Agronegócio terá que buscar certificação para recuperar credibilidade
Foto: Reprodução
A crise do desmatamento e das queimadas na Amazônia não gerou somente manchetes internacionais negativas sobre o Brasil. O impacto nos negócios já é sentido por, ao menos, um setor. A VF Corporation, dona de 18 marcas de calçados e acessórios, suspendeu a compra do produto brasileiro até que seja garantido o respeito às práticas ambientais de produção. Na Europa, a Finlândia defendeu o boicote à carne bovina brasileira, e França e Irlanda já se opuseram ao acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. Isso sem falar nos protestos contra o governo Bolsonaro em diversas capitais do mundo. Para o professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em economia do meio ambiente Carlos Eduardo Young, o agronegócio está pagando o preço por ter apoiado um governo que sempre desprezou a preservação ambiental. Doutor em Economia pela Universidade de Londres, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED) e professor colaborador do Programa de Ciências Ambientais da Universidade Estadual do Mato Grosso (PPGCA-UNEMAT), Young tem vasta experiência em ensino e pesquisa na área de Economia, com ênfase em Economia do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais, e coordena o Grupo de Economia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Gema – IE/UFRJ). “Agora o agronegócio vai ter que buscar por conta formas de recuperar a credibilidade”, afirma nesta entrevista.
Extra Classe – Qual é o impacto da repercussão das queimadas da Amazônia na economia do Brasil?
Carlos Eduardo Young – Nas últimas décadas, o Brasil optou por uma economia mais direcionada ao livre mercado, e, com isso, cada vez mais voltamos a nos pautar pela produção de matéria-prima, de commodities, com uma queda na participação da indústria. Isso significa que estamos voltando a ser uma economia da República Velha, do século 19. Ser uma economia baseada em produtos primários para exportação significa que o elemento dinamizador da economia não está mais dentro, mas fora do país. Ou seja, se o preço das commodities sobe, vai tudo bem. Se o preço das commodities ou a demanda internacional caem, a gente vai para o buraco.
Foto: Reprodução
EC – Mas esse mercado de commodities está mais complexo hoje em dia…
Young – Ao contrário do século 19, houve mudanças na estruturação desses mercados. A competitividade não depende mais apenas de ter um preço baixo. Ninguém no passado deixava de comprar café se o café era produzido por escravos. Hoje em dia, você tem um comportamento muito mais ativo por parte do consumidor, que se preocupa com a forma como esse produto foi produzido. Isso é uma coisa relativamente nova. Tanto a União Europeia como os EUA e os demais países desenvolvidos têm se preocupado crescentemente em incluir cláusulas socioambientais em seus acordos comerciais. E a preocupação do ponto de vista desses países é que não haja o dumping ambiental, que é quando um país consegue produzir um produto mais barato por ter menos cuidados com o meio ambiente. Isso significa que a competitividade para esses mercados não é mais como era no passado, quando bastava apresentar um produto a baixo custo que seria atraente. Além de ter um custo competitivo, é preciso ter salvaguardas ambientais.
EC – De que forma essas questões podem afetar o acordo entre Mercosul e União Europeia?
Young – Houve o acordo entre as instituições da União Europeia e do Mercosul, mas ele ainda precisa ser ratificado pelos países-membros. Então, existem duas possibilidades. Uma é o acordo não sair. Outra é o acordo sair, mas se for demonstrado que a competitividade brasileira é obtida de forma ambientalmente inadequada, alguém pode entrar com uma ação e proibir a exportação brasileira. Porque mesmo com o acordo ratificado, ele prevê que quem estiver produzindo de forma ambientalmente inadequada pode sofrer sanção comercial.
EC – Como o senhor disse, além das barreiras impostas pelos países, há o risco de os próprios consumidores começarem a boicotar os produtos brasileiros.
Young – Isso já está acontecendo. Não é à toa que algumas empresas de couro já estão se manifestando, independentemente de governo. Isso era previsto, porque não adianta querer regredir a uma economia do século 19 se a sociedade global está no século 21. E em uma economia do século 21 é inadmissível o processo de queimada.
EC – E quais são os setores mais impactados por este tipo de boicote internacional?
