois últimos livros foram finalistas do prêmio Açorianos de Literatura nas suas respectivas categorias em 2020 e 2022.

Extra Classe – O teu protagonista, um homem descrito como repulsivo – nada incomum, aliás – tem um tanto de todos nós homens. Te pergunto, o quanto tem do autor no personagem ou de autobiográfico?
Flávio Ilha –
Sempre tem, né? Quem escreve sabe que sempre tem um pouco do autor e da autora nos livros. Alguma memória, alguma referência, alguma situação vivida e que é literário dentro de uma narrativa longa ou curta ou até mesmo de um poema. O que quero dizer é que é comum ter referências pessoais, mas dizer que o protagonista do romance sou eu ou se parece comigo ou foi inspirado em mim, isso não. Aí seria um exagero eu afirmar alguma coisa parecida com isso, porque não é. Definitivamente não!

EC – Você  busca o olhar crítico do leitor em relação a isso?
Ilha –
É claro que ele (o personagem) é uma crítica e uma autocrítica a tudo que representa. Essa carga de patriarcado, de machismo, de homofobia, de antifeminismo, que nós homens carregamos no DNA. Uma crítica do que todos nós somos um pouco. Mesmo que a gente seja consciente disso. Mesmo que a gente seja crítico em relação ao nosso papel diante das mulheres numa sociedade moderna, contemporânea, a gente carrega na educação, na cultura, séculos e séculos de patriarcado e é difícil de se livrar disso. Não por acaso o nome do romance, inicialmente era Os herdeiros. Porque somos herdeiros dessa tradição patriarcal e somos herdeiros também dessa violência da ditadura que tá se passando ali no romance. Então é assim uma crítica. E aí evidentemente eu me coloco como parte deste patriarcado tóxico que infesta o nosso cotidiano. O livro é uma crítica a todos nós que carregamos esta mancha tóxica e em relação ao comportamento social que a gente assume.

EC – Sempre estiveste próximo da literatura, mas o que te levou a afastar-se da objetividade do jornalismo e enfiar os dois pés nos bosques da ficção e pisar os caminhos do mundo editorial como meio de vida?
Ilha – Gosto da metáfora “bosques da ficção”. Eu acho que é isso mesmo. Bosque é um negócio sombrio. A literatura, a ficção é um negócio meio sombrio, um tanto assustador. Pode dar medo. E realmente dá, né? Mas eu não eu não vivo disso. Faço da literatura um ofício necessário. Escrevo por necessidade desde muito jovem. Mas não vivo da literatura, nem como escritor, nem como editor. Atualmente eu vivo como livreiro, que é um processo um pouco diferente do processo literário. Porque a gente faz um pouco de tudo. Claro que na minha livraria não vendo autoajuda, nem livros fascistas ou best-sellers. A não ser best-sellers que queiram dizer alguma coisa. A gente vende um pouco de tudo e tudo. Então, nesse sentido a literatura não está tão presente assim. Eu vendo não ficção, livros de história, de psicologia, antropologia, psicanálise, sociologia, jornalismo. Vendo de tudo. E, coisas bem diferentes da literatura, em si. Mas os bosques da literatura me acompanham desde sempre. E isso né um certo fascínio pela escuridão desses caminhos. Porque são lugares que a gente entra e não sabe o que que vai encontrar exatamente. Quando se começa a fazer um livro não se sabe o que vai encontrar no final deste bosque que a gente atravessa. O fascinante é que se tem clareza do ponto de partida, mas não do ponto de chegada.

EC – E o jornalismo?
Ilha –
O jornalismo me sustentou durante 36 anos, desde 1986 até 2022. E a objetividade do jornalismo em algum momento se tornou cansativa para mim. Não queria mais trabalhar com isso. Apesar de eu ter colhido muitos elementos literários do meu ofício jornalístico. Meu segundo livro de contos Ralé tem muito da minha atividade jornalística. Muitos daqueles contos ali são situações que foram inspiradores de literatura ficcional. Mas são coisas muito diferentes. Eu não quero mais fazer isso. Não quero mais depender de um fato, de um documento, de uma comprovação material do que eu estou escrevendo. Eu quero escrever coisas que eu não preciso provar. Que são verdadeiras, pelo contrário. Que eu posso dizer que são mentira sinceras. Isso é parte meu trabalho atual, mas não me sustenta e não sei se vai me sustentar. Eu não tenho mais idade para pensar em viver de literatura. Eu quero escrever literatura porque preciso, porque faz parte da minha vivência e eu tenho que continuar com isso. Mas vivendo mesmo é do ofício de livreiro.

