O Brasil à beira da recessão
Foto: Igor Sperotto
A sucessão de indicadores ruins, a queda nos rendimentos, a inadimplência alta, a manutenção das taxas abusivas de juros e a continuidade de 12,8 milhões de pessoas desempregadas fazem com que o país comece o segundo semestre com pouca esperança de alguma recuperação da economia em 2019. Na reduzida fatia da população que tem dinheiro, sejam pessoas físicas ou jurídicas, não há segurança para gastar nem investir.
Não bastassem os números, os atos e as declarações do presidente da República minam a confiança de investidores brasileiros e internacionais. A estagnação já começa a puxar para baixo também as projeções para 2020. O cenário é agravado pela constatação de que o governo entra no oitavo mês sem anunciar um plano que garanta a sustentabilidade, ou que desafogue a economia no curto prazo. Governistas e parte do empresariado falam em retomada lenta. Mas analistas econômicos tratam de paralisia. Os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgados pelo IBGE em 31 de julho, com os números do mercado de trabalho, refletem a economia real.
A Pnad mostrou que, no segundo trimestre, o desemprego recuou para 12%. Era 12,7% no primeiro. E que o número de empregados com carteira assinada subiu 0,9% na comparação entre os trimestres. Por outro lado, a série teve dois recordes negativos: a população disponível para trabalhar mais horas, chamada de subocupada, chegou a 7,4 milhões; e o número de trabalhadores por conta própria foi a 24,1 milhões. Além disso, não há variação significativa no número de desalentados: são 4,9 milhões os que desistiram de procurar emprego; os empregados sem carteira assinada subiram para 11,5 milhões (aumento de 3,4%), e o rendimento médio real habitual caiu 1,3%, passando de R$ 2.321 no primeiro trimestre para R$ 2.290 no segundo. É a quarta queda sucessiva nos rendimentos entre trimestres.
Neste cenário, a liberação do saque de R$ 500,00 de cada conta do FGTS a partir de setembro terá pouco efeito sobre o consumo. A aposta dos analistas é de que as pessoas usem o dinheiro para pagar parte das contas em atraso, já que elas são muitas. A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), mostrou que, em junho, aumentou pelo sexto mês consecutivo o percentual de famílias brasileiras endividadas, alcançando o maior patamar desde julho de 2013. Em valores, a média do endividamento do brasileiro é de R$ 3,2 mil. As dificuldades são agravadas pela insegurança mesmo entre os que estão empregados e a saturação de setores para além do mercado tradicional, antes apontados como válvula de escape para fazer a economia girar.
“Percebo duas mudanças que diminuem os rendimentos para quem trabalha em plataformas como a que eu atuo: a queda de movimento nas ruas e o desemprego. O desemprego leva mais pessoas a este tipo de trabalho, o que acaba saturando a oferta. A estimativa é de que existam, na região metropolitana de Porto Alegre, entre 35 mil e 40 mil motoristas cadastrados somente na plataforma da Uber. O aumento do número de motoristas diminui o faturamento de todo mundo, porque as corridas acabam diluídas. Antes eu chegava a um faturamento entre R$ 300,00 e R$ 350,00 ao dia. Hoje, para chegar aos R$ 250,00, é bem difícil, muitas vezes tenho que trabalhar além da carga que eu me determinava como meta. Trabalhava de oito a 10 horas antes. Agora são de 10 a 12 horas, às vezes mais, para ter um faturamento interessante”, explica o motorista de aplicativo Ronan Martins.
Economistas de diversas vertentes consideram o futuro pouco promissor
A situação preocupa diferentes correntes de economistas, porque projeta um futuro pouco promissor caso o governo siga sem promover medidas de estímulo, como investimentos em obras de infraestrutura e mudanças significativas nas taxas de juros ao consumidor, e mantenha uma política de cortes de investimentos. “É um círculo vicioso. A massa de rendimentos não está crescendo de forma sustentável, as empresas estão com capacidade ociosa elevada e, no curto prazo, não se vê aumento no investimento privado, justamente porque a capacidade ociosa é alta”, diz o professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Unisinos Marcos Tadeu Lelis. Ele explica que existe um encadeamento: o país está há praticamente cinco anos com a economia muito ruim, então a demanda cai, as empresas investem menos, os estoques diminuem, a capacidade de oferta fica menor e uma grande massa de desempregados se concentra na faixa etária dos 19 aos 24 anos. “Se o desemprego é alto nesta faixa, ela não consegue se preparar para o mercado. Veja, estamos falando do futuro. Sem estímulo, uma retomada vai ficando cada vez mais difícil. E o governo não deu mostras até agora de ter um plano, uma ‘espinha dorsal’ para a economia”, elenca.
