Independente de quê?
Foto: Enildo Amaral/Banco Central
O tema esquentou a corrida eleitoral após Marina Silva, candidata do PSB à presidência, ter, em seu programa de governo, se comprometido em assegurar em lei a independência do Banco Central. O programa, porém, informa que o modelo da independência seria detalhado apenas depois das eleições. A presidente Dilma Rousseff (PT), candidata à reeleição, reagiu, assinalando que a proposta reflete uma visão da economia que não está dando certo em outras partes do mundo, em alusão expressa à Europa. O Banco Central Europeu (BCE) é referência em independência e tem como objetivo fundamental o controle da inflação. Mas sua configuração não impediu nem a crise e nem as altíssimas taxas de desemprego.
Desde que o debate surgiu na disputa presidencial, independência e autonomia, em relação ao Banco Central, não raro ganharam o mesmo significado. E a confusão do eleitor aumentou. Porque até os economistas divergem sobre o que é um BC autônomo e um independente. A literatura sobre o tema e os especialistas apontam para a existência de diferentes graus de independência.
Em tese, um Banco Central totalmente independente determina sozinho as metas da política monetária, supostamente não sofre interferências políticas, sua diretoria não pode ser demitida pelo chefe do Executivo e há mandatos fixos. Além disso, seu objetivo é um só: manter a inflação sob controle e a moeda estável.
Um menos independente, às vezes chamado por parte dos economistas de autônomo, decide como alcançar objetivos determinados pelo Executivo ou o Legislativo, e sua diretoria não tem mandato fixo, podendo ser demitida pelo chefe do Executivo. Além disso, sua preocupação não é só o controle da inflação, mas, também, variáveis como os níveis de emprego e de atividade econômica.
No Brasil, o debate é quase tão antigo quanto o próprio Banco Central, criado em 1964. Hoje o Bacen possui o que é definido como ‘autonomia informal’ ou ‘autonomia de fato’, mas não de direito. A diretoria é escolhida pelo presidente da República, passa por sabatina no Senado e pode ser substituída a qualquer momento.
É o Bacen que determina a taxa de juros e a de câmbio. A primeira é definida de forma a cumprir a meta de inflação. Esta, por sua vez, é estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O CMN, composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do BC, é a autoridade máxima do sistema financeiro do país e quem define a política monetária.
No debate brasileiro, os partidários da tese da independência defendem que ela aumenta a transparência e a eficácia das ações adotadas para o controle de preços. Que, além disso, garante a credibilidade do mercado na autoridade monetária se esta tem como único objetivo o controle da inflação e atua de forma independente às demais diretrizes do governo. Isso, por si só, já geraria uma credibilidade inicial, que resultaria na queda dos preços antes mesmo de o BC implementar suas políticas.
Parte significativa do sistema financeiro também considera como incompatíveis os atuais objetivos múltiplos do Bacen. Apesar disso, o atual presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Murilo Portugal, declarou recentemente que o BC já funciona com independência operacional há bastante tempo.
Os críticos da tese da independência total, por sua vez, elencam problemas. O primeiro, de que ela significa para o governo abrir mão da política econômica e dar ao BC o status de poder independente, com o intuito de atender aos interesses do mercado. O segundo, que uma diretoria com mandatos fixos não garante a inexistência de acordos informais entre esta e o Executivo ou o Legislativo.
A tese da independência esbarra ainda na tendência de que, em países em desenvolvimento, ela não apresente os resultados esperados quando não há outros pontos de suporte às políticas para o controle da inflação. E, sobre a taxa de juros, no caso brasileiro, pesa o fato de ela se manter alta porque o país precisa de recursos externos para fechar as contas e, assim, a utiliza para atrair investimentos.
Como funcionam os Bancos Centrais que são referência em independência
EUA – O Federal Reserve (FED) decide qual a política monetária e seus instrumentos. Apesar de ser apontado muitas vezes como independente, o FED não tem como meta só os preços estáveis. Seu estatuto reza que persiga o equilíbrio monetário, o pleno emprego e o crescimento sustentado. O presidente e o vice têm mandatos de quatro anos, não coincidentes com os mandatos presidenciais, e renováveis. São escolhidos pela Casa Branca entre a diretoria central, indicada pelo presidente dos EUA e aprovada pelo Senado. O FED deve explicações apenas ao Senado. A diretoria central só pode ser destituída por má conduta, crimes e outras questões graves, e após votação no Senado. Apesar do aparato para conter as pressões externas, na crise de 2007/2008 o FED socorreu instituições financeiras dentro e fora dos EUA.
