A água, o bem mais precioso do futuro, é a bola da vez no processo de privatização no Brasil. Dia 22 de fevereiro, uma quinta-feira, quando o país se preparava para o carnaval – que começaria na sexta – e só pensava em decorar as letras dos sucessos momentâneos, o governo federal encaminhou ao Congresso o projeto de lei 4147/2001, que lança as bases para o setor de saneamento. Detalhe: recomendando a votação, em regime de urgência, até o dia 7 de abril. Como o Brasil só voltou “ao normal” em 5 de março, o projeto entraria em pauta sem qualquer debate e sem que sequer parlamentares, prefeitos, governadores e sociedade estivessem informados.
Marcia Camarano
“O governo federal jogou com a desinformação e o fator surpresa, para dar o fato como consumado”, denuncia Carlos Atílio Todeschini, diretor-geral do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), de Porto Alegre. Apesar do susto e do pouco tempo, lideranças e funcionários ligados à área do saneamento iniciaram uma corrida para informar a população sobre o que estava ocorrendo, promovendo mobilizações e pressionando governantes municipais, estaduais e parlamentares. Na Quarta Marcha dos Prefeitos, em Brasília, o tema ganhou destaque.
Também houve reuniões com a bancada federal gaúcha. Dos 31 deputados, participaram 25 e a maioria se posicionou contrária ao projeto. Também a Comissão de Saúde e de Assuntos Municipais da Assembléia Legislativa tratou do assunto e os participantes decidiram liderar uma mobilização. A pressão surtiu algum efeito, pois a votação foi adiada. Só que a cabeça ainda está na guilhotina, pois o governo federal promete remeter a proposta novamente para votação agora em maio.
O projeto 4147/2001 transfere a titularidade dos serviços de saneamento dos municípios para os estados. “É um embuste, porque além de ferir a autonomia dos entes federados (municípios, estados e União), abre caminho para que a iniciativa privada se aproprie de um recurso natural tão precioso”, destaca Todeschini. Ele alerta que o Brasil está prestes a repetir os passos de países latino-americanos que já privatizaram seu sistema, como Chile, Argentina e Bolívia. “Apesar de todos os discursos bonitos, a verdade é que nesses países, as pessoas, para fazerem uso da água, pagam um preço cada vez mais elevado”, informa.
Foto:René Cabrales
Foto:René Cabrales
Na Argentina, a concessão dos serviços foi repassada a um consórcio de empresas privadas, que pode explorá-los por 20 anos. Aquele país viu, em sete anos, a tarifa da água subir mais de 280%. No Chile foi ainda pior, pois as empresas não só adquiriram a concessão, como também o controle das águas. E, na Bolívia, camponeses foram proibidos de fazer perfurações superficiais.
Há outros exemplos, dessa vez vindos do primeiro mundo, que também apresentam conseqüências preocupantes. Em 1989, a Inglaterra vendeu e reduziu para dez as empresas responsáveis pelo saneamento. Em 1999, já eram cinco empresas. Dois anos mais tarde, as tarifas subiram 30% e o lucro saltou para 360%. Inglaterra e França são os dois únicos países europeus que privatizaram seus sistemas. Os outros preferiram deixar esse bem precioso sob o cuidado de empresas públicas.
Se por um lado o Fórum não resultou em uma ação concreta, pois não foi oficializado nenhum documento, por outro, é indiscutível que ele reforça a agenda social e abre espaço para ela em organizações internacionais com capacidade decisória, como a ONU e os próprios organismos financeiros internacionais.