Geraldo da Camino: fiscal do poder por escolha e poeta por imposição
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Na terça-feira, 5 de novembro, quatro dias antes de completar 62 anos, o trajeto de Geraldo da Camino pela praça da Alfândega, no Centro Histórico de Porto Alegre, terá uma diferença. Ao invés de seguir em direção ao prédio do Tribunal de Contas do Estado, como faz há 24 anos como procurador, interromperá o trajeto para receber os leitores do seu livro de poesias e assinar dedicatórias, às 17h, na Praça de Autógrafos da 70ª Feira do Livro da capital.
Vertigem de ancorar sendo viagem e outros poemas (editora Patuá) teve outro lançamento discreto em setembro e esgotou a tiragem feita sob demanda já na primeira sessão de autógrafos. Evento no Centro Histórico Cultural da Santa Casa (CHC), que conseguiu reunir em uma mesma foto, por exemplo, os ex-governadores Jair Soares e Olivio Dutra, ambos ombreando da Camino.
Assim é o doutor Geraldo, como o chamam, no TCE. Um cara que dialoga como forças políticas de todas as matizes, mas que admite certa dificuldade com alguns extremos.
Falamos aqui de um personagem da vida política do estado que tornou-se conhecido pelos noticiários, não pelos seus versos, infelizmente, mas por ter causado muitas dores de cabeça a governadores, prefeitos e outros poderosos durante o período em que esteve à frente do Ministério Público de Contas do RS. Lembram da Operação Rodin? Da época de Yeda Crusius. E, mais recentemente das privatizações da Ceee e da Corsan, sob a batuta de Eduardo Leite?
Natural de Porto Alegre, ingressou no Ministério Público de Contas (MPC) como procurador-adjunto, em setembro de 2000. Desde então, é membro da Associação do Ministério Público (AMP) do Rio Grande do Sul. Em abril de 2008, assumiu o cargo de procurador-geral do MPC, função que exerceu até 2023, quando passou a atuar como Corregedor-Geral do MPC. É mestre e doutor em Direito e atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado.
Mas não devemos pensar que estamos falando de um procurador que virou poeta. Justo o contrário. É a teoria do eterno retorno comprovada na vida real. Geraldo, ainda jovenzinho no bairro Bom Fim, escrevia seus primeiros poemas na máquina Remington que ganhou de presente de sua tia Anita, no dia 31 de dezembro de 1978.
Eclético na forma. Variado na temática, detesta rótulos – escreve porque sim. Se defende com duas linhas de quatro: Quintana, Vinícius, Drummond e Guilhermino; Blake, Rimbaud, Pessoa e Sá-Carneiro. Diz a síntese, por ele mesmo, contida na orelha do seu livro. E acrescenta: “Eclético na forma. Entusiasta da Democracia e da República (…) vive desde sempre em Porto Alegre, onde insiste em sonetos, apesar dos pesares, e cria seus dois filhos ao lado da mulher. É colorado e não se fala mais nisso.”
No prefácio, o poeta, professor e jornalista Juremir Machado da Silva antecipa ao leitor o que encontrará pela frente. “(…) reúne o fazer poético de um homem de muitos afazeres e uma fibra poética inquebrantável. O que se vê é uma poesia cuidada, precisa, feita de imagens singulares e de ritmos sincopados. (…) que belo livro!”.
Extra Classe – Quem vem primeiro, o Geraldo poeta ou o da Camino da Operação Rodin?
Geraldo da Camino – Sem dúvida, o poeta, que veio pelo menos 30 anos antes. Eu tinha 16 anos quando escrevi meus primeiros versos em 1978.
EC – O que a vida de fiscal do poder e a de apaixonado por sonetos têm em comum?
Da Camino – Talvez uma seja o alívio da outra. A vida de poeta, de certa forma compensa algum desencanto com a corrupção, por exemplo. Muito eventualmente se tangenciam. A relação com poder não é um tema habitual da poesia, mas é eventual.
EC – E dá para enxergar ou tirar poesia deste universo tão árido que é a vida pública?
Da Camino – Também dá, mas não é meu mote. Não que eu tenha um objetivo traçado. O que me inspira mais é a questão existencial. Do amor. Da finitude. Esses são meus temas mais constantes.
EC – Quais poetas te inspiram?
Da Camino – Escrevi na orelha do livro. Se defende com duas linhas de quatro: Quintana, Vinícius, Drummond e Guilhermino; Blake, Rimbaud, Pessoa e Sá-Carneiro. Claro que é uma simplificação. Teria muitos outros. Coloquei quatro brasileiros e quatro estrangeiros pela simbologia. Mas são meus oito preferidos com certeza.
EC – O poeta é um sujeito com pretensões literárias, como os escitopres que pendem à prosa ou é diferente?
Da Camino – Acho que o poeta é um pouco conformado com a pouca aceitação da poesia. Há três gêneros de pessoas diante da poesia. As que gostam, as que não gostam e as que dizem que gostam. Nem tanta gente gosta de poesia. Como escrevo em forma de poemas, ser poeta me é imposto. Não é uma opção.
EC – É uma necessidade orgânica?
Da Camino – Com certeza. É algo que vem. Não que poesia seja só inspiração. É clichê dizer que é também transpiração, mas é verdade. Mas a essência dela vem, não se escolhe. Como diz o Nei Lisboa, “fazer poesia não é botar ovo”.
EC – Este é o primeiro livro?
Da Camino – Sim.
EC – E certamente não será o último.