EC – Toma muito tempo?
Ilha –
Me agrada bastante e me toma muito tempo e muito trabalho. Mas, enfim, é o mais próximo de viver de literatura que eu consigo nesse momento e neste país, nesta conjuntura.

EC – Tua escolha em deixar os julgamentos para o leitor é contraponto consciente à literatura que entrega valores prontos conforme o mercado editorial e os nichos de leitores querem e esperam ler?
Ilha – Acho que como diz a divulgação, neste livro eu assumo um papel meio dissonante em relação ao que tem sido produzido em termos de literatura contemporânea, que de fato entrega um julgamento um pouco mais fechado pro leitor. Que tem a figura do herói negro que luta contra o sistema, da heroína que luta contra a estrutura do patriarcado e que, mesmo sem um final feliz é eloquente ao desempenhar esse papel de contrapor ao que se chama de sistema. E eu não faço isso. Pelo menos não nesse livro. O protagonista é um personagem detestável, odioso até, como já existiu já na literatura brasileira, mas não tem sido muito comum atualmente. Apresento a história deste personagem contada por um terceiro narrador, que não é ele, mas que é alguém muito próximo e conhece muito a história pessoal dele. Que viveu junto com ele essa história. Isso fica claro no livro. E que, de certa forma, não vou dizer que tem um fascínio, mas uma sedução por este tipo maldito. Maldito, no mau sentido mesmo. Mas que, ainda assim pode causar algum tipo de empatia em determinado tipo leitor.

EC – É uma característica do livro?
Ilha – Sim, eu acho que acho que isso é uma característica, talvez importante de salientar desse livro. Nesse aspecto é um pouco dissonante do que se produz atualmente. E, realmente não tem não tem nenhuma intenção de julgá-lo. Eu não julgo o personagem. E o final do livro está em aberto. E, não por acaso, na primeira cena ele abandona a mãe com mais de 80 anos depois de tudo que a mãe fez por ele, porque não vê mais sentido em apostar naquilo ali. Ou seja, esse pragmatismo é bem característico desse personagem. Não me serve mais, eu descarto e tudo bem. No final, ele está completamente sozinho. Ele não tem mais ninguém a quem recorrer. E abandonar a mãe no começo do livro, não é uma coisa qualquer. É abandonar o único porto que poderia restar para ele depois de ter traído os irmãos, depois de ter traído a mulher de várias formas, inclusive com a filha. Se eu tivesse que fazer uma síntese, eu diria que é um romance sobre o silêncio. Principalmente o silêncio dos homens.

EC – Por quê?
Ilha –
Os homens dessa estirpe são silenciosos. Aliás, todos somos silenciosos. Falamos pouco. Nos abrimos pouco. Contamos pouco da nossa vida íntima e pessoal seja para nossas companheiras, seja para os nossos amigos, até para os psicanalistas. Também é um romance sobre esta solidão. É um livro sobre um personagem absolutamente solitário que vai procurando essa solidão e vai radicalizando essa solidão ao longo da trajetória dele até terminar completamente abandonado, sozinho e sem saber o que fazer. Sem ter a quem recorrer a não ser a ele mesmo. E ele não é uma boa companhia para si. Ele descobre isso depois. Mas eu não vou fazer julgamento nenhum. Eu não julgo personagem. Eu não dou uma um desfecho para ele. Não dou um fim para ele. Não sei se ele morre, se ele não morre, se ele se redime, se ele não se redime. Não sei o que o leitor decidirá sobre isso depois que chegar à última página. Mas espero que chegue. Os fatos estão ali. Tenho o meu julgamento pessoal, mas ele não interessa. O que interessa é o julgamento que o leitor fará diante dos elementos que ele encontra naquilo que está lendo. Isso é o mais importante para uma literatura mais instigante e aberta a interpretações e leituras diversas. Eu acho que isso é o mais importante para que o leitor participe ativamente da leitura e tire suas próprias conclusões dessa viagem pelo livro.

Comentários