Goida, 90 anos amando amar o cinema, os quadrinhos e as pessoas
Foto: César Fraga
Foto: César Fraga
Desde o primeiro momento em que me interessei por cinema, passei a acompanhar os textos do Goida. Compartilho com ele um sentimento que é, na opinião de Andy Warhol, a própria definição do espírito do pop: “Gostar de gostar”. Goida gosta de gostar de filmes. Foi assim que o cineasta Jorge Furtado definiu, a pedido do Extra Classe, um dos mais importantes cronistas vivos do cinema, Hiron Cardoso Goidanich, que completou 90 anos no dia 11 de julho, com direito a uma festa de arromba, com cerca de 80 pessoas para homenageá-lo.
Para se ter uma ideia da dimensão de Goida – nome que adotou para assinar seus textos –, é preciso dizer que, além de escrever diariamente da década de 1960 até fins dos anos 1990 sobre cinema, abrindo espaço para novos cronistas em sua coluna nas principais redações do RS, ele foi figura importantíssima na consolidação do Festival de Cinema de Gramado e do Clube de Cinema como espaços de culto, produção e proliferação de ideias sobre a Sétima Arte. Um cara capaz de escrever com o mesmo respeito sobre um filme dos Trapalhões ou sobre um Akira Kurosawa.
Falamos de uma época em que ninguém saía de casa para ir ao cinema sem antes consultar o que estava dito nos jornais sobre a programação, principal fonte de informação antes da era da internet.
“Goida sempre teve a melhor das qualidades para um crítico: nenhum preconceito. Acredito que esta é a forma mais eficiente de criar espectadores e leitores. Este sentimento, infelizmente, parece minoritário entre os críticos, há muitos que mal escondem a felicidade em detestar um filme. O narcisismo das pequenas diferenças é um dos males do mundo”, acrescenta Furtado, ao invocar Freud ao debate.
De acordo com o cineasta, ao “gostar de gostar”, Goida procura iluminar as qualidades nem sempre evidentes dos sucessos populares, e também, é claro, do grande cinema e dos clássicos.
“Seus textos, claros, precisos, bem-humorados e sempre cultos, serviram a uma geração de realizadores gaúchos, na qual me incluo, como referência de análise e compreensão do seu ofício”, define.
Trata-se de um homem que assistiu a filmes e escreveu sobre eles praticamente na maior parte dos dias de sua vida, desde 1938. Suez, com Tyrone Power, é a lembrança mais antiga de Goida, conforme ele próprio disse à Fatimarlei Lunnardelli em entrevista concedida ao EC, por ocasião de seus 75 anos, em 2009.
Lúcido e sorridente, apesar de alguma dificuldade na fala, Goida recebeu novamente nossa reportagem na biblioteca de sua casa no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, lotada de histórias em quadrinhos do chão até o teto.
Um dos amores de Goida, junto com o cinema, são os quadrinhos. Não à toa, escreveu, com André Kleinert, a Enciclopédia dos Quadrinhos, considerada uma das melhores do gênero no Brasil. Aliás, a grosso modo, o cinema se constitui de histórias animadas a 24 quadros por segundo, não é mesmo?
Furtado, inclusive, corrobora essa ideia ao nos lembrar “que Goida sabe que as grandes histórias contadas com imagem podem estar nas telas do cinema tanto quanto nas páginas dos quadrinhos. Chaplin ou Schulz, Rosselini ou Crumb são criadores da mesma estatura”.
BIBLIOGRAFIA – No meio editorial, de sua autoria se destacam Enciclopédia dos Quadrinhos (L&PM, 1990) e Nas Primeiras Fileiras (Unidade Editorial, 1998). Também editou o Dicionário de Cinema, de Jean Tulard, e o Dicionário de Filmes, de Georges Sadoul, ambos publicados pela L&PM Editores.
Fotos: César Fraga
Fotos: César Fraga
Daisy, my love
Foto: César Fraga
E, por falar em amores e paixão, cabe lembrar algo que o próprio Goida gosta de destacar sempre, mesmo que ninguém pergunte. Antes do cinema e dos quadrinhos, o amor no topo do pódio é Daisy, sua companheira por mais de 65 anos. Com ela, teve as filhas Ana e Mônica.
E, assim, o gosto por amar filmes atravessou gerações. “Minha primeira lembrança foi ver Noviça Rebelde duas vezes com ele”, no Baltimore (cinema de rua), recorda Mônica. “Também lembro de ele me levar com meu primeiro namorado, aos 14 anos, para ver o Ouro de Mackenna, no cinema Astor. Pela sua influência, aprendi a adorar musicais e cinema italiano, principalmente Fellini. Sei as músicas dos filmes todas de memória, relata.
Já Ana conta que foi tantas vezes ao cinema com o pai (e continua indo, só que agora é ela quem leva) que é difícil escolher um filme específico para recordar.
“Lembro com felicidade e orgulho de assistirmos juntos a uma animação do Charlie Brown e sua turma. Quando voltamos em casa, ele me comunicou que naquele dia quem faria a coluna/matéria sobre o filme seria eu. Achei o máximo e me senti muito importante, pois demonstrava a confiança que ele tinha em mim. E o risco que ele correu deixando para uma criança escrever no seu espaço.”
Daisy recorda que o marido assistia a “uma média superior a 200 filmes por ano” na fase em que era cronista de jornal, tarefa que passou exercer aos 20 anos de idade. Isso sem contar o que já havia assistido antes. Goida confessa que perdeu a conta.
Entre as lembranças marcantes de Daisy e Goida, estão as idas ao Uruguai, do jornalista, para assistir a filmes proibidos pela censura dos governos militares, como Laranja Mecânica. Mesmo os filmes não podendo ser exibidos nas salas comerciais brasileiras a mando da ditadura (1964-1984), Goida, ainda assim, escrevia sobre eles.
