CULTURA

O mago, o santo e a esfinge investiga as personas de Coelho, Bandeira e Lispector

O sociólogo Fernando Pinheiro traz aspectos do texto, da figura e personas dos autores, sinalizando caminhos para ler a literatura brasileira
Por Elstor Hanzen / Publicado em 13 de setembro de 2024

O mago, o santo e a esfinge investiga as personas de Coelho, Bandeira e Lispector

Arte: Fabio Edy Alves com uso de IA

Arte: Fabio Edy Alves com uso de IA

A partir do texto e contexto de três escritores, o sociólogo Fernando Pinheiro traça uma espécie de biografia de Paulo Coelho, Manuel Bandeira e Clarice Lispector e sinaliza caminhos para ler a literatura brasileira.
A obra O mago, o santo, a esfinge traz aspectos do texto, da figura e performance dos autores

“Paulo Coelho está para a literatura assim como Edir Macedo está para a religião”, comparou o bibliófilo José Mindlin, em entrevista ao Paiol Literário há quase 20 anos. O jornalista e escritor Fernando Morais, autor da biografia O mago, não nega a admiração pela figura do biografado, mas revela não gostar da literatura de Coelho. “Ele escreve para quem tem fé, e eu sou um ateu materialista”, justifica.

Enquanto Paulo Coelho centra seu esforço na figura e performance de autor, Manuel Bandeira seria o oposto. Este estaria apenas interessado na literatura, na discussão estética, nas linguagens, na produção artística, sem qualquer interesse em questões econômicas, políticas ou estratégias externas ao texto, observa Eduardo Dimitrov, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Por isso, é tido como escritor mais puro e legítimo da literatura, o santo.

Clarice Lispector, por sua vez, conseguiu manejar um aparente paradoxo: se transformar em esfinge, considerada até hoje uma escritora indecifrável e, ao mesmo tempo, recusar a figura de intelectual, afirmando, a saber, que não gostava de ler e que escrevia crônicas para se sustentar, enquanto segurava o filho no colo. Dizia também que gostava de literatura policial e não tinha Machado de Assis em casa.

Dimitrov avalia que ela é uma esfinge porque teve essa estratégia de autora de se mostrar muito misteriosa. “Toda essa aura que se cria em torno dela, de ser uma pessoa misteriosa, difícil de se decifrar, com livros muito herméticos e, ao mesmo tempo, uma cronista da vida cotidiana, então é uma outra estratégia de se mostrar ao mundo.”

Dois lados do arco  – O sociólogo Fernando Pinheiro afirma que escolheu fazer uma intersecção entre escrita e obra. Pinheiro parte da tese de que o texto de literatura tende a ser atravessado pela figura do autor, a persona, seja de forma consciente ou não. Segundo ele, isso se evidencia mais desde o final do século 19, quando o escritor se torna uma figura pública e as estratégias dos agentes começaram a aparecer mais nas criações textuais.

Em trecho introdutório dos três ensaios, Pinheiro contextualiza e explica desta maneira: “Temos assim nessa ponta do arco o escritor colado ao que escreve, e com reservas a tudo que ultrapassa essa relação, o que inclui a indiferença à sua figura pública, que não chega sequer a constituir-se plenamente — Kafka representaria um tipo ideal no sentido de Weber se retivermos apenas esses traços centrais, deixando em suspenso as ambiguidades exploradas na interpretação de sua postura empírica como escritor”.

A outra ponta do arco, conforme o autor do livro O mago, o santo, a esfinge (Todavia, 248 pág.), é “habitada por uma postura de escritor antípoda desta (também no plano típico-ideal), os depoimentos citados parecem autoexplicativos, dada sua crueza em revelar artifícios na construção da imagem (simbólica e física) do escritor, pondo inteiramente de lado seu trabalho propriamente literário”, seria o caso de Paulo Coelho.

O escritor Luís Augusto Fischer, ao escrever a orelha do livro, salienta que os escritores em tela são bastante heterogêneos, a ponto de facilmente diferenciá-los em um bar escuro. “Trata-se de três casos bastante diversos, que não se conectam nem por geração, nem por um mesmo gênero textual dominante, nem mesmo na relação que cada um estabeleceu com sua imagem pública, resultante tanto de sua deliberada ação quanto das expectativas e demandas em torno de si”, escreve.

Senhas para a leitura – Para o professor da UnB, a partir da abordagem do livro, ao mostrar tipos de atuação e estilos de literatura, o leitor consegue imaginar outros autores nesses mesmos formatos. “Essas coisas estão sempre muito conectadas às posições políticas, relações econômicas, condicionantes de outras esferas da vida social. Tudo acaba sempre influenciando naquilo que a gente imagina que seja uma esfera autônoma, como a da literatura”, pontua Eduardo Dimitrov. Nesse sentido, traz chaves de leitura para a literatura brasileira.

Ao escrever sobre a obra de Paulo Coelho, o diplomata e escritor Marcelo Dantas traz outra leitura. “Ele não quer fazer literatura. Sua prioridade é vender livros. Movido pelas estatísticas da moderna indústria editorial, ele convenceu-se de que o grande público gosta mesmo é de seu ocultismo açucarado, com tramas banais e finais miraculosos.”

Para o sucesso do mago em outros países, Dimitrov tem uma explicação. De acordo com ele, ninguém compara Paulo Coelho a Proust ou a Guimarães Rosa, como no Brasil. “Ele tem outros espaços literários lá fora, literatura de entretenimento e de consumo rápido, sequer é comparado com os autores mais promissores da literatura francesa atual, por exemplo”, ressalta.

Mesmo tendo participado do Congresso Mundial de Bruxaria em Bogotá, na Colômbia, Clarice Lispector jamais se confundiu com a literatura e figura de Paulo Coelho. Pelo contrário, ela mesmo se definia como misteriosa e indecifrável. Ao visitar a Esfinge, no Egito, em 1946, escreveu: “Eu não a decifrei, mas ela também não me decifrou. Ela me aceitou, eu a aceitei. Cada um com seu próprio mistério”.

Manuel Bandeira, por sua vez, é considerado pela crítica literária como santo, uma vez que estaria apenas vinculado a questões literárias, alheio à política e à economia. “Fernando mostra que isso não é bem verdade, pois tem muita política na poesia do Manuel Bandeira. Mas a estratégia do autor foi esta: mostrar-se alguém desvinculado de outras preocupações, mesmo não sendo”, alerta Dimitrov.

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