Lelis se refere a um debate que cresce não apenas entre analistas econômicos, mas também entre todos os que pesquisam diversos indicadores sociais, como saúde, educação e mundo do trabalho. A preocupação é com a perpetuação de uma situação de crise que pode resultar em danos de longo prazo e estreitar as alternativas de retomada do crescimento, em função de um efeito do tipo dominó, que vai exigindo soluções mais complexas e abrangentes. E para o qual as tradicionais medidas de ajuste fiscal, implementadas no país de forma cada vez mais rigorosa desde o segundo governo de Dilma Rousseff, não têm se mostrado eficientes.
Os pesquisadores têm motivos bastante concretos para projetar os riscos futuros, que extrapolam em muito questões ideológicas ou a crença de que reformas como a previdenciária e a tributária podem tirar o Brasil do atoleiro. Conforme os levantamentos do Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace), a última recessão da economia (tecnicamente, dois trimestres consecutivos de queda do PIB) começou no segundo trimestre de 2014 e acabou no quarto trimestre de 2016. Mas, depois dela, o crescimento se manteve em patamares tão insignificantes (média de 1% ao ano), que o PIB continua menor do que era antes daquela crise: passados cinco anos, é 5,3% inferior. Com muito otimismo, os números voltariam ao patamar do primeiro trimestre de 2014 somente em 2022. A renda per capita, diretamente relacionada à produção da riqueza, fechou o ano passado 8% abaixo daquela do início de 2014. Esse longo período de renda per capita abaixo de um ponto anterior é o que parte dos economistas define como um estado de depressão econômica tão enraizado e duradouro que passa a ser uma constante da economia, abalada pela grande dificuldade que é recuperar tanto capital humano como físico despreparados, desatualizados ou deteriorados pelo fato de não serem usados.
Comércio e serviços operam no limite
“O pequeno comércio, o pessoal de serviços, está todo mundo no limite. Não há nenhuma medida para a economia e nem para o emprego. A gente sabe porque, quando a crise chega no contador, é porque a situação é muito séria”, resume o contador e escritor Marcelo Benvenutti. Segundo ele, no dia a dia do trabalho, é possível observar duas situações que expõem o caráter duradouro da crise e o pessimismo em relação ao futuro. A primeira se caracteriza por clientes que simplesmente deixam de aparecer, ficam em débito com o próprio contador, abandonam o CNPJ e passam a acumular dívidas na Receita Federal. A segunda, bem característica do momento, é o número expressivo de pequenos empreendedores que recebem de empregados propostas para que sejam demitidos, com acordo para a retirada de percentuais do FGTS e da multa, de modo a conseguirem um volume de dinheiro que lhes permita pagar contas em atraso e voltar a ter algum poder de consumo. Na sequência, estes trabalhadores continuam trabalhando, mas sem carteira assinada.
As situações envolvendo pequenos e médios empreendedores traduzem, na prática, tanto o aumento da informalidade registrado pelo IBGE como a justificativa do governo para a liberação das contas do FGTS: uma forma de coibir os acordos de demissão para a retirada dos valores do Fundo. E expõem a dificuldade para pagar contas também entre pessoas jurídicas. Em junho, voltou a crescer a taxas mais elevadas o volume de empresas com contas em atraso e registradas em cadastros de inadimplentes, que vinha desacelerando no país. No sexto mês do ano, a alta na quantidade de pessoas jurídicas negativadas foi de 4% em relação ao mesmo período de 2018.
Cortes do governo agravam o cenário e não ajudam
“O Brasil tem escassez de demanda. Há ausência de consumo e de investimento. Junto com isso, o governo vem cortando gastos, o que só agrava o cenário, porque não ataca o problema, que é a demanda. Ela não vai se recuperar em função do mercado externo, porque o cenário internacional não é de crescimento. O brasileiro está mais pobre e o governo não tem plano nem de recuperação do crescimento e nem do emprego”, projeta o professor do Instituto de Economia e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da Unicamp, Pedro Rossi. Conforme ele, a política do governo, calcada em reformas estruturais e privatizações, não tem efeito no curto prazo e, se tiver, será negativo. “O que precisamos é de estímulo de demanda, e isso passa por gasto e investimento público. Mas, infelizmente, dado o retrospecto dos integrantes do governo, essa inversão no diagnóstico da crise é muito remota”, lamenta.
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