O exército dos desesperados
Foto: Guilherme Gandolfi/Fotos Públicas
Foto: Guilherme Gandolfi/Fotos Públicas
De categoria econômica invisível a massa decisiva no campo da política e da sociedade, o contingente de desalentados só cresce no Brasil do neoliberalismo radical e da pós-pandemia recessiva. Pobres crônicos, conservadores e desiludidos com tudo e com todos, podem significar um alento para políticos populistas e governos autoritários. Mas também podem pender a balança para o lado das lutas sociais e das pautas humanitárias, como o combate ao racismo e o feminismo. Conhecer e estudar esse grupo será fundamental para pensar o país que surgirá depois da Covid-19.
Um dado estatístico pouco observado pelos economistas ou cientistas sociais e que sequer faz parte dos índices oficiais de emprego e desemprego rompeu uma barreira simbólica no primeiro semestre no país: nunca o Brasil teve tantas pessoas desiludidas, prostradas, desanimadas ou alquebradas na sua história recente. E não se trata de retórica: a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada na primeira semana de julho, mostrou que no trimestre entre março e maio de 2020 esse índice bateu recordes sucessivos e subiu dez pontos percentuais em relação ao mesmo período de 2019. Somos 5,5 milhões de desesperados.
O desalentado é uma categoria econômica que está à margem do conceito de empregado e desempregado e não aparece nas estatísticas oficiais do mercado de trabalho. Tecnicamente, é a pessoa que não procurou emprego nos últimos 30 dias e nem trabalhou na semana anterior à pesquisa, embora – se perguntada – dirá que tem necessidade urgente de uma ocupação. Mas por que não procurou, se precisa tanto? Porque cansou de ouvir não como resposta. Tem, portanto, um forte componente psicológico.
O conceito é uma contribuição da antropologia econômica às ciências sociais – mais precisamente do pesquisador britânico Keith Barth que, entre o final dos anos de 1960 e início dos 1970, se embrenhou pelas periferias urbanas de Gana para estudar a crescente informalidade nas relações de trabalho capitalistas. Ele percebeu, então, que havia uma distância considerável entre a teoria e a prática, com formas de sobrevivência que não estavam descritas nos tratados acadêmicos.
E que, em muitos casos, a desordem no mercado de trabalho era tão grande que produzia uma espécie de torpor em contingentes inteiros de mão de obra. Uma resignação com a pobreza extrema e com o desamparo a ponto de fazer com que uma parcela de pessoas simplesmente desistisse de buscar aquela mobilidade social tão significativa, e necessária, à manutenção do capitalismo.
Pois esse exército está em franco crescimento no Brasil, como mostram também as estatísticas do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas Econômicas (Dieese). O contingente de desalentados no país se manteve estável, em torno de 2% da população de 14 anos ou mais, até o final de 2015, quando passou a dar saltos sucessivos e se estabilizar num patamar próximo de 4,5% no início de 2018 – na prática, mais que dobrou de tamanho e representa uma massa que já chega aos 5,5 milhões de pessoas citados no começo desta reportagem.
Somada ao contingente de desempregados, que ultrapassa os 12,5 milhões de pessoas, eleva o drama da precariedade material brasileira para algo em torno de 20 milhões ou quase 20% da população economicamente ativa do país. O fenômeno, como lembra a pesquisadora Lúcia Garcia, do Dieese, coincide exatamente com o processo político que desaguou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em agosto de 2016, e na consolidação da Reforma Trabalhista da era Temer, selada em novembro de 2017.
“Essa massa de desalentados, e o termo massa não é por acaso, ganha importância à medida que a taxa de lucros do sistema econômico cai drasticamente com a crise de 2008. Essas pessoas sem proteção alguma formam uma franja de inativos que vão ficar bicando o mercado de trabalho em busca de qualquer coisa que garanta a sobrevivência” explica.
É uma classificação diferente do desempregado, sustenta a pesquisadora do Dieese, já que muitas vezes quem saiu do mercado formal de trabalho tem proteção do Estado (seguro-desemprego, fundo de garantia, auxílio emergencial etc.) e também de organizações sindicais. “O desalentado não. Essas pessoas estão completamente sozinhas”, destaca Lúcia Garcia. “Têm pouca ou nenhuma esperança de um futuro melhor”, salienta.
NOTA DO EDITOR – Conforme dados do PNAD divulgados na semana seguinte ao fechamento desta edição impressa do Extra Classe os desalentados chegaram ao mais alto nível da série histórica – 5,7 milhões de pessoas – um acréscimo de 19,1% em relação ao trimestre anterior, cujos números foram utilizados nesta matéria, mas que em nada modifica a análise e no fenômeno, apenas confirma a tendência histórica.
Invisibilidade dos mais pobres
O perfil socioeconômico dessa categoria é bastante específico: pobres ao extremo, em geral, devido às oscilantes e precárias condições de sobrevivência, são pessoas politicamente conservadoras e individualistas; também, devido a isso, são bastante vulneráveis aos diversos tipos de fundamentalismo que prometem soluções milagrosas para os problemas reais do mundo; e, por se sentirem excluídos da formalidade, tornaram-se ressentidos e suscetíveis a soluções autoritárias. Na prática, não confiam em ninguém. Ainda mais se for da classe política.
Em suma, como diz Lúcia Garcia, esses indivíduos são avessos a qualquer tipo de organização e de discurso politizado e, também, adeptos do “cada um por si”, na medida em que, diante de sua condição de “miséria crônica”, se sentem relegados pelas forças sociais estruturadas – Estado, partidos políticos, sindicatos, instituições sociais.
