ECONOMIA

Independente de quê?

A tese de um Banco Central sem controles chegou a dominar o debate eleitoral, mas o tema permanece obscuro para candidatos e eleitores. E divide economistas
Por Flávia Bemfica / Publicado em 10 de outubro de 2014
Independente de quê?

Foto: Enildo Amaral/Banco Central

O debate sobre independência é tão antigo quanto o próprio Banco Central, criado em 1964

Foto: Enildo Amaral/Banco Central

O tema esquentou a corrida eleitoral após Marina Silva, candidata do PSB à presi­dência, ter, em seu programa de governo, se comprometido em assegurar em lei a independência do Banco Central. O programa, po­rém, informa que o modelo da independência seria detalhado apenas depois das eleições. A presidente Dilma Rousseff (PT), candidata à reeleição, reagiu, assinalando que a proposta reflete uma visão da eco­nomia que não está dando certo em outras partes do mundo, em alusão expressa à Europa. O Banco Central Europeu (BCE) é referência em indepen­dência e tem como objetivo fundamental o controle da inflação. Mas sua configuração não impediu nem a crise e nem as altíssimas taxas de desemprego.

Desde que o debate surgiu na disputa presi­dencial, independência e autonomia, em relação ao Banco Central, não raro ganharam o mesmo signi­ficado. E a confusão do eleitor aumentou. Porque até os economistas divergem sobre o que é um BC autônomo e um independente. A literatura sobre o tema e os especialistas apontam para a existência de diferentes graus de independência.

Em tese, um Banco Central totalmente inde­pendente determina sozinho as metas da política monetária, supostamente não sofre interferências políticas, sua diretoria não pode ser demitida pelo chefe do Executivo e há mandatos fixos. Além disso, seu objetivo é um só: manter a inflação sob controle e a moeda estável.

Um menos independente, às vezes chamado por parte dos economistas de autônomo, decide como alcançar objetivos determinados pelo Exe­cutivo ou o Legislativo, e sua diretoria não tem mandato fixo, podendo ser demitida pelo chefe do Executivo. Além disso, sua preocupação não é só o controle da inflação, mas, também, variáveis como os níveis de emprego e de atividade econômica.

No Brasil, o debate é quase tão antigo quanto o próprio Banco Central, criado em 1964. Hoje o Bacen possui o que é definido como ‘autonomia infor­mal’ ou ‘autonomia de fato’, mas não de direito. A diretoria é escolhida pelo presidente da Re­pública, passa por sabatina no Senado e pode ser substitu­ída a qualquer mo­mento.

É o Bacen que determina a taxa de juros e a de câm­bio. A primeira é definida de forma a cumprir a meta de inflação. Esta, por sua vez, é estabele­cida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O CMN, composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do BC, é a autori­dade máxima do sistema financeiro do país e quem define a política monetária.

No debate brasileiro, os partidários da tese da independência defendem que ela aumenta a trans­parência e a eficácia das ações adotadas para o con­trole de preços. Que, além disso, garante a credibi­lidade do mercado na autoridade monetária se esta tem como único objetivo o controle da inflação e atua de forma independente às demais diretrizes do governo. Isso, por si só, já geraria uma credibilida­de inicial, que resultaria na queda dos preços antes mesmo de o BC implementar suas políticas.

Parte significativa do sistema financeiro também considera como incompatíveis os atuais objetivos múl­tiplos do Bacen. Apesar disso, o atual presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Murilo Portugal, declarou recentemente que o BC já fun­ciona com independência operacional há bastante tempo.

Os críticos da tese da independência total, por sua vez, elencam problemas. O primeiro, de que ela significa para o governo abrir mão da política eco­nômica e dar ao BC o status de poder independente, com o intuito de atender aos interesses do mercado. O segundo, que uma diretoria com mandatos fixos não garante a inexistência de acordos informais en­tre esta e o Executivo ou o Legislativo.

A tese da independência esbarra ainda na ten­dência de que, em países em desenvolvimento, ela não apresente os resultados esperados quando não há outros pontos de suporte às políticas para o con­trole da inflação. E, sobre a taxa de juros, no caso brasileiro, pesa o fato de ela se manter alta porque o país precisa de recursos externos para fechar as contas e, assim, a utiliza para atrair investimentos.