“Ele saía num dia e voltava no outro e resultavam em crônicas maravilhosas. Porque a gente não sabia nada dos filmes. Então, a gente ficava babando e esperando que um dia pudesse ver esses filmes. Então, esse papel dele não só é de crônica de cinema. Porque ele nunca chamou de crítica, mas também é jornalístico. A coluna dele revelava uma realidade proibida naquele momento e que durou duas décadas”, argumenta José Guaraci Fraga.
Fraga é amigo das antigas, desde a época em que Goida era criador publicitário e chefe da equipe de redatores na MPM Propaganda, uma das maiores agências que o Brasil já teve, onde também atuaram Luis Fernando Verissimo, João Carlos Pacheco, Tuio Becker e o próprio Fraga, entre tantos outros. (Leia a coluna do Fraga a homenagem que ele faz ao Goida).
Goida, ator de cinema gaúcho
Foto: Roberto Henkin
O cineasta Giba Assis Brasil, um dos fundadores da Casa de Cinema, é quem conta. Em 1982, quando ele trabalhava com o Carlos Gerbase no Inverno, “o mais ambicioso dos nossos filmes super-8”, tiveram a ideia de convidar pra fazer uma cena nada menos que todos os críticos de cinema em atividade em Porto Alegre na época.
Eles seriam os colegas de trabalho do protagonista do filme, interpretado pelo Werner Schünemann. O Tuio Becker, que também era superoitista, fecharia a série. Mas o primeiro a aparecer na cena teria que ser o Goida (foto), conforme colocaram no roteiro: “ao telefone, atirado pra trás na cadeira, rindo muito”.
“Era ao mesmo tempo uma homenagem, uma brincadeira e uma declaração de identidade: fazer cinema em Porto Alegre, escrever sobre cinema por aqui, pensar cinema em qualquer lugar, eram partes de um todo, estávamos juntos. Goida era o primeiro porque sempre foi o primeiro a nos receber, a assistir e criticar nossos filmes, como ele assistia qualquer filme de Hollywood ou da vanguarda europeia, um clássico japonês ou uns guris do super-8 gaúcho: sem condescendência, mas com vontade de gostar, e na sala escura, e nas primeiras fileiras”, diz Giba.
Amigos de filmes, de vida e de Clube de Cinema
Foto: César Fraga
Já o escritor Julio Ricardo da Rosa, que escreveu sobre cinema nos anos 80 em todos os jornais da capital gaúcha, credita a Goida sua entrada no colunismo cinematográfico.
“Eu fui leitor do Goida e ele formou o meu gosto por cinema, acho que desde o início da adolescência, na coluna que ele tinha na Zero Hora. Um dia, escrevi uma carta para ele e deixei meu telefone. Ele gentilmente me ligou de volta e me recebeu na casa dele. Resultado: eu fui interino do Goida em algumas oportunidades, quando ele saía de férias ou quando o interino oficial Luiz César Cozzatti saía de férias. Enfim, ficamos amigos, tanto de cinema quanto de vida. O Goida, além de ser uma pessoa muito querida, é de uma importância enorme, é para quem gosta de cinema aqui no Rio Grande do Sul”, conclui.
Hélio Nascimento, crítico de cinema do Jornal do Comércio (JC), considera Goida um dos mais importantes do estado. “Foi ele quem me trouxe para este universo da crítica, quem primeiro percebeu meu jeito para a coisa.” Hélio sempre gostou de cinema, mas, inicialmente, trabalhava na parte administrativa do JC. Só depois assumiu a crítica de cinema. Entrou no JC pelas mãos de Goida. Estava desempregado e encontrou o amigo na Rua da Praia. Goida, que trabalhava no escritório do JC, no Palácio do Comércio, incentivou Nascimento a ir para o jornal. E o resto é história.
Hélio explica que Goida foi um dos primeiros críticos a não se deter apenas ao que era considerado alta cultura, também escrevia sobre westerns, musicais e todo tipo de filme. “O Gastal até lhe fez algumas críticas na época por conta disso. Mas aí é que estava a grandeza do Goida. Ele levou o cinema popular para o jornal”, rememora.
Generosidade
Na mesma linha, a escritora, jornalista, professora do curso de Realização Audiovisual da Unisinos e sócia-fundadora da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, Fatimarlei Lunardelli, relembra. “Eu, particularmente, devo muito à generosidade do Goida. Não só no meu percurso profissional, mas também por alguns gestos que ele teve em relação a mim. Eu era estudante de Jornalismo no início dos anos 80. E aí o meu interesse por cinema me levou a conviver no Clube de Cinema lá por 1981/82 e encontrei ali, naquele ambiente, os críticos de cinema que eu lia nos jornais, e isso foi fundamental para a minha formação”, contextualiza.
No Clube, Fatimarlei conviveu com todo mundo –Goida, Paulo Fontoura Gastal, Hélio Nascimento, Tuio Becker, Ivo Stigger, entre outros – nas sessões de cinema aos finais de semana. O Clube de Cinema de Porto Alegre foi fundado em 1948 e promove exibições aos sábados.
“Quando eu comecei com a minha trajetória acadêmica, fiz meu mestrado e depois o meu doutorado. O Goida sugeriu para a Prefeitura de Porto Alegre que se escrevesse a história do Clube de Cinema de Porto Alegre, o que resultou no meu livro Quando éramos jovens: história do Clube de Cinema de Porto Alegre, lá pela metade dos anos 1990”, conta. O livro foi publicado em 2000, dois anos depois de o Clube completar 50 anos.