Sergio Faraco: histórias esculpidas de sentimentos brutos
Foto: Igor Sperotto
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“É uma homenagem importante que recebo da Câmara Rio-Grandense do Livro e sempre vou lembrar. Não a recebo por mim, que pouco mereço, mas em nome daqueles que sinto representar nessas duas semanas, os escritores desta cidade e deste estado. A distinção é deles.” Com essas palavras, o escritor Sergio Faraco se pronunciou ao ser anunciado patrono da 70ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre, que acontece de 1º a 20 de novembro, na Praça da Alfândega, no Centro Histórico da capital dos gaúchos.
Trata-se da mesma praça que foi palco de um de seus mais célebres contos, A Dama do Bar Nevada. Um lugar na cidade que, nos demais 345 dias do ano, é desprovido do glamour vivido durante os 20 dias da festa do livro e da literatura. Habitado, na vida real, assim como na ficção de Faraco, por aposentados, michês, moradores de rua, prostitutas, enfim, seres humanos tanto frágeis quanto solitários em busca de companhia em troca de favores, pouso e alguns trocados. O olhar de respeito pelo humano possível e não idealizado percorre a obra do autor em qualquer cenário, seja urbano ou da região da fronteira, de onde é natural.
Nasceu em Alegrete, em 1940, cidade próxima das divisas do Brasil com Uruguai e Argentina. Entre 1963 e 1965, viveu por dois anos na então União Soviética, quando cursou o Instituto Internacional de Ciências Sociais, em Moscou. É formado em Direito, mas é como escritor que se destacou. Ao longo da sua produção literária, acumulou prêmios e reconhecimentos pelos seus contos, memórias e crônicas.
Em 1988, com a obra A dama do Bar Nevada, conquistou o Prêmio Galeão Coutinho, reconhecido pela União Brasileira de Escritores como o melhor volume de contos lançado no Brasil no ano anterior. Alguns anos depois, em 1994, com A lua com sede, recebeu o Prêmio Henrique Bertaso de melhor livro de crônicas. Em 1999 conquistou o prêmio de ficção da Academia Brasileira de Letras, pela obra Dançar Tango em Porto Alegre.
Nos anos de 1995, 1996 e 2001, foi agraciado com o Prêmio Açorianos de Literatura, principal premiação cultural da capital gaúcha. Em 2008 recebeu a Medalha Cidade de Porto Alegre, como homenagem da prefeitura da capital.
Ao escolhê-lo, a Câmara Rio-Grandense do livro destacou justamente esta característica na obra do escritor. A busca da simetria entre o que escreveu e aquilo que o levou a escrever, como um dos aspectos que diferencia seu trabalho de escritor.
“Tenho um impulso, pode ser uma ideia, uma circunstância, uma emoção, uma frase, uma música, algo que vejo ou alguém comenta, e então começo a escrever e a reescrever para descobrir a história que está por trás do impulso. O resultado é sempre um conto”, revela.
Novo livro de memórias
Foto: Igor Sperotto
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Em Lágrimas na Chuva, ele relata sua experiência de prisão na extinta União Soviética na juventude. Já o novo livro fala do seu retorno ao Brasil em 1965, no período pós-golpe militar, quando também foi preso pela Interpol em Porto Alegre, em um sobrado da rua Duque de Caxias, de onde não sairia ileso.
Digno é o Cordeiro documenta e revive os anos de horror entre 1964 e 1985 no Brasil. Nele, o autor olha para o estado-violência, repressor, que suprimiu liberdades individuais, direitos e qualquer garantia de integridade física aos seus cidadãos. O que vigorava eram a paranoia e o denuncismo. Vizinhos, conhecidos e até amigos desconfiavam uns dos outros. Não raro, uma delação sem fundamento podia significar um caminho até a tortura e a morte.
Sobre Faraco, Luiz Antonio de Assis Brasil afirmou em seu Dicionário Prático da Literatura Brasileira que “suas frases são escritas, depois refeitas, depois submetidas a uma autocrítica feroz, transfigurando-se em objeto artístico do mais alto nível”. Não é lenda!
Nesta breve entrevista, respondida de próprio punho, no dia 8 de outubro, ele firma e confirma as palavras de Assis Brasil.
