Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Praticado por camburões, táxis e até automóveis de passeio, o transporte rodoviário na região Metropolitana só foi formalizado em 28 de dezembro de 1956, por meio da Lei 3.080. Determinava em seu artigo 1º que a exploração do serviço ocorreria de forma direta por concessão ou mediante autorização do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer). Na concessão, o prazo determinado ficava entre dez e 20 anos, podendo ser prorrogado por igual período caso o serviço fosse considerado de “boa qualidade ou sem denúncia até seis meses antes do vencimento do contrato”. Na autorização, os permissionários assinavam com o Estado acordo de um ano, sendo necessário que para cada linha explorada fosse firmado um termo de compromisso. Já a concessão por prazo indeterminado durava enquanto a empresa “bem servia”. “Pela lei estadual de 1956, de 62 anos atrás, sempre teve que ter licitação e concorrência”, sublinha a promotora Luciana Maria Ribeiro Alice, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público. Autora das 20 ações que tramitam no Judiciário, todas contestadas pela Procuradoria Geral do Estado (PGE), ela ressalta que a Constituição Federal (CF) de 1988 trouxe a obrigatoriedade da licitação para a exploração dos serviços de transporte. Porém, nada mudou. As concessões seguiram apenas como uma meta, não uma obrigação. Em 1998 outra Lei estadual, a 11.127, instituiu o Sistema Estadual de Transporte Metropolitano Coletivo de Passageiros (SETM) e retirou do Daer as concessões, permissões e autorizações. Repassadas à Metroplan, cria do governo do então emedebista Antônio Britto. Mudança que para o MP/RS manteve privilégios na prestação do serviço, com contratos prorrogados por mais 20 anos, mesmo após a CF, sempre sem licitação, escorados em leis estaduais inconstitucionais e conflitantes com as federais. “E além da lei estadual outras duas normas federais, anteriores à Constituição, exigiam licitação e foram desconsideradas, afora a própria Constituição. E depois da CF, tem ainda a Lei das Concessões em 1995, com alteração em 2007 pela Lei nº 11.445, que estabeleceu para algumas hipóteses, em determinadas condições, uma sobrevida. Mas uma sobrevida (aos contratos) que iria no máximo até 31 de dezembro de 2010. Estamos em 2018. Qualquer norma que se aplique a situação é totalmente ilegal, inconstitucional”, enfatiza Luciana. Em seu trabalho de lupa e cata das irregularidades, a promotora concluiu que o tempo de criação e duração dos contratos é uma estrada com neblina forte e mal sinalizada. “Há contratos que são antes da Constituição e outros bem depois dela. Temos transferências de linhas depois da Constituição e a situação que se apura, de maneira geral, é que essas concessões vêm sendo alteradas. Linhas, horários, concessões. São feitas distribuições de linhas em consórcios privados e que legalmente não existem, porque a lei que regulamenta o transporte teria que ter o consórcio licitado. A lei fala em linhas”, frisa. No bojo das liminares protocoladas no Judiciário é pedido não apenas o reconhecimento da extinção, que decorre do fato da data, mas a invalidade dos contratos e a clandestinidade do serviço.
O quadro do negócio
Chefe do Departamento de Gestão do Transporte Metropolitano, da Metroplan, Danilo Rossi Landó ilustra que no total do transporte rodoviário metropolitano e de outros aglomerados urbanos, sob a responsabilidade da Metroplan, são 1,3 mil linhas operadas em 72 municípios. Desses 72, 34 encravados na região Metropolitana. Do valor da tarifa, reajustada em 16 de junho último em 8,94% para a RMPA e em 18,91% para passagens de longo e suburbano do interior, praticamente 98% é o que fica com as empresas, com outros 2,17% cabendo ao Estado. Desse percentual ao poder concedente, 60% vai para os cofres da Metroplan e 40% tem como destino a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados (Agergs). “São várias sessões tarifárias distintas, cada linha tem uma tarifa. Mas o que ficou para nós Metroplan em 2017, de recursos com a tarifa, multas, fretamento, taxa de laudo de vistoria, foram R$ 10,700 milhões”, enumera Landó. Já o gerente da ATM, Erico Michels, revela que dos quase 100 milhões de passageiros que passaram pelo sistema no ano passado, a receita das empresas não teria alcançado os R$ 500 milhões.