A pesquisadora considera que se trata de um grupo fundamental para compreender as relações sociais do futuro. “Tanto para o capitalismo quanto para uma resistência a ele”, afirma. Essa massa de relegados, que só cresce, teve, por exemplo, um papel determinante na última eleição presidencial. E também na manutenção do atual apoio ao governo, mesmo que outras camadas que tenham contribuído para a eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já sejam críticas das políticas sociais adotadas.
É nesse ponto que a economia encontra a psicologia. A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Simone Paulon, que atua junto ao laboratório de Políticas Públicas do departamento de Psicologia Social da Universidade, lembra o ensaio do sul-coreano Byung-chul Han, A sociedade do cansaço (editora Vozes, 2010), para entender o que se passa. “Estabelecemos um modo de vida calcado basicamente na segurança, não apenas pessoal mas patrimonial, econômica. Quando tudo se torna fluido, como agora, ocorre essa exacerbação do individualismo que estamos testemunhando”, assegura.
E o mercado de trabalho tem tudo a ver com isso: como diz Han no seu ensaio, reforçado pela percepção de Simone Paulon, a sociedade disciplinar do século 20 se transformou na sociedade do desempenho produtivo dos anos 2000. Saiu de cena a vigilância para entrar a autoajuda. “O neoliberalismo estimula essa individualidade, se serve dela como fator de imposição sobre os trabalhadores. Estamos sujeitos a um modo de produção narcísico onde todos os outros são inimigos. Vivemos constantemente com medo do outro”, pondera a psicóloga.
Por isso o desalento, para ela, é muito concreto – especialmente entre as mulheres, porque são elas, em suma, que têm o dever social de prover essa segurança de que fala. As mulheres são nove em cada dez profissionais de enfermagem, nove em cada dez trabalhadores domésticos, sete em cada dez professores e seis em cada dez trabalhadores informais. Em abril, a Ufrgs passou a oferecer suporte on-line a mulheres que precisam de ajuda psicológica.
“Criamos esse serviço porque percebemos uma demanda crescente de mulheres, que nos procuravam simplesmente porque não tinham comida em casa. Ou porque não conseguiam acessar o auxílio emergencial. Em muitos casos esse torpor beira o desespero mesmo. Estamos sendo confrontadas com a realidade e percebendo que aquele normal, de antes, não era nem um pouco saudável”, diz.
As reuniões semanais, por chamadas de áudio e vídeo, e com no máximo quatro mulheres e duas terapeutas, duram uma hora e meia. Os atendimentos, segundo Simone Paulon, acabam tendo uma dupla função: oferecer auxílio em um momento em que a rede pública está mais distante, devido à quarentena, e promover aproximações entre as próprias mulheres, que percebem não estarem sozinhas.
Em São Paulo, a experiência de aproximação se estendeu a todas as pessoas que estão sendo afetadas pelas mudanças profundas da economia e da política. Na Clínica Pública de Psicanálise, que funciona num galpão na zona central da cidade, o único requisito para ser atendido é buscar essa ajuda. “Recebemos pessoas em profundo sofrimento, com problemas acumulados e crises intensas. E as pautas são contemporâneas: racismo, homofobia, desemprego, falta de perspectiva. É um recorte bem claro”, descreve o psicanalista Frederico Ventura, que atua como voluntário na Clínica. Os atendimentos são gratuitos – o que também ajuda a romper com um dos tabus mais arraigados da psicanálise.
O profissional diz que o quadro de desalento coletivo se agravou de três anos para cá, com ápice no processo eleitoral do final de 2018. E acredita que a tendência é de piorar, na medida em que as experiências de perda, material e espiritual, se multiplicarem. Os oito voluntários do espaço atendem cerca de 150 pessoas regularmente. Há fila de espera.
“Nossa clínica é um microcosmo que revela um quadro grave de crescente desagregação social”, avalia Frederico Ventura. E, como a rede pública de atendimento tem sido paulatinamente desmontada, é comum que o espaço receba “pacientes” que antes recebiam ajuda especializada do sistema de saúde. “Chegam aqui com tal grau de vulnerabilidade que às vezes temos pouco a oferecer. Mas o importante é não cairmos em nenhum tipo de heroísmo”, sustenta.
Escuta e diálogo diante do imponderável
A psicanalista Marieta Madeira diz que uma das formas possíveis de atravessar esses tempos incertos é justamente a troca de experiências. “Diante de um futuro imponderável, onde não se tem segurança sobre o que vai nos acontecer de fato, onde esse torpor é uma espécie de regra, nossas experiências podem ser potencialmente transformadoras. Mas devemos nos perguntar: as pessoas querem se salvar ou nos salvar? Pensar nesse espaço coletivo a partir de agora será fundamental”, recomenda.
Por isso a escuta se tornou uma ferramenta imprescindível para atravessar o que o psiquiatra Joel Birman chama de “evento” que marca, de fato, o início do século 21. Birman, que foi premiado com um Jabuti pelo livro O sujeito na contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade (Civilização Brasileira, 2013), acredita que o individualismo onipotente do humano, construído desde os avanços científicos do século 19, está ruindo por um pequeno organismo invisível. “Em seis meses fomos derrotados, a economia se desarticulou e nossas formas de vida nunca estiveram tão ameaçadas. É preciso abandonar nossa onipotência e nos vermos com uma nova perspectiva ética e política”, diz.
No seu consultório, no Rio de Janeiro, o psiquiatra conta que os sintomas de desalento estão por todos os lados. “Há neurose de angústia, sensação de morte, atenção demasiada ao corpo. Há sensação de esvaziamento vital que pode levar, e muitas vezes leva mesmo, à depressão. Há incremento da violência doméstica, principalmente contra as mulheres. E há um consumo excessivo de álcool e de drogas justamente para aplacar essa angústia provocada pela mudança civilizatória”, testemunha.
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