Governo deixou 99% das empresas sem políticas efetivas
Foto: Igor Sperotto
Cinco meses após a confirmação do primeiro caso de coronavírus no Brasil e quatro desde o início do afastamento social e das restrições de atividades, o país segue sem políticas efetivas para garantir algum futuro a micro e pequenos empreendimentos. Não há pesquisa de fôlego sobre o quanto a anunciada ‘quebradeira’ impactará. Mas vai. Conforme levantamento do Sebrae, pequenos e médios representam 99% do total de CNPJs e respondem por 52,2% dos empregos formais. As iniciativas existentes, como concessão de crédito, reduções de jornadas e salários, assim como a suspensão de contratos de trabalhadores são meramente emergenciais e aceleram a recessão.
Há hoje, conforme dados da Receita Federal, 15,1 milhões de empresas optantes pelo Simples, dois terços delas (10,1 milhões) de microempreendedores individuais, os chamados MEIs: negócios tocados individualmente ou que possuem até um funcionário.
O RS é o estado com o quinto maior número de optantes pelo Simples no país, com 1 milhão de empresas com este enquadramento, das quais 617.467 são MEIs. De governos, esses empresários ouvem que precisam se adequar a um conceito teórico elástico de ‘novo normal’, que de fato ninguém sabe como ou se funciona. De entidades, que devem pressionar para permanecerem abertos, não raro à revelia da questão sanitária, ou como se as atividades conseguissem caminhar desvinculadas do rol de temores referentes à doença, que vão do receio do contágio dos dois lados do balcão às incertezas sobre funcionários, produção, compras e manutenção de clientes.
Conforme a professora Wendy Haddad Carraro, do curso de Ciências Contábeis da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), os setores mais atingidos pela crise entre micro e pequenos são os que dependiam exclusivamente do cliente presencial: os de alimentação fora de casa, transporte por aplicativos, estética e beleza, moda, varejo em geral, turismo e serviços de educação infantil.
Ela assinala que para parte dos setores há alternativas possíveis. Elas passam, principalmente, por conseguir chegar ao cliente que deixou de frequentar um ponto físico, manter a necessidade do produto ou serviço ou criar novos. “Este caminho se dará via tecnologia. Não é algo simples de ser implementado, é uma mudança de paradigma muito forte para alguns empresários. As estratégias passam ainda por ter o contato dos clientes via on-line e estabelecer uma relação mais próxima, ou explorar produtos e serviços úteis neste período”.
CRÉDITO – Na prática, nacionalmente, proliferam anúncios de créditos e benefícios aos quais os empreendedores apontam dificuldade de acesso. No RS, isto se soma ao modelo de Distanciamento Controlado implementado pelo governo estadual, tentando atender a demanda de setores ansiosos por funcionamento, mas que impõe uma realidade de ‘abre e fecha’, já entendem empresários, penaliza tanto ou mais do que o fechamento. No interior, a confusão gerada pela sobreposição de decretos estaduais e municipais se soma à falta de estrutura de prefeituras para mapear diferentes atividades.
Medidas não ajudam pequenas e médias empresas
O Banco Central lista quase 30 medidas adotadas como parte do enfrentamento ao coronavírus, entre elas a dispensa de provisionamento para renegociação de operações de crédito e a diminuição do capital requerido para operações de crédito destinadas a pequenas e médias empresas, e dá destaque ao Programa Emergencial de Suporte a Empregos (Pese), instituído em abril pela Medida Provisória (MP) 944/2020.
Para colocar o programa de pé, a União transferiu R$ 34 bilhões ao Bndes, que faz o repasse dos recursos às instituições financeiras interessadas, e elas então concedem crédito para financiar, por dois meses, a integralidade de folhas salariais das empresas. Até 15 de junho, conforme os dados do BC, haviam sido concedidos R$ 3,9 bilhões em empréstimos, atingindo 1,8 milhão de empregados de 105.240 empresas financiadas. O Pese, contudo, atende as que têm faturamento anual entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões (quem fatura até R$ 360 mil/ano ficou de fora). Exige que o beneficiário tenha folha de pagamento processada por instituição financeira que participe do programa. E financia, no máximo, dois salários mínimos por trabalhador.
No início de junho, via MP 975/20, o governo federal anunciou outro auxílio para empresários relacionado ao enfrentamento ao coronavírus, com a meta de, então, dar início a sua operacionalização em 30 dias. De novo, contudo, os menores ficaram de fora. O Programa Emergencial de Acesso a Crédito (Peac) é destinado a atender empresas com renda bruta anual a partir de R$ 360 mil e até R$ 300 milhões.
