CULTURA

Um banquinho, um violão e um divã

Em seu novo livro, o professor e escritor Arthur Telló mostra a trajetória de Joca, um escritor em crise que recorre aos conselhos de João Gilberto e Gal Costa para sobreviver ao cotidiano
Por Gilson Camargo / Publicado em 27 de novembro de 2024
Um banquinho, um violão e um divã

Foto: Gabrielle Farias Oliveira

“A obra parte de um argumento clichê: um escritor frustrado, abandonado pela mulher. Sozinho e sem grana, ele só pode contar com a voz do inconsciente, personificada pelo João Gilberto e pela Gal Costa, para retomar aquilo que Jung chamou de jornada de individuação”

Foto: Gabrielle Farias Oliveira

Quarto livro do professor e escritor gaúcho Arthur Telló, Eu tinha vontade de mandar tudo isso para João Gilberto (Casa de Astérion, 2024, 112 p.) tem lançamento no próximo sábado, 30, das 17h às 20h, no Mezanino do Quintana’s Bar – Casa de Cultura Mario Quintana, no centro Histórico de Porto Alegre. Com formação em letras-latim pela Ufrgs, Telló é mestre em escrita criativa e doutor em teoria da literatura pela PUCRS, onde leciona latim, grego, literatura e escrita criativa. Em 2016, recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Narrativa Longa com o romance O Tríptico de Elisa. Agora, nesta novela tropical, o autor combina traços da literatura nórdica com a atmosfera de realidade e ficção ao melhor estilo dos raros latino-americanos e flerta com a verve machadiana: ‘dentro do inverno russo da minha alma, escondia-se uma Bahia metafísica de puro pecado e deleite abaixo do Equador, mas que valia muito pouco para aguentar o verão sufocante de Porto Alegre. A trama mergulha de corpo e alma no universo da Bossa Nova e da MPB para contar a história de escritor frustrado e em crise que recorre aos conselhos de João Gilberto e Gal Costa para se manter em pé. “Tenho muita raiva dentro de mim/mas graças a João Gilberto, meu insconsciente, ela nunca chega à superfície”, conforma-se o personagem central em raro momento de calmaria Gilbertiana. “O romance tem uma identidade tropical, brasileira, uma mistura radical das coisas”, revela o autor nesta entrevista.

Extra Classe – Como nasceu o romance Eu tinha vontade de mandar tudo isso para João Gilberto?
Arthur Telló – A premissa desse livro é bem antiga. Acho que data lá pelo final de 2016. Eu recém tinha escrito duas novelas (uma das quais venceu o prêmio Açorianos Narrativa Longa) e estava vazio de conteúdos para escrever novos textos. Então, a partir da leitura de alguns romances como o Divórcio, de Ricardo Lísias, Ouça a canção do vento, de Haruki Murakami, e, principalmente, A trilogia suja de Havana, junto com os contos de O insaciável homem-aranha, do Pedro Juan Gutiérrez, pensei em explorar algumas hipóteses de vida pessoal para escrever ficção. Seria uma espécie de autoficção, em que o nome dos protagonistas remontaria à vida que eu levava, mas a organização dos fatos seria fictícia. Me perguntei sobre o que seria a coisa mais triste que poderia me ocorrer naquele momento e concluí que seria o fim do meu namoro com a Gabi (hoje, minha esposa). A partir dessas ideias, montei a primeira versão do romance, mas era um livro chato, pernóstico, que copiava descaradamente o estilo agressivo e debochado da Trilogia suja. Ninguém gostou desse texto (com razão), que ficou durante anos na gaveta, a ponto de eu tê-lo esquecido.