Young – Este tipo de problema vai ser crescente para as atividades que sejam identificadas com problemas ambientais. Por exemplo, tudo que está relacionado à pecuária: carne, couro… Porque a pecuária é, de longe, o maior fator de pressão para o desmatamento. As queimadas que a gente vê na televisão são basicamente para expansão de área para pastagem. Isso não significa que as áreas de cultivo estejam isentas. Grãos, biocombustíveis… Esses setores costumam argumentar que não desmatam para plantar, que utilizam áreas já desmatadas. Mas essas áreas já desmatadas onde esses cultivos se expandem estavam sendo ocupadas pela pecuária. Vamos supor o seguinte: há um aumento na demanda de soja, de milho, de cana. Esses produtores vão procurar expandir o seu cultivo tirando áreas que eram antes de pastagem. O que acontece com o rebanho? Ele não é eliminado. Como o pecuarista de quem foi comprada a pastagem se capitalizou, vendendo a terra a um preço alto para cultivo, com esse valor ele compra áreas muito mais baratas e muito maiores na floresta, porque a terra com floresta é mais barata. Você imagina esse processo como se fosse um trem. Você tem uma locomotiva lá na frente puxando, mas tem outra locomotiva lá atrás empurrando. Isso significa que essa crise na Amazônia coloca em risco a competitividade dos produtos brasileiros, mesmo que tenham sido plantados em áreas já desmatadas.
EC – De que forma o próprio setor agrícola brasileiro – em especial, a soja e a pecuária – pode se proteger dos boicotes internacionais?
Young – Lamento, ele vai ter que certificar. Já que o sistema oficial não funciona, ele vai ter que buscar uma certificação socioambiental. Isso aconteceu com o setor de papel e celulose no final dos anos 1980, início dos anos 1990, que estava sendo acusado de desmatar para fazer papel. E havia a concorrência do papel reciclado. O setor investiu pesadamente em manejo florestal e certificação ambiental. É preciso contratar alguém que tenha credibilidade, visto que um dos grandes problemas que as instituições federais estão sofrendo hoje é perda de credibilidade. Quando o sujeito diz que o maior desmatador da floresta são as ONGs, significa que essa pessoa não tem nenhuma preocupação de certificar o que está falando. Então eu vou ter que contratar uma certificação em separado e, para isso, já existem selos para produtos de floresta ou madeira. É isso que o produtor de soja, de carne, de açúcar vai precisar fazer no Brasil: demonstrar que a sua atividade não está contribuindo para o desmatamento nem direta nem indiretamente. Essa é a melhor saída. E escolher candidatos melhores para apoiar. E isso foi dito na época da campanha, que o retrocesso ambiental seria um tiro no pé do próprio agronegócio. Porque, na verdade, a proteção florestal é uma estratégia de competitividade desse setor.
Foto: Victor Moriyama / Greenpeace
EC – O agronegócio não é um grupo homogêneo. Quem está ganhando e quem está perdendo com o que acontece na Amazônia?
Young – Quem está ganhando é quem está conseguindo expandir a sua área de propriedade, está conseguindo terra de graça ou a um custo muito baixo às custas da floresta, e está, com isso, aumentando seu patrimônio. Esse é, tipicamente, o pecuarista extensivo, de baixa produtividade e voltado ao mercado doméstico. Quem perde é todo exportador que está destinado a um mercado que tenha uma preocupação ambiental, e que vai ser obrigado agora a adotar algum tipo de medida para provar que ele não está contribuindo com esta insanidade. Existem várias certificações ambientais. Eles vão ter que se adequar a alguma já existente ou criar um tipo de certificação para um produto que ainda não tem, como a carne. Existe a Alianza del Pastizal aí no Rio Grande do Sul, que emite um selo para produção de gado no pampa nativo. Essa é uma forma. Esse gado não está desmatando, ele é criado em uma pastagem natural. Existe no Mato Grosso a Aliança da Carne, que está tentando estabelecer uma certificação para dizer “nós produzimos respeitando o Código Florestal sem desmatar”. O maior problema de desmatamento na questão da pecuária é que a taxa de lotação da pastagem é muito baixa. Existe muito potencial de expansão da pecuária com métodos mais intensivos. A gente não precisa de desmatamento para ser competitivo agora. Quem ganha com isso é quem está a fim de ganhar terra pagando um preço mais baixo.