“Estas medidas provisórias que o governo vem editando não são para os pequenos. A maioria das empresas do Simples, inclusive restaurantes e pequeno comércio, não fatura R$ 360 mil ao ano. MEI fatura menos de R$ 81 mil ao ano. A realidade que observamos entre nossos clientes é que a maior parte não consegue crédito. Os poucos que cumprem os requisitos, quando buscam as linhas, os bancos solicitam tantas garantias que acabam não conseguindo aderir. E a parte que consegue os recursos, eles são insuficientes para dar a volta, porque os consumidores também estão sem dinheiro”, explica o contador e publicitário Marcelo Benvenutti.
A professora Wendy Haddad Carraro completa que, embora o governo tenha liberado dinheiro para os bancos fornecerem crédito, este não está sendo concedido porque os pequenos empreendedores não conseguem demonstrar que podem cumprir com as garantias exigidas. “Precisam mostrar que têm vida própria, ou seja, que o capital gira, mas o cenário não permite isto. Poucos estão conseguindo crédito com os benefícios divulgados pelo governo.
O que tem ocorrido é que pequenos empresários vêm utilizando seus próprios recursos ou buscado fontes de financiamento mais caras. É urgente que o poder público articule possibilidades e viabilize as liberações. Alguém precisa fomentar, assumir o risco, ou mais empresas irão quebrar nos próximos meses”, projeta a professora.
Entre o Pese e a Peac, o governo federal também lançou o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), instituído pela Lei 13.999/20. E ao qual prometeu aportar R$ 15,9 bilhões no Fundo Garantidor de Operações (FGO) para servir de garantia nas operações de crédito contratadas junto às instituições financeiras que aderirem ao programa, já que a fonte de recursos para sua execução deve partir das próprias instituições operadoras.
Destinado a empresas com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões, o programa tem taxa atrativa (no máximo a Selic mais 1,25% ao ano) e permite a contratação de empréstimos para investimentos e capital de giro isolado ou associado ao investimento ou despesas operacionais, como pagamento de salário de funcionários, de contas de água, luz, aluguel e compra de mercadorias, por exemplo.
Mas, de novo, é difícil ou demorado conseguir o dinheiro. Para se ter uma ideia, a lei foi sancionada em 18 de maio. A partir de então, entre quem buscou a linha, se tornou comum a reclamação de que os bancos não tinham informações sobre o programa. Só 24 dias depois, em 10 de junho, o governo federal lançou o FGO para avalizar os empréstimos.
E se passaram mais seis dias para que a Caixa Econômica Federal (CEF) anunciasse, em 16 de junho, o início da liberação da parte que ela vai operar do crédito emergencial, por etapas. A fatia da CEF, conforme especificado pela própria instituição durante o anúncio, está distante do montante de R$ 15,9 bilhões. A Caixa vai disponibilizar R$ 3 bilhões. O equivalente a um quinto do total prometido para o socorro.
Descompasso entre o discurso e a realidade
Um paralelo entre a situação da capital gaúcha, Porto Alegre, e os prazos dos programas governamentais de auxílio dá uma ideia do descompasso entre a realidade vivida por micro e pequenos empreendedores e a execução das políticas governamentais de socorro econômico em função da pandemia. Antes que começasse a acontecer qualquer liberação de recursos, Porto Alegre teve uma primeira fase, entre 20 de março e 22 de abril, de medidas rigorosas de restrição ao funcionamento de diferentes atividades.
Entre o final de abril e o início de junho foram sendo feitas flexibilizações contínuas, que estacionaram na segunda quinzena do mês, quando as restrições foram retomadas em patamar semelhante ao do final de março. Em resumo: a maior parte das atividades econômicas fechou, abriu e fechou de novo. E o socorro financeiro não chegou ou, quando chegou, não foi suficiente para acertar as contas.
Agora, na capital, e em outras partes do estado, um sem número de donos de pequenos negócios não sabe o que fazer em relação a funcionários que primeiro tiveram contratos suspensos, depois foram chamados de volta ao trabalho e, na sequência, precisaram parar de novo.
“Um planejamento de fato poderia ter consistido em uma linha de crédito que permitisse às empresas se sustentarem fechadas durante três meses, com prazo de carência de 12 meses, de modo a que conseguissem se recuperar. Mas não houve planejamento e o que vemos é a política do ‘cada um se vira como pode’. Desta forma, só o que se pode projetar é que o segundo semestre seja pior do que o primeiro”, estima Benvenutti.