EC – O que mudou?
Telló – Anos mais tarde, ali por 2022, comecei a procurar argumentos sobre os quais escrever e lembrei do texto Eu tinha vontade de mandar tudo isso para João Gilberto. Seria uma oportunidade para inventar a partir do que já estava escrito e de me divertir durante o processo. Eu estava me recuperando de um episódio de depressão e tinha dois romances inconclusos que poderia retomar. Perguntei a um amigo sobre o que ele achava, e ele me perguntou qual dos dois era o mais leve. Falei que esse se tratava de um livro divertido, um tanto exagerado e mirabolante, que tinha o João Gilberto como personificação do inconsciente. Ele me recomendou mergulhar nessa história, e eu o agradeço por isso. Pude colocar na obra muito do que fui aprendendo com o tempo sobre a escrita, além do meu amor pela música e dos meus estudos em Psicologia Analítica e Psicanálise. Foi um barato escrever esse pequeno romance. Do texto original, sobram dois capítulos totalmente reescritos e parte de um terceiro. O livro se tornou outro, adquirindo leveza e graça.

EC – Por falar em psicologia, a história tem um pouco de catarse, algo de autobiográfico como toda literatura e muito da jornada do herói, não?
Telló – Em resumo, a obra parte de argumento clichê, mas a partir do qual pude fantasiar e experimentar formalmente: um escritor frustrado, abandonado pela mulher. Sozinho e sem grana, ele só pode contar com a voz do inconsciente, personificada pelo João Gilberto e pela Gal Costa, para retomar a própria vida e sua jornada de vir a ser quem ele é, aquilo que Jung chamou de jornada de individuação.

EC – O estilo da narrativa remete ao A Vida Breve (1950), do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-94), ou seja, cria uma atmosfera dúbia, que incorpora vozes, pensamentos do narrador, e deixa o leitor um pouco no limite entre o que é ficção e realidade na trama… Viagem minha?
Telló – É uma viagem totalmente procedente. Gosto muito dos escritores uruguaios, principalmente dos esquisitos, los raros, como Felisberto Hernández, Juan Carlos Onetti e Mario Levrero. Dizem que os melhores contistas são argentinos; os romancistas, peruanos; os poetas, chilenos; e os escritores mais esquisitos, os uruguaios. Há muito de exagero nessa máxima, mas gosto de pensar na minha filiação com os autores latino-americanos e, principalmente, com os uruguaios. No prefácio do livro de contos, Os cadernos de solidão de Mario Lavale, o amigo poeta Pedro Gonzaga já apontava a influência do Onetti no meu texto. E acho que isso se deve a certa passividade e inatividade dos heróis, esses preguiçosos sonhadores. Nossos protagonistas preferem ficar em casa fantasiando sobre o que fariam se estivessem na rua, ou então inventando personagens azarões que arriscam o que eles mesmos não são capazes de arriscar. No livro do João Gilberto, tanto o narrador Joca quanto o João Gilberto seriam incapazes de sair de casa. Então recorri à imagem da Gal Costa, como arquétipo do desejo, para injetar movimento aos personagens e à trama.

EC – Tem uma pegada machadiana também? Explique.
Telló – Tem sim. Se meu livro de contos tinha uma pegada latino-americana, muito enraizada na Argentina e no Uruguai, o romance tem uma identidade tropical, brasileira, uma mistura radical das coisas. O Machado é um dos meus autores preferidos, principalmente o de Memórias Póstumas, que é um livro experimental, inventivo, com um narrador vaidoso, verborrágico, iludido e não digno de confiança. Tanto a forma como o conteúdo do meu livro são tributários ao Memórias Póstumas, com suas rabugens de pessimismo e o conluio da pena da galhofa com a tinta da melancolia. Por exemplo, há nele um capítulo de uma frase só, dessas bem curtinhas, típicas dos achados machadianos.

EC – O mito do escritor em crise, atormentado e pressionado pelo cotidiano, relacionamento, contas a pagar, mais valia… Isso só existe na ficção ou tu experimentas um pouco desses conflitos no teu processo de escrita? Se a pergunta não fizer sentido, refaço: como é teu processo de escrita? É metódico ou impulsivo?
Telló – Bem, eu acho que o mais difícil na tentativa de produzir arte é fazer algo que ninguém te pede para fazer. O trabalho, as expectativas e o processo de subjetividade neoliberal impõem condutas socialmente aceitas e reconhecidas, condutas que prezam por resultados objetivos e contabilizáveis. Espera-se que um médico clinique; um engenheiro construa; um professor ensine; um motorista de aplicativo transporte, mas, embora se valorize a arte, ninguém te pede para escrever. Então é sempre um desafio materializar esse desejo, criar lugar e condições nos quais fazer o que ninguém te pede é possível. No meu caso, é escrever. Nesse sentido, minhas condições materiais de vida não me dão o luxo de escrever a partir de uma rotina. Escrevo nos intervalos em que isso se torna viável, no computador do trabalho durante as provas dos alunos; no papel enquanto tomo café; no celular quando estou no ônibus. É sempre uma luta, em cujos longos intervalos sem conseguir mexer no texto, preciso gastar energia para mantê-lo vivo em mim.