Falta de regras favorece as empresas
Diretor-presidente da Metroplan desde o início do governo Sartori, Pedro Bisch Neto admite que o Estado está contra a parede. “O problema é o seguinte. Pra licitar tem que dizer o que vai licitar. A concessão? Mas pra fazer o quê? O pressuposto disso é que tu tenhas um modelo que não existe. Então, o que tem que ser feito pra melhorar o que tem. Porque o que tem na verdade é uma coisa tácita e por linha, é uma coisa antiga, da década de 50”, justifica. Argumenta que licitar é seu desejo desde que assumiu a atual função, mas os labirintos e morosidade da burocracia estatal o impediram por duas vezes. “Perdi um ano e pouco numa licitação que deu problema, que ia judicializar. E se vai pra justiça eu vou perder controle e prazo. Aí revoguei”, explica Bisch Neto. Trajeto tortuoso e esburacado que tem um olhar depurativo de Luciana Maria Ribeiro Alice, para quem a falta de regras favorece apenas as empresas. “Para uma licitação, se não há contratos, não há normas que regulem. E aí a situação fica com uma desregulação de um sistema de transporte que é direito social e essencial, e que se sabe que há defeitos”, critica.
“O Judiciário anda nervoso”
Gerente da Associação dos Transportadores Metropolitanos (ATM), Erico Michels rebate a denúncia de clandestinidade do serviço. “Não é um serviço clandestino, sem documentação. Há um histórico e documentos assinados, contratos de concessão que vinham se renovando. Durante muito tempo a gente discutiu, inclusive até em juízo, que a possibilidade de renovação ela existe. A Constituição dá essa possibilidade. Mas o Judiciário de uns tempos para cá entende que todos os contratos que nasceram antes da Constituição não podem ser renovados. E por isso o Judiciário anda nervoso e o Ministério Público basicamente quer isso”, contrapõe Michels. Observa que o Estado foi quem sempre determinou os parâmetros de especificação do serviço. “Não dentro do contrato, mas do seu poder em estabelecer condições de trabalho. Sei que hoje em dia os contratos são mais complexos do que naquela época, dizem quais são os padrões, índices, a mensuração. Às vezes, e é uma posição pessoal minha, mais atrapalham do que ajudam”, opina.
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Para TCE a situação é ilegal
A partir das polêmicas da tarifa e da concessão de ônibus em Porto Alegre, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) passou a acompanhar com atenção o transporte na região Metropolitana. E concluiu que o sistema roda mesmo na contramão. “O fato é que boa parte ou quase a totalidade das linhas tem atuado já em caráter precário, na medida em que os prazos de concessão já estão vencidos. Necessitaria que houvesse uma relicitação desse serviço, situação que não vem sendo verificada e, por conseguinte, entendida como ilegal”, afirma o auditor público externo e coordenador do Serviço de Auditoria Estadual 1 (SAE 1), do TCE-RS, Roberto Tadeu Costa de Souza Junior. Ilustra que em 2011, primeiro ano que a matéria veio à Corte em nível de relatório, um total de 211 linhas de um conjunto de 28 empresas tinha contratos expirados. Em 2016, último ano do relatório, o número havia subido para 301 linhas vencidas. “O que daria mais ou menos 99% do total das linhas e abrangeria todas as empresas do sistema”, relata Souza Junior, mas pontuando que as ilegalidades podem ter começado muito antes de 2011. Todos os relatórios sobre o sistema, exceto o de 2016, já foram julgados. “As decisões têm imposição de multa padrão (R$ 1.250,00) a Metroplan, aprovação das contas como regulares, porém, com ressalvas. E recomendação ao órgão que procedesse às medidas necessárias para corrigir os apontamentos levantados à época, dentre os quais as linhas vencidas. Isso é o que está ao nosso alcance. Apontar ilegalidade na prestação do serviço”, explica Souza Junior.
Metroplan contrata estudo que pode virar arquivo
Foto: Divulgação
A pressão do MP/RS para cima da Metroplan parece ter surtido efeito inicial. Na quinta-feira, 21 de junho, a Fundação anunciou a assinatura de contrato com a paulista Logit Mercosul Engenharia Consultiva. O valor acordado entre a Metroplan e a Logit para o serviço é R$ 2.870.000,00. Em prazo de até um ano, a empresa fará um diagnóstico completo do sistema. Informações que permitirão um esboço da futura modelagem. O levantamento deverá esclarecer a quantidade de coletivos, o tempo de cada viagem e a oferta de terminais de passageiros. A exigência é que aponte ainda a compatibilidade do sistema estadual com os municipais e elimine a sobreposição de linhas para gerar praticidade e, talvez, uma possível redução tarifária. A iniciativa, entretanto, é vista com reticências pela promotora Luciana Alice. “O certo é que a reorganização do sistema vai ficar para a próxima administração. E que não é obrigada a endossar os atos da administração anterior”, comenta ela, ao entender que no diagnóstico já fica pressuposta a alteração legislativa. “Eu teria que fazer todo o estudo e depois propor a Assembleia Legislativa essa alteração de lei. Estamos numa legislatura. Isso é fato futuro incerto, porque o próximo administrador pode resolver não fazer a alteração ou não fazer desse jeito. Subordinar a licitação do transporte depois de 30 anos da Constituição a um fato que não se sabe quando será, isso é o que está posto. Na verdade não há garantia de que serão finalizados e utilizados (os estudos) e se atinja o objetivo de alterar o sistema como pressuposto”, alerta Luciana.