EC – Ministros e o próprio presidente Bolsonaro afirmam que os países europeus estão exagerando a gravidade das queimadas para ter vantagens econômicas. O senhor concorda com isso?
Young – As declarações do presidente Bolsonaro são infundadas. Disse que foram as ONGs que desmataram, disse que não havia desmatamento, ou seja, não há nenhuma consistência no que ele fala. É bem antigo o argumento de que, quando os países desenvolvidos fazem esse tipo de coisa, isso seria um neoprotecionismo, porque, na verdade, eles estariam cobrando práticas que eles próprios não adotam. Ou seja, o interesse deles não seria genuinamente ambiental, mas uma desculpa para proteger o seu próprio mercado. E a União Europeia tem, de fato, uma tradição de proteger o seu produtor, como, aliás, tem os EUA e todos os países. Contudo, em primeiro lugar, de fato a União Europeia tem agido de forma bastante consistente para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Só para dar um exemplo, as emissões automotoras estão caindo, o carro elétrico e híbrido está sendo estabelecido e há um forte desestímulo ao automóvel particular. O motor a explosão será banido da maior parte dos países europeus até 2030, já há datas estabelecidas para isso. Em segundo lugar, boa parte do tipo de produto que está sendo expandido com esse desmatamento nem é para o mercado internacional, é para o mercado doméstico. O grosso da pecuária brasileira e da madeira extraída da Amazônia é para consumo doméstico. Então, o que existe, na verdade, é uma tentativa de justificar, dizendo que os países desenvolvidos estão agindo de forma incoerente. De um jeito ou de outro, isso não resolve o problema. Eles não estão sendo incoerentes no sentido de que eles têm políticas de fato para controlar os gases do efeito estufa. E as emissões de gases do efeito estufa na Europa são de fonte energética, não de desmatamento. O desmatamento na Europa aconteceu até o século 19. Nos últimos 100 anos, a área de floresta aumentou.
Foto: Acervo Pessoal
EC – O presidente Bolsonaro proibiu por 60 dias o uso do fogo na Amazônia? Isso é suficiente para acalmar os mercados internacionais?
Young – Essa medida é uma demonstração de que o presidente estava errado. Se você pegar as declarações do presidente até meados de agosto, o discurso oficial do governo federal era de que não havia nada de excepcional no desmatamento, por isso o presidente do Inpe foi demitido. Agora, por que 60 dias? O ciclo do fogo está associado ao período da seca. O pico do desmatamento já aconteceu, é julho e agosto. Setembro ainda tem, outubro já começa a ter um sistema de chuvas fortes e as queimadas caem muito. Então, o que você está tentando é evitar uma tragédia ainda maior. Agora, está muito atrasado, isso deveria ter sido adotado antes, quando os alertas foram dados. O que pode se fazer agora é para o ano que vem. Reativar o controle ambiental, que foi fortemente castigado, restabelecer instrumentos de proteção e de apoio àqueles que defendem a floresta. Isso inclui também aqueles que trabalham com Unidades de Conservação e Terras Indígenas e que foram fortemente criticados.
EC – A floresta em pé é um ativo econômico?
Young – O Brasil se chama Brasil por quê? Por causa da madeira do pau-brasil. Madeira sustentável, serviços ecossistêmicos… A floresta é nossa identidade, tem um valor cultural, social, um valor de vegetação, de turismo, mantém o estoque de carbono, regula a água. A pergunta deveria ser: por que eu tenho que desmatar até o último limite? De onde vem essa loucura de que todo território brasileiro tem que ser convertido necessariamente em pastagem e cultivo? A expansão do agro sem preocupação ambiental levou ao desenvolvimento social no Brasil? O setor da agropecuária desemprega mais do que qualquer outro hoje no Brasil. Infelizmente, do jeito que está hoje, o agro é o setor que mais desemprega, mais concentra riqueza, mais subsídio recebe. Como isso pode ser a saída do Brasil? Eu não tenho nenhuma dúvida de que o setor agropecuário vai pagar o preço por apoiar políticos que promoveram o desmonte da política ambiental. Quem pariu Mateus que o embale.