Como funcionam os Bancos Centrais que são referência em independência
EUA – O Federal Reserve (FED) decide qual a política monetária e seus instrumentos. Apesar de ser apontado muitas vezes como independente, o FED não tem como meta só os preços estáveis. Seu estatuto reza que persiga o equilíbrio monetá­rio, o pleno emprego e o crescimento sustentado. O presidente e o vice têm mandatos de quatro anos, não coincidentes com os mandatos presidenciais, e renováveis. São escolhidos pela Casa Branca entre a diretoria central, indicada pelo presidente dos EUA e aprovada pelo Senado. O FED deve explicações apenas ao Senado. A diretoria central só pode ser destituída por má conduta, crimes e outras ques­tões graves, e após votação no Senado. Apesar do aparato para conter as pressões externas, na crise de 2007/2008 o FED socorreu instituições financeiras dentro e fora dos EUA.

INGLATERRA – O Banco da Inglater­ra (BoE) tem autonomia operacional, apesar de ser apontado como independente principalmente em função da forma como é escolhida a diretoria. Quem decide a meta de inflação é o governo cen­tral. O BoE tem autonomia para alcançar as metas estabelecidas. É o governo que indica o presiden­te, cujo mandato é de oito anos. Seus quatro vices possuem mandatos de cinco anos, renováveis. Em função da crise financeira mundial, em abril de 2013 o BoE expandiu suas responsabilidades e deu início a um novo plano estratégico.

CHILE – O objetivo do Banco Central de Chi­le é a estabilidade da moeda. Ele estabelece a meta de inflação (na faixa dos 3% ao ano, com um inter­valo de tolerância de um ponto percentual acima ou abaixo), não está sujeito à fiscalização da Controla­doria-Geral da República, nem da Superintendên­cia de Bancos e Instituições Financeiras. Não faz parte da administração do Estado, sendo governado por suas próprias regras, em conformidade com a lei. Sua autoridade máxima é o conselho, composto por cinco membros nomeados pelo presidente, com a aprovação do Senado. Os mandatos são de dez anos, podendo haver recondução por igual período. O Executivo escolhe o presidente do banco entre os conselheiros. Ele tem mandato de cinco anos.

EUROPA – Inspirado no Banco Federal Ale­mão (Deutsche Bundesbank), o Banco Central Europeu (BCE) foi criado em 1998. Responde pela gestão do Euro, tem como objetivo a estabi­lidade dos preços na União Europeia e é conside­rado totalmente independente. A ressalva é que dificilmente poderia ter outra constituição, uma vez que administra interesses de diferentes paí­ses. Trabalha com os bancos centrais dos 28 países da UE e coordena a colaboração entre os dos 18 países que adotaram o euro. Possui três órgãos de decisão (Comissão Executiva, Conselho do BCE e Conselho Geral). Os seis integrantes da Comissão Executiva têm mandatos de oito anos, não reno­váveis, e são nomeados pelos dirigentes dos países da zona do euro. O BCE e qualquer de seus órgãos de decisão não podem solicitar ou receber instru­ções de instituições, organismos comunitários ou governos dos estados-membros.

O que assinalam os especialistas
“O Banco Central brasileiro hoje é autônomo. Metas de inflação, por exemplo, já são características de independência. O BC brasileiro de certa for­ma tem credibilidade e está fazendo o possível para manter a inflação sob con­trole. É importante lembrar que ela não necessariamente pode ser controlada pelos juros. Ainda em relação à independência, na prática, ela nem sempre se manifesta. Na crise de 2007/2008, os bancos centrais da Europa e dos Estados Unidos injetaram pesadamente liquidez e salvaram instituições a rodo. No Bra­sil há vários elementos que contribuem para uma inflação elevada e o governo fez uma opção no meu entendimento equivocada para controlar a inflação. Mas a proposta de independência do Bacen é equivocada”.

Fernando Ferrari Filho, professor titular do Departamento de Economia da Ufrgs. “A preocupação do BC brasileiro com outras variáveis é vista por alguns como interferência política. Só que, mundialmente, há um movimento genera­lizado de flexibilizar a questão de os bancos centrais independentes terem res­ponsabilidade apenas com o controle da inflação. O BC brasileiro tem utilizado o intervalo de metas da inflação para, junto com ela, ajustar também outras variáveis. Porque buscar o centro da meta de inflação a ferro e fogo pode sacri­ficar o emprego. Diria que a proposta de Dilma Rousseff é de medidas graduais, mantendo a inflação dentro do intervalo e com aumento da produtividade. E a de Marina Silva inclui o chamado choque de credibilidade, no qual o ajuste recai sobre expectativas e sobre o emprego”.

Cecília Hoff, economista da FEE e professora da Faculdade de Adminis­tração, Contabilidade e Economia da PUCRS.

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