INGLATERRA – O Banco da Inglaterra (BoE) tem autonomia operacional, apesar de ser apontado como independente principalmente em função da forma como é escolhida a diretoria. Quem decide a meta de inflação é o governo central. O BoE tem autonomia para alcançar as metas estabelecidas. É o governo que indica o presidente, cujo mandato é de oito anos. Seus quatro vices possuem mandatos de cinco anos, renováveis. Em função da crise financeira mundial, em abril de 2013 o BoE expandiu suas responsabilidades e deu início a um novo plano estratégico.
CHILE – O objetivo do Banco Central de Chile é a estabilidade da moeda. Ele estabelece a meta de inflação (na faixa dos 3% ao ano, com um intervalo de tolerância de um ponto percentual acima ou abaixo), não está sujeito à fiscalização da Controladoria-Geral da República, nem da Superintendência de Bancos e Instituições Financeiras. Não faz parte da administração do Estado, sendo governado por suas próprias regras, em conformidade com a lei. Sua autoridade máxima é o conselho, composto por cinco membros nomeados pelo presidente, com a aprovação do Senado. Os mandatos são de dez anos, podendo haver recondução por igual período. O Executivo escolhe o presidente do banco entre os conselheiros. Ele tem mandato de cinco anos.
EUROPA – Inspirado no Banco Federal Alemão (Deutsche Bundesbank), o Banco Central Europeu (BCE) foi criado em 1998. Responde pela gestão do Euro, tem como objetivo a estabilidade dos preços na União Europeia e é considerado totalmente independente. A ressalva é que dificilmente poderia ter outra constituição, uma vez que administra interesses de diferentes países. Trabalha com os bancos centrais dos 28 países da UE e coordena a colaboração entre os dos 18 países que adotaram o euro. Possui três órgãos de decisão (Comissão Executiva, Conselho do BCE e Conselho Geral). Os seis integrantes da Comissão Executiva têm mandatos de oito anos, não renováveis, e são nomeados pelos dirigentes dos países da zona do euro. O BCE e qualquer de seus órgãos de decisão não podem solicitar ou receber instruções de instituições, organismos comunitários ou governos dos estados-membros.
O que assinalam os especialistas
“O Banco Central brasileiro hoje é autônomo. Metas de inflação, por exemplo, já são características de independência. O BC brasileiro de certa forma tem credibilidade e está fazendo o possível para manter a inflação sob controle. É importante lembrar que ela não necessariamente pode ser controlada pelos juros. Ainda em relação à independência, na prática, ela nem sempre se manifesta. Na crise de 2007/2008, os bancos centrais da Europa e dos Estados Unidos injetaram pesadamente liquidez e salvaram instituições a rodo. No Brasil há vários elementos que contribuem para uma inflação elevada e o governo fez uma opção no meu entendimento equivocada para controlar a inflação. Mas a proposta de independência do Bacen é equivocada”.
Fernando Ferrari Filho, professor titular do Departamento de Economia da Ufrgs. “A preocupação do BC brasileiro com outras variáveis é vista por alguns como interferência política. Só que, mundialmente, há um movimento generalizado de flexibilizar a questão de os bancos centrais independentes terem responsabilidade apenas com o controle da inflação. O BC brasileiro tem utilizado o intervalo de metas da inflação para, junto com ela, ajustar também outras variáveis. Porque buscar o centro da meta de inflação a ferro e fogo pode sacrificar o emprego. Diria que a proposta de Dilma Rousseff é de medidas graduais, mantendo a inflação dentro do intervalo e com aumento da produtividade. E a de Marina Silva inclui o chamado choque de credibilidade, no qual o ajuste recai sobre expectativas e sobre o emprego”.
Cecília Hoff, economista da FEE e professora da Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia da PUCRS.