Da Camino – Não será. Para este já foi difícil selecionar. E tenho muita coisa escrita. Boa parte está digitalizada, mas ainda tem muita coisa em papel. E eu gosto de livros de poesia pequenos. Este teve uma seleção, visando isso e não teve um critério específico. A escolha foi meio anárquica. Consegui pegar épocas distintas, temas diferentes, mas tem muita coisa que ficou de fora. Além disso, continuo produzindo.
EC – Esses momentos diferentes também garantem certa diversidade por si só?
Da Camino – Com certeza. São distintos eus.
EC – Além da Feira do Livro, há outros lançamentos previstos?
Da Camino – Por enquanto, não. Teve o lançamento no CHC da Santa Casa, no dia 3 de setembro. Que foi um evento bem prazeroso. Teve música, teve recital, amigos, familiares. Depois, em 12 de setembro participei no Congresso do Ministério Público, de uma sessão coletiva de autógrafos. E agora, tem a Feira.
EC – Te incomoda a figura de pessoa pública, de fiscal do poder, com a figura do escritor e poeta, para quem vê de fora? Dá para separar essas duas coisas? Ou é tranquilo tanto para a imprensa como para os leitores te verem com uma pessoa multifacetada e sorridente? Porque o poeta sorri e o procurador do TCE talvez nem possa mostrar muito os dentes. Como é isso?
Da Camino – Talvez não seja tão simples. Muitas pessoas se surpreenderam. Talvez o que eu mais tenha escutado é que desconheciam esta faceta e que não imaginavam que eu escrevesse. Mas as pessoas têm vários vieses. Ainda que seja difícil, outra coisa que ouvi muito foi: “que coragem a tua se expor desse jeito”. Claro, em alguma medida estou me desnudando.
EC – Um poema mostra mais que a nudez?
Da Camino – Sim! Porque mostra a minha essência. Mostra momentos de vida, tristeza, de dor, de alegria. Mas eu achei que era a hora. Faz mais ou menos um ano que troquei de função no Ministério Público de Contas. Deixei de ser procurador-geral para ser corregedor-geral. Por ser um momento de transição, achei que era também de vir a público com minha condição poética. E que já era bem conhecida dos mais próximos.
EC – E com essa mudança de função como está a vida?
Da Camino – Mais tranquila. Porque a agenda de um procurador-geral exige muito. E, talvez, pelo meu perfil também. E, ao longo dos anos, o Ministério Público de Contas foi se tornando também uma referência de canal de denúncias. E isso demanda muito. Além da responsabilidade em si, de organizar a rotina de cerca de 40 pessoas, continuo exercendo as funções de procurador, atuando junto à câmara, dando parecer nos processos e tenho a função de corregedor-geral, que era algo que faltava e conseguimos que a Assembleia aprovasse esta função. Somos em quatro procuradores. Nosso convívio é fraterno. Não há problemas. Nunca recebemos denúncia ou queixa por qualquer procurador. Mas é importante que esta função exista.
EC – É o fiscal do fiscal?
Da Camino – É o fiscal do fiscal do fiscal. (risos) Importante que se diga que não me aposentei ainda, ao contrário do que muitos acreditam. Quando saí da função, muita gente interpretou como aposentadoria. Até cogitei, mas conversando com um amigo, eu disse: não sei como vai ser depois de 15 anos num ritmo muito pesado, ter uma quebra de ritmo tão radical. Achei por bem seguir mais um pouco, mas num outro ritmo. Fiquei com medo de ter uma síndrome de abstinência de adrenalina. Termo que peguei emprestado da jornalista Sandra Annemberg, que por muitos anos fez o Jornal Hoje e depois mudou de rotina ao ir para o Globo Repórter.
EC – Nesses anos de procurador-geral, de muitos anos de embates, o que te causou mais satisfação e frustração? Temos aí, Operação Rodin, privatizações, desmandos em prefeituras, enfim, diversas interferências do MPE na vida política e administrativa do poder público?
Da Camino – Primeiro que há uma estratégia muito comum que é a de acusar o acusador. Que os procuradores, promotores e delegados, quando investigam, estão procurando promoção, o que é injusto. Para cada representação que o Ministério Público oferece em relação a alguém há dezenas de outras que não vão adiante por falta de justa causa e essas não são notícia. Recebemos dezenas de denúncias por mês e uma ou duas resultam em uma representação, medida cautelar ou algo assim. Embora as que venham a público sejam as de repercussão, não há satisfação alguma em ver o erário sendo maltratado. Há algum consolo se a gente consegue minorar o dano. Não há satisfação, há tristeza. As atuações que me deram maior satisfação pessoal foram aquelas não noticiadas.
Capa: Reprodução Capa: Reprodução
EC – Por exemplo?
Da Camino – Por exemplo, a aposentadoria de uma professora do interior que estava sendo negada o registro, que se conseguiu verificar que estava errado, que era uma injustiça e se conseguiu reverter. Ou, outro exemplo, algo que é digno de registro que são as primeiras admissões das cotas raciais em prefeituras do interior, que tiveram registro negado pelo Tribunal de Contas, que considerava inconstitucionais as leis que permitiam as cotas e foram recursos do MP de Contas, assinados por mim, que conseguiram reverter essa posição do Tribunal e permitiram que os cotistas ingressassem nos municípios, na época: São Leopoldo e Pelotas. E isso é anterior à aprovação do Estatuto da Igualdade Racial. Acho digno de registro. Me considero, além de não racista, um antirracista. São pequenas coisas que nos deixam satisfeitos e que não vêm a público.
EC – Mais ou menos como os poemas?
Da Camino – Mais ou menos como os poemas.
EC – Tem algo que não tenha sido perguntado e que ache importante dizer?
Da Camino – Nada que me ocorra. Só que a poesia é mais do que um produto em si, poético. A poesia é uma forma de se relacionar com a existência.