Extra Classe – A Praça da Alfândega, além de palco da Feira do Livro, também é local rico em personagens para a literatura, como no caso de A Dama do Bar Nevada, um de teus contos mais conhecidos e reconhecidos. Como é voltar a este cenário normalmente habitado pelos desvalidos, não como observador, mas como celebridade em um evento que empresta raro glamour ao lugar?
Sergio Faraco – Minha condição de patrono da Feira não afeta aquilo que eu sou sem homenagens, não afeta minha solidariedade, e então o que eu sinto é a vergonha de pertencer a um país que consente que seus cidadãos vivam em condições tão vis. A Feira, até por questão de espaço, afasta os miseráveis da praça, ou seja, em última instância, mesmo sem querer, ela os empurra para outros lugares, onde eles continuam sendo os miseráveis e rejeitados de sempre.
EC – Como foi teu início na literatura? O que te motivou a escrever os primeiros textos e o que te motiva hoje?
Faraco – Minha primeira percepção não foi a de que podia produzir literatura, mas tão-só a de que sabia descrever o que sentia, isso nas cartas que escrevi no período em que, no quartel, estive preso. Em Alegrete, nos onze meses em que fui obrigado a ser soldado, seis passei na cadeia e só me comunicava por escrito com a namorada e meus pais. Três anos depois, quando em meu trabalho fui transferido para Blumenau, fiz amizade com alguns rapazes que se iniciavam nas artes, um deles o futuro escritor Roberto Gomes, meu amigo até hoje e residente em Curitiba, e então me compenetrei de que aquilo que faziam era o que eu gostaria e talvez fosse capaz de fazer. De Blumenau, no início de 1964, fui para a URSS cursar o Instituto Internacional de Ciências Sociais. Com o golpe militar de 1º de abril em nosso país, o moral dos brasileiros que lá estavam decaiu de tal modo que uns quantos foram hospitalizados, sobretudo os que tinham deixado as famílias sob os cuidados de sindicatos ou do PCB. Para animar o grupo, criei no alojamento um jornal mural. Escrevia pequenas notas com notícias ou histórias inventadas sobre eles mesmos e aquilo foi um exercício formidável que me ensinou a reproduzir na escrita os sentimentos que, por sua vez, me levavam a escrever. No final dos anos 60 comecei a publicar contos no Caderno de Sábado do Correio do Povo e, eventualmente, artigos na quarta página do jornal. Assim foi o início dessa trajetória, que já vai para 60 anos. Minha motivação, como escritor, como ficcionista, sempre foi bem simples, mas ambiciosa: uma ideia de restaurar ou de salvar o que quer que seja, sobretudo vidas decompostas que demandam recomposição. As artes só têm sentido quando buscam um mundo melhor.
“Ainda creio no socialismo, mas não no que conheci de perto durante mais de um ano. Acredito sem esperanças, entendendo que só seria bem-sucedido se, antes, mudassem os homens que o capitalismo degenerou. E os homens nunca vão mudar”
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Faraco – Já narrei essa experiência no livro Lágrimas na Chuva, publicado em 2002. Esses fatos ocorreram há quase sessenta anos, mas, curiosamente, sempre me perguntam sobre eles. Eu recém entrara para o PCB, em Blumenau, tinha comparecido somente à reunião em que fora apresentado, mas mesmo assim fui convidado para preencher a vaga de Santa Catarina num curso na URSS, exclusivo para os membros do Partido. Em Moscou, sem demora comecei a me decepcionar com algumas coisas e a comentar esta decepção sem escolher interlocutor. Um dia fui chamado pelo diretor do Instituto. Ele exigiu que consultasse um psiquiatra, alegando que recebera denúncias sobre meu comportamento e que, provavelmente, o golpe no Brasil afetara minha saúde mental. Ora, não me sentia mal como os outros, até fazia aquele jornal para diverti-los, mas o psiquiatra recomendou que, para descansar e me afastar de todas as tensões, fosse para uma dátcha (casa de campo) por um mês. Uma garota iria junto para fazer a comida e cuidar da minha roupa e eu poderia levar livros e a máquina de escrever. Aceitei, estava escrevendo um livro sobre um reino contemporâneo de assírios e babilônios cujas ruínas eu conhecera no Cáucaso e que, muitos anos depois, seria publicado pela Editora da Ufrgs. Bem, fui enganado. Me levaram para o Kremlovski Bolnitso (Hospital do Kremlin), nos arredores de Moscou, me colocaram num quarto fechado, onde permaneci exatos 100 dias, ingerindo 9 comprimidos pela manhã e outros tantos à noite. Lembro-me dos nomes de dois, Artan e Stelazin. Para ser reeducado. No segundo mês já não conseguia sair da cama. É uma longa história. Por causa dela e de outras ocorrências perdi o interesse pelo Partido. Ainda creio no socialismo, mas não no que conheci de perto durante mais de um ano. Acredito sem esperanças, entendendo que só seria bem-sucedido se, antes, mudassem os homens que o capitalismo degenerou. E os homens nunca vão mudar.