Metroplan na UTI e as contradições do governo Sartori
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Também autora da Ação Civil Pública – de novembro de 2017 e acatada pela Justiça – que impede, por enquanto, o fechamento da Metroplan, tentado já há dois anos pelo governo Sartori e sob a bandeira do ajuste fiscal, a promotora Luciana Alice entende que a Fundação estar respirando na UTI expõe as contradições do governo. “Impetrei a ação porque não está regrado pelo governo quem fará o trabalho da Metroplan, especialmente em função do transporte metropolitano. A Constituição diz que lei regulará o sistema. Aí vem uma lei estadual que autoriza extinguir a Metroplan, mas não vem nem outra lei que reorganize o sistema. E não determina a extinção, a autoriza. E o que se espera? Que organize antes. A ideia, parece, é extinguir por extinguir”, frisa Luciana. Para piorar, relata que o governo editou ainda um decreto sobre o tema. “Quando a lei diz que tem que ser lei e passando a responsabilidade do transporte para a Secretaria de Obras. E aí eu pergunto: tem fiscal de tráfego nas Obras? Então na verdade não posso pegar uma atividade que hoje é responsável pelo trânsito mensal de 11 milhões de passageiros e lançar no caos, simplesmente desconstituir isso”, argumenta.
Contrato vencido
Uma das melhores ilustrações do caducamento de contratos no sistema metropolitano de ônibus está na empresa Central S/A, com sede em Novo Hamburgo. Uma das beneficiadas com “concessões” de linhas outorgadas originalmente pelo Daer, segundo o MP/RS obteve prorrogações dessas concessões de forma ilegal e inconstitucional por mais 20 anos, na década de 1980 e 1990, além de aditivos que implicaram verdadeira alteração do serviço, com modificações de itinerário e outorga de novas linhas, sempre sem licitação. Em síntese, os prazos contratuais de todas as “concessões” de linhas à Central se ultimaram em 2012, data em que todos estavam expirados, conforme documentos fornecidos pela Metroplan à Promotoria.
Empresários querem regras claras e remuneração justa
Sobre a possibilidade da construção agora de um Plano Diretor ao sistema de ônibus metropolitano, antecipando uma futura licitação, a ATM garante que seus associados aguardam por parâmetros técnicos. “Nós, as empresas, nos sentimos obrigados a continuar prestando o serviço, porque não dá pra entregar o serviço. Por outro lado, aguardamos que esses editais sejam construídos segundo uma lógica e uma técnica, compatíveis com o serviço que aí está, que a gente possa se habilitar. Estamos nos preparando para participar do processo licitatório, sem nenhuma dúvida”, assegura Erico Michels. Mas, pontua o que considera essencial ao futuro certame. “Ele deve deixar claro as regras do jogo, para ambas as partes. Uma empresa privada, diferente da pública, tem que entregar seu produto segundo a especificação e deve fazê-lo. Mas só funciona quando tem a remuneração justa do seu capital. Justa é uma palavra importante pros dois lados. E o que se espera é isso, qual a regra justa de remuneração de capital e qual a regra justa de se construir um serviço que permita que isso continue acontecendo”, pondera. Para o diretor-presidente da Metroplan, Pedro Bisch Neto, o pé atrás das empresas se explica no fato de nunca terem participado de uma licitação. “Havia, antigamente, um medo que viessem os grandalhões de fora para contratar. Mas os grandalhões viraram pequenões. No Rio há dez empresas em recuperação judicial. A crise do setor é cavalar. No Brasil, idem”, frisa Bisch Neto. Que também aponta gargalos que torpedeiam o sistema. “Um deles é o excesso de regras. Exemplo é o negócio das gratuidades, que é uma sacanagem. Os legislativos determinam que jovenzinho, criancinha, velhinho não vai pagar mais. Eles mandam a conta pros outros passageiros, legislando e pesando a tarifa dos outros. Em Porto Alegre já chega a ser dois por um. Cada dois leva um nas costas. Daí a tarifa alta. Outra coisa é retirar cobradores, deixar só cartão, é coisa óbvia. Isso é 13% da tarifa”, defende ele.