GERAL

Um jogo com soma zero

Ricardo Schaefer / Publicado em 21 de maio de 2000

A instabilidade recente das bolsas de valores mundiais mostra o quão velha é a denominada nova economia, e não é somente porque a base ideológica desta nova economia é o velho e clássico liberalismo. Precisamos entender o momento atual como fazendo parte de um processo que se desenrola há algum tempo. Desde a revolução industrial, o mundo assiste a um processo conjunto de acelerado progresso técnico, contínuo e irregular crescimento econômico e crescente globalização. Esta se caracteriza por uma divisão mundial do trabalho cada vez mais elaborada e complexa e pela ascensão de uma rede de fluxos e intercâmbios ligando partes da economia mundial ao sistema global. Os determinantes deste processo podem ser agrupados em três conjuntos de fatores: tecnológicos, institucionais e sistêmicos

O progresso técnico consolidou-se no casamento entre a técnica e a ciência, reforçando a relação entre ciência e produção. Denominamos este casamento de tecnociência, situando-a na base material e ideológica na qual se fundem o discurso e a prática da globalização. Isto ocorre porque o atual Sistema Técnico, nascido de uma revolução tecnológica na informática e nas telecomunicações (Telemática), as chamadas técnicas da informação, permitiu uma extraordinária redução dos custos operacionais e dos custos de transação em escala global. As operações produtivas e financeiras tornaram-se significativamente mais baratas, ao mesmo tempo que se reduziram os custos de coleta de informações e de monitoramento dos mercados de capitais e de controle das operações produtivas espalhadas pelo mundo. Além disso, uma nova indústria foi montada, a indústria da informática. Esta inundou o mercado com os computadores pessoais e os softwares, que massificaram o seu uso. Soma-se a isso o fato de que a Internet, hoje, a partir da possibilidade de aumento da capacidade de transmissão de dados (a denominada banda larga), torna-se um veículo de comunicação que pretende oferecer conjuntamente o que hoje é entregue de forma separada: televisão, telefonia e dados. É a chamada convergência tecnológica, razão da extrema valorização dos “novos canais de televisão”: AOL, UOL, Amazon, Yahoo, Starmedia, Terra, controlados por grandes grupos, em sua maioria internacionais.

O fator institucional e político está vinculado à ascensão das idéias liberais ao longo da década de 80 (Thatcher/Grã-Bretanha e Reagan/EUA) cujo resultado foi uma onda de desregulamentação do sistema econômico em escala global (inicialmente, desregulamentação cambial e financeira). Por fim, os fatores de ordem sistêmica e estrutural dizem respeito às dificuldades de expansão da esfera produtivo-real das economias capitalistas maduras (insuficiência de demanda agregada – mercado). Neste sentido, a globalização econômica é vista como parte do movimento de acumulação em escala global no qual os países desenvolvidos colocam pressões crescentes no acesso aos mercados internacionais de bens e serviços, como uma estratégia de saída para a crise doméstica de acumulação.

O resultado deste processo é a ascensão de uma unidade econômica global onde tudo se mundializa: a produção, o produto, o dinheiro, o crédito, a dívida, o consumo, a política e a cultura. Podemos afirmar que a economia global é uma economia que funciona como uma unidade em tempo real, tendo como espaço o planeta, selecionando, neste, pontos específicos e elementos conectando-os ao interior do sistema ou desconectando-os. É a emergência de uma realidade econômica mundial na qual as grandes organizações são os grandes atores da vida internacional. Assim, o setor produtivo é constituído por uma rede de interdependências ampliadas pela constituição de comunidades político-econômicas e mercados comuns. Observa-se, assim, que a estrutura da oferta mundial é marcada pelo oligopólio, onde um pequeno grupo de empresas controla a quase totalidade da produção mundial. Exemplificando, 70% da oferta mundial de hardware(computadores, telefones celulares etc.) e 82% da oferta de automóveis é controlada, cada uma, por apenas dez empresas. No setor de material de saúde a situação é extrema: quase 100% da oferta é controlada por apenas sete empresas.

Paralelamente a esta incrível concentração industrial, equivalente à do início do século 20, outro fator, também com 100 anos de idade, é a profunda desregulamentação das atividades financeiras ocorrida a partir dos anos 80. O plano Brady, de reescalonamento da dívida externa dos países subdesenvolvidos, tinha como contrapartida a abertura dos mercados financeiros nacionais: de câmbio, títulos públicos, ações, etc. Dois processos se desenrolam, então, a partir dos anos 80: um de desregulamentação das atividades financeiras e outro de desregulamentação do mercado de trabalho, com a supressão da legislação trabalhista. A Argentina está passando por este processo atualmente com a chamada Reforma Laboral que o presidente Fernando de La Rua está implementando e que foi aprovada pelo congresso argentino no dia 26 de abril.

A crise atual é uma crise de percepção. É a crise de percebermos a moeda e o trabalho

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como mercadorias. Não podemos tratar o trabalho como mercadoria por uma razão simples e óbvia: ocorre que a substância desta mercadoria é um ser humano com direitos fundamentais à vida. A moeda é uma ficção criada pela humanidade e que deveria servir para intermediar as trocas e melhorar o processo de alocação de recursos, apoiando um desenvolvimento econômico sustentável. O que ocorre é que a moeda, e aqui estamos falando de moeda na sua forma atual, dinheiro e valores mobiliários (títulos públicos e privados, também chamada quase-moeda), tem sido encarada como comércio e este tem sido explorado como atividade transnacional e como objeto de competição mundial entre as grandes transnacionais, que buscam aproveitar suas vantagens comparativas. Assim, a moeda e seu “negócio”, as finanças, são encaradas como uma indústria que precisa dar lucro. Esta visão acarreta dois problemas insustentáveis: um de ordem macroeconômica e outro de ordem ético-social. O que acontece é que pelas características deste “negócio”, os lucros obtidos advém de transferências, que provêm da esfera produtiva, onde são criados o valor e os rendimentos fundamentais (salários e lucro). Os capitais que se valorizam na esfera financeira nasceram, e continuam nascendo, no setor produtivo. O capital nasce sob a forma de lucro (lucros não reinvestidos na produção e não consumidos e aquela parcela paga como juros por empréstimo), salários e rendimento de pequenos agricultores e artesãos, os quais sofreram algum tipo de retenção por via fiscal e, por isso, não foram para o consumo, e aquela parcela paga como juros da forma atual e legitimada de agiotagem dos Créditos Diretos ao Consumidor(CDC). Por fim, principalmente nos EUA e agora vindo vorazmente para o Brasil, os fundos privados de aposentadoria que gerenciam fundos advindos de salários diferidos.

A esfera financeira, assim, alimenta-se da riqueza criada pelo trabalho, pela esfera real da economia, que se traduz em ciclos de produção, distribuição e consumo, ela mesma não cria nada. Forma-se uma ciranda, um jogo no qual a soma é zero. O que alguém ganha dentro do circuito fechado do sistema financeiro, outro perde. E este processo de transferência de riqueza, o “efeito-riqueza”, faz com que cada vez mais uns poucos, que vivem de renda (rentistas), vivam à custa de muitos. Como o valor de qualquer ação na bolsa de valores depende da expectativa de lucros futuros e como este depende de uma expectativa de consumo futuro, a lógica atual dos mercados financeiros e da concentração produtiva leva a crises sucessivas, crises de realização, ou seja, de falta de demanda efetiva.

*economista, coordenador de Assuntos Internacionais da Sedai e membro da Attac/RS

 

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