Um banquinho, um violão e um divã

Foto: Gabrielle Farias Oliveira

“O processo de subjetividade neoliberal impõe condutas socialmente aceitas e reconhecidas, que prezam por resultados objetivos. O mais difícil na tentativa de produzir arte é fazer algo que ninguém te pede para fazer”

Foto: Gabrielle Farias Oliveira

EC – De que forma esses dois universos, do professor e do escritor, dialogam nos teus livros? Quem são teus leitores?
Telló – Me sinto mais como um professor que eventualmente escreve do que como um escritor. Sou um escritor enquanto estou escrevendo, mas depois sou mais alguém que pode opinar sobre o que se escreveu do que um escritor propriamente dito. Como a atividade docente é a que eu conheço mais e meus personagens, em geral, são intelectuais de classe média, introspectivos e sonhadores, meus textos têm professores como protagonistas. E como crio meus personagens a partir de dentro e tento me pôr na pele deles para conhecer sua linguagem e seus instrumentos de percepção, parte da invenção se baseia naquilo que conheço, que é a vida de professor. Talvez se eu tivesse mais tempo, pesquisaria sobre outros tipos de profissão para escrever, mas aí seria o texto de outra pessoa. Embora a maior parte dos meus leitores se trate dos alunos, amigos e colegas, acredito que cada texto tem o seu leitor particular, alguém que vai jogar e dar vida às manchas de tinta no papel. No meu caso, acredito que esses leitores sejam gente que leu os russos, Machado, Clarice e os latino-americanos.

EC – Qual o papel da literatura na educação, na tua opinião?
Telló – Como Antonio Candido argumenta na conferência sobre literatura como direito humano, acredito que a Literatura tem papel fundamental na formação de um indivíduo, seja porque, a partir da leitura, se aprende a estruturar, a organizar formalmente o pensamento; seja porque o texto literário funciona por meio do efeito de estranhamento, desautomatizando a linguagem e as expectativas cotidianas, rasurando o real e criando uma nova percepção da realidade e dos sentimentos a partir dos efeitos presentes na palavra escrita; seja porque, ao ler, pomos a imaginação a funcionar, mergulhamos em nós mesmos e aprendemos a nomear as impressões difusas que sentimos, de modo a poder acolher o que se sente e entender a si mesmo; seja porque, lendo, nos colocamos no ponto de vista do outro, de modo a ampliarmos nosso repertório de sensibilidade, muitas vezes para além dos nossos círculos e determinações de pertencimento, além de nos  despertarmos para os sentimentos de empatia. Enfim, acho que a literatura é vital na formação de um indivíduo, uma vez que a matéria dela é a experiência humana e só a partir do contato com a experiência do outro aprendemos a sermos humanos.

EC – Teus livros anteriores são o romance O Tríptico de Elisa (Prêmio Açorianos Narrativa Longa, 2016), Os cadernos de solidão de Maria Lavale (contos) e o romance em coautoria com Lucas Neves, Antes de sair apague a luz. Agora um o romance do João Gilberto. E o próximo?
Telló – Tenho alguns projetos inacabados para os quais ainda não encontrei o tempo e a dedicação para dar continuidade. Há um livro de contos pronto, mas que, apesar de ter contado com leituras elogiosas, não encontrou quem o queira editar; há dois projetos de novela esperando continuação e um romance que precisa ser retomado e terminado. Espero que a vida me dê tempo para continuar esses projetos. A energia e o desejo eu tenho.

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