EC – Quais as tuas principais influências? Quais contemporâneos admiras e quais destacaria entre os novos autores brasileiros e da aldeia?
Faraco – Não identifico influências em meu trabalho, talvez porque nunca me fiz essa pergunta e mesmo nunca pensei nisso. Tenho admirações, isto sim. Hemingway, por exemplo, o dos contos em que o personagem é seu alter ego Nick Carter. Admiro seus diálogos, mas não sei se tal admiração repercute nos meus. Romancistas brasileiros de hoje, leio bem pouco, já li muito os antigos, do tempo de Jorge Amado, Graciliano, Mário Palmério. Contistas, sempre gostei de Lygia Fagundes Telles, minha querida amiga, do Dalton Trevisan, do Jaime Prado Gouvêa, também meu amigo, do Murilo Rubião, do João Antônio, outro amigo. No Sul, os romancistas que admiro são o Assis Brasil e o Tabajara Ruas, e entre os contistas, os que mais me lembram são o Caio Fernando Abreu e o Aldyr Schlee.
“Não se pode pensar que um bloco de mármore, por exemplo, seja uma obra de arte. É o material para a obra. A arte comparece pelo cinzel do escultor. Isto tem tudo a ver com o trabalho do escritor para produzir literatura”
EC – Como vês o ofício de escrever ficção em tempos de leitura na internet e livros digitais? O que se ganha e o que se perde?
Faraco – Para mim, não mudou nada, ou seja, sento-me e escrevo. A internet e os livros digitais e suas derivações são matérias de interesse para editores, distribuidores e livreiros. No entanto, quando perguntado, respondo, tenho uma opinião: não acredito que o livro físico vá desaparecer. Aquilo que não é físico, sim, tende ao desaparecimento, e mesmo sendo físico, como foi o caso de CD/s e DVD/s, costuma desaparecer também quando desaparece sua tecnologia. A morte do livro físico é apenas uma lenda criada para favorecer o comércio digital.
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Faraco – Não é lenda, escrever não é fácil nem fluído no meu caso. Escrevendo, aquilo que é fácil eu rejeito, jamais avanço pela linha de menor resistência e sempre estou em busca daquilo que me satisfaz, isto é, uma arquitetura frasal que corresponda exatamente ao que estou pensando. Sempre lembro que Hemingway reescreveu umas quantas vezes o final de Adeus às Armas, como eu poderia me contentar com menos? O espontâneo não convence o leitor, que só abre sua sensibilidade ao que é natural, e este deve ser buscado. É o que costumava dizer, com grande acerto, Mario Quintana. Não se pode pensar que um bloco de mármore, por exemplo, seja uma obra de arte. É o material para a obra. A arte comparece pelo cinzel do escultor. Isto tem tudo a ver com o trabalho do escritor para produzir literatura.
EC – O que significa ter sido escolhido patrono da feira?
Faraco – Eu já não considerava esta possibilidade, os candidatos de minha preferência, há muitos anos, são os professores e escritores Luiz Oswaldo Leite e Flávio Loureiro Chaves e o poeta José Eduardo Degrazia. Embora tenha recusado no passado, aceitei agora com muita honra, considerando que, durante vinte dias, vou representar meus colegas junto à Câmara do Livro e diante dos leitores de nossa cidade, justamente num ano que foi muito difícil para os profissionais do livro. Em minhas inúmeras entrevistas desde meados de agosto, espero ter colaborado de algum modo para que a feira seja um sucesso, revigorando quem trabalha com livros, tornando-se um impulso para a plena retomada da vida cultural de Porto Alegre e indicando, simbolicamente, que a cidade reconquistou a posse de